06 Mai 2024
Ex-diretores do DEP e Dmae afirmam que descaso e despreparo da prefeitura causaram falhas na engrenagem de proteção. Levantamento da Matinal mostra que as três últimas gestões reduziram pela metade quadro de servidores dos órgãos
A reportagem é de Tiago Medina, publicada por Matinal, 06-05-2024.
O Guaíba subiu quase dois metros e meio acima da cota de inundação, a região central, zonas sul e norte alagaram. A capital vive dias de caos, com pedidos de evacuação e problemas em serviços como eletricidade e abastecimento de água.
O cenário com ares distópicos poderia ter sido evitado caso houvesse um maior cuidado com a manutenção do sistema de defesa contra cheias da capital, uma robusta engrenagem montada desde os anos 1960 para evitar justamente inundações como a deste maio de 2024.
Ex-diretores do antigo Departamento de Esgotos Pluviais (DEP) criticaram o descaso da prefeitura, em especial da atual gestão, como fator determinante para a atual crise, que além de prejuízos financeiros, colocou em risco boa parte da população da capital gaúcha.
“O sistema de proteção falhou porque não teve manutenção. Se tivesse funcionado, poderia haver pequenos alagamentos, de menor proporção, mas não teria a inundação da cidade.” A frase taxativa é do ex-diretor do DEP, em 1997, e do Departamento Municipal de Água e Esgoto (Dmae), entre 2001 e 2004, Carlos Todeschini, que concedeu entrevista à Matinal neste domingo, 5 de maio, dia em que o nível do Guaíba atingiu 5,33m. O sistema vai muito além de sua parte mais visível – e até há pouco, polêmica – que é o Muro da Mauá. Também fazem parte dele diques, bombas d’água, comportas de superfície e submersas, além de condutos. Todas as partes essenciais para o seu funcionamento.
E se ocorreram falhas nesta grande enchente de 2024, não se pode dizer que foi algo surpreendente. O maquinário já deu indícios de desgaste e falta de manutenção meses antes: em novembro de 2023, quando o Guaíba atingiu 3,46m, bocas de lobo e bueiros devolveram água às ruas. “O fato de os esgotos estarem vertendo significava que as comportas de gravidade não deveriam estar funcionando. Quando o esgoto verte pelas bocas de lobo, é retorno da casa de bombas ao sistema de drenagem”, sublinhou Todeschini. O ex-diretor do DEP e do Dmae afirmou que o sistema deveria ser revisto de forma periódica a cada três meses. “É preciso cuidados, serviços rotineiros e inspeções.”
Outro sinal de pouca manutenção foi a necessidade de uso de retroescavadeiras para o fechamento de comportas, algo que foi pontuado por outro ex-diretor do DEP, Augusto Damiani, em vídeo que circula pelo WhatsApp desde sábado. “(O sistema) tem 14 comportas, mas para fecharem, elas têm que correr nos trilhos, colocar as borrachas nas laterais e embaixo botar os parafusos de pressão e fechá-la toda”, explicou. “Isso não foi feito.”
O vídeo do fechamento de uma das comportas, no dia 2 de maio, mostrou a dificuldade da prefeitura na execução da operação, que, conforme Damiani, deveria ser simples. Além disso, uma das comportas, na Avenida Sertório, rompeu. Naquele momento, a prefeitura e o Exército procuravam enviar um tanque ao local para auxiliar na ancoragem da comporta. Caso a manutenção estivesse em dia, destacam os especialistas, isso não seria necessário.
Mas nem sempre faltou manutenção. Todeschini assegurou que, em sua época, a manutenção ocorria de forma periódica tanto em bombas, quanto em comportas. “Era um conjunto de atividades que se trabalhava no período de tempo bom, porque na hora da enchente tem que estar funcionando”, garantiu. “Lembro que uma vez um pedaço de árvore desceu e trancou a comporta. Tivemos que retirar a madeira e refazer os reparos necessários, para que a escotilha funcionasse adequadamente”, citou. “Com o grau de sucateamento que o DEP e o Dmae vêm sofrendo, não sei se os responsáveis sabem que isso precisa ser feito.”
O DEP teve uma vida de quase meio século entre os porto-alegrenses. Ele existiu entre 1970, a partir do Grupo de Trabalhos Pluviais do Departamento Municipal de Água e Esgotos e da antiga Secretaria Municipal de Obras e Viação (Smov), até 2019. Em 1973, tornou-se oficialmente departamento, com objetivo de “planejar, construir e conservar as redes de drenagem urbana” e gozava do status de secretaria. Era um dos únicos serviços municipais de drenagem em um primeiro escalão, segundo os especialistas.
“O DEP era uma das entidades mais antigas do mundo para drenagem”, exaltou o diretor da empresa Rhama Consultoria Ambiental e professor emérito da UFRGS Carlos Tucci. A história do então departamento, entretanto, começou a ter fim durante a gestão de Nelson Marchezan Júnior (PSDB). Em dezembro de 2018, a Câmara aprovou a incorporação do DEP – à época já Divisão de Manutenção de Águas Pluviais – pelo Dmae, proposto pela prefeitura, derrubando de vez seu status de secretaria.
Desde então, na opinião de Todeschini, Damiani e Tucci, os investimentos e a consequente manutenção do sistema de proteção decaíram, o que contribui para o atual cenário de Porto Alegre neste maio de 2024. Todeschini aponta um esvaziamento do DEP desde a gestão José Fogaça (2005-2008) e um agravamento dele sob a administração Sebastião Melo (MDB), a quem Damiani mira as maiores críticas. “A prefeitura foi negligente e deixou de atender às necessidades da cidade”, disse Damiani, citando problemas que ocorreram no sistema desde o ano passado.
Tucci vê na mudança de organograma do DEP um fator que acabou sendo crucial para a inundação de diversos bairros da capital. “Em 2018 fecharam o DEP, aí a manutenção piorou muito”, apontou, salientando que tal medida passou por mais de uma gestão municipal. “As administrações aceitam o fato que não vai ter manutenção.”
Em paralelo à perda de status do DEP, a capacidade de trabalho do departamento já vinha em queda desde antes de seu fechamento, conforme levantamento da Matinal. Em 2013, sob a gestão José Fortunati (então no PDT), o DEP tinha 213 servidores ativos. Chegou a 2018, em seu último ano, com 162.
Destino do DEP, o Dmae também enfrenta situação semelhante, acumulando dez anos de perdas sucessivas de servidores. Eram 2.108 em 2013, 1.738 em 2017 (primeiro ano da gestão Marchezan) e agora, sob Melo, metade de uma década atrás, 1.072.
Em 2021, reportagem da Matinal abordou o resultado de um relatório sobre o Dmae e concluiu que a gestão de Marchezan atuou para sucatear o órgão, a fim de privatizá-lo. Em julho do ano passado, o Ministério Público de Contas pediu a aplicação de multa a Marchezan por conta da situação.
A ideia da privatização foi mantida pelo sucessor, Sebastião Melo, mas sob a forma de concessão ou, no termo que o prefeito costuma utilizar, “parceirização”. A ideia, porém, não foi adiante por falta apoio político na Câmara, desde o início de 2023.
Quando passar esta crise, Tucci sugeriu um protocolo de avaliação. Apesar de ter falhado, o sistema de proteção é passível de correções ou, em alguns casos, de modernizações. “A primeira coisa que tem que fazer é um diagnóstico geral. Tem que fazer uma revisão geral. Precisa saber o que falhou, onde falhou e fazer os consertos”, disse. “Precisa ter um protocolo permanente de monitoramento e atualização de forma que isso não aconteça nesta magnitude que ocorreu. Essas são lições que vamos aprendendo.”
O professor emérito da UFRGS ressaltou que mais enchentes virão no futuro e cobrarão seu preço. Caberá à população decidir como bancar essa conta: “Inundação se paga em serviço ou prejuízo”. Conforme ele, um estudo recente de sua empresa estimou o custo da manutenção de todo o sistema de Porto Alegre em R$ 200 milhões por ano. “Isso dá algo entre R$ 30 e R$ 35 por mês a cada habitação. Não é muito”, afirmou. “Quanto mais eficiente a manutenção e operação, melhor vai ser o resultado para a sociedade.”
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“O sistema anti-enchente falhou por falta de manutenção”, avaliam especialistas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU