24 Fevereiro 2024
A presidente da Comissão Europeia nos dá pistas sobre o rumo de uma Europa cada vez mais militarizada que aumentará os gastos na indústria de armamentos nos próximos anos.
A reportagem é de Yago Álvarez Barba, publicada por El Salto, 20-02-2024. A tradução é do Cepat.
“Temos que gastar mais, temos que gastar melhor, temos que gastar na Europa”. Estas foram as palavras que a presidente da Comissão Europeia (CE), Ursula von der Leyen, usou para anunciar, numa entrevista ao The Financial Times, a nova estratégia e suas intenções relativas aos gastos na indústria europeia de armamentos. Ou talvez não seja tão nova, mas agora seja abordada de uma forma diferente. “A situação do mundo está mais difícil”, disse a dirigente que acaba de anunciar no início desta semana que quer continuar a ser presidente da comissão por mais um mandato, numa referência aos conflitos bélicos e ao “aumento das ameaças geopolíticas”.
Nem é a primeira vez que o medo das “ameaças externas” é usado para continuar a apoiar os negócios da indústria bélica, aumentando o montante dos orçamentos públicos que acaba nos seus bolsos. Dinheiro que, como sempre, acabará por ser cortado da parte desses mesmos orçamentos que deveriam estar centrados no apoio ao Estado de Bem-Estar Social. É o que Naomi Klein chamou de “doutrina do choque” no seu livro de mesmo título. Gerar toda uma história de terror até conseguirmos que a população aceite que a única forma possível de combater esse medo e sentir-se segura é gastar dinheiro no fortalecimento da indústria bélica e, consequentemente, perder alguns direitos e liberdades. Está tudo na narrativa.
Von der Leyen, num ato de populismo disfarçado de militar, chegou a comparar este aumento das despesas públicas em armamentos com aquele realizado com as vacinas contra a Covid. “Fizemos isso com as vacinas e o gás”, afirmou a presidente da Comissão Europeia na entrevista em relação ao aumento de gastos e compras conjuntas para enfrentar a pandemia e superar a dependência da energia russa e suas consequências na inflação. Mas, além disso, colocou sobre a mesa a questão nacional do continente. Algo como “se me deixarem gastar em armas, criarei empregos e farei as empresas crescerem”.
Se um partido de esquerda propusesse esse mesmo paradigma relativamente a outros tipos de indústrias não consideradas estratégicas, seria tachado de perigoso, populista e comunista que quer intervir nos mercados para acabar com a livre concorrência e subsidiar setores que seriam acusados de depender do dinheiro público. Mas estamos falando da indústria armamentista e quem o diz é a mais alta representante do Partido Popular Europeu nas instituições da Europa dos mercados.
É também curioso ver como os liberais sempre falam em cortar despesas públicas usadas para manter o Estado de Bem-Estar Social e enchem a boca para falar em melhorar as despesas, em cortar desperdícios e toda uma série de conceitos que são usados para difamar e estigmatizar o gasto (nunca chamado de investimento) público. Mas, por outro lado, este debate nunca se vê quando se trata dos gastos militares.
“Temos que gastar 2% do nosso PIB”. Simples assim é o que está sendo consolidado como a regra dos gastos militares globais. Se você está na ONU, gaste 2% do seu PIB em defesa. Se quiser se defender adequadamente, gaste 2% do seu PIB. Se quiser evitar problemas geopolíticos globais e sobreviver neste mundo que se tornou mais difícil, gaste 2% do seu PIB. Não importa se gasta em armas com prazo de validade, se acaba nunca as usando, se são mais caras porque prefere comprar de empresas locais do que de seus adversários geopolíticos. Não importa se essa despesa colidir frontalmente com as regras fiscais europeias, porque a austeridade não conta se estamos falando da compra de armas. Não importa o que aconteça, gaste 2% do seu PIB.
Mesmo que as palavras da presidente da Comissão Europeia tentem estabelecer esse medo de uma forma mais sutil, do outro lado do charco Trump o fará de uma forma mais direta: “Eu encorajaria a Rússia a fazer o que quiser” com os países que não aumentarem os seus gastos com defesa até atingirem os famosos 2% do PIB, disse novamente o candidato a ocupar a Casa Branca. Trump, e qualquer outro presidente dos EUA, sabe muito bem que um aumento nos gastos militares de todos os países da OTAN se traduz num aumento imediato do volume de negócios e dos lucros das principais empresas de armamentos em escala mundial, quase todas elas norte-americanas. Não se trata apenas de uma estratégia de defesa militar, mas de uma defesa das demonstrações de resultados de um punhado de empresas.
O império do medo e dos tempos sombrios está retornando. Tempos de “precisamos gastar o seu dinheiro, mas fazemos isso para o seu bem”, de “temos que ter medo e diante do medo só podemos gastar mais em armas”. Os conceitos de soberania e independência misturam-se com os discursos de segurança e defesa. E os Estados voltam a intervir na economia, mas apenas em questões estratégicas e salvaguardando sempre os lucros das empresas privadas, como é o caso da indústria armamentista.
Nesta ocasião, esta estratégia está ligada a este novo mundo de grandes blocos, de retrocessos na globalização e de ignorar as sagradas regras do livre comércio quando estas já não são convenientes. Regras que foram úteis quando não havia um ator como a China ameaçando a hegemonia mundial estadunidense ou um velho país imperialista como a Rússia desviando-se do roteiro da paz mundial. Agora retornam os conceitos de soberania e de independência, que são colocados acima dos de liberdade comercial e de liberdade de concorrência. Uma “desglobalização seletiva”, como a define o jornalista e escritor Esteban Hernández, onde a indústria e o setor da defesa fazem parte dos pilares estratégicos do bloco europeu. E não, não é apenas por causa das guerras, mas por causa da ameaça que representa para o Ocidente o crescimento constante da China e a fila de espera de países que se formou para aderir aos BRICS.
Isto pode ser claramente sentido nas palavras de Von der Leyen. “Precisamos gastar dinheiro na Europa”, disse na entrevista, ao que acrescentou que “temos um mercado de defesa muito fragmentado e precisamos mudar isso”. E ela própria perguntou e respondeu: “Qual é a concorrência da CE? A indústria. É a nossa atividade principal”. Para completar, finalizou garantindo que “somos um facilitador, não um comprador”. Von der Leyen reconhece que as administrações públicas não são simples compradoras, mas que com os seus gastos e investimentos podem moldar e controlar o mercado. Tomara que se aplicasse isso a tantos outros setores. A Europa dos mercados fala sobre como “precisamos que uma parte justa do dinheiro dos contribuintes europeus seja gasta dentro da União Europeia”. Mais um dos dogmas do neoliberalismo que vai para o inferno.
Este Estado facilitador é bastante semelhante ao que a economista Mariana Mazzucato chama de “Estado empreendedor”. Mazzucato explica num livro com esse mesmo nome como os Estados podem ser os motores de indústrias inovadoras que trazem melhorias às vidas da maioria da população, através do investimento em setores onde pode haver mais risco na obtenção de benefícios ou através de colaborações com o setor privado para promover estas indústrias. No seu livro dá como exemplo o investimento que o Governo dos Estados Unidos fez para colocar o homem na Lua e explica como esse imenso investimento público foi a semente de centenas de avanços científicos e do desenvolvimento de inovações que melhoraram a vida das pessoas e, de passagem, trouxe muitos benefícios econômicos.
A diferença deste Estado empreendedor de Mazzucato é que o que Von der Leyen e outros líderes querem são Estados em guerra constante e que utilizem o seu potencial militar para continuar a manter a hegemonia e o status quo do Ocidente, em vez de o fazerem através de investimentos e avanços tecnológicos, onde os países asiáticos começam a voar sozinhos e a ultrapassar a Europa e os Estados Unidos. Repito, se um partido político de esquerda propusesse exatamente a mesma coisa que Von der Leyen propõe, mas para outros tipos de indústrias e mercados, seriam rotulados de comunistas bolivarianos malucos. Mas para as armas e a guerra vale tudo, inclusive quebrar os consensos neoliberais.
Quem deve estar gostando desta mudança de paradigma são os grandes senhores das armas europeus, que devem ter batido palmas ao ouvir Von der Leyen. Não levará quem apresentar “a oferta mais barata” ou “o melhor produto”. Não. Um chute no livre comércio para iniciar uma nova era onde se tentará gastar o dinheiro dos europeus na Europa, para gerar emprego aqui e fortalecer uma indústria que está atrasada em comparação com os outros dois grandes blocos.
Livre mercado, mas apenas para o que não convém. Desglobalização e reforço do papel do Estado, mas apenas em alguns setores estratégicos mais preocupados em manter na linha a China do que com a melhoria da vida das pessoas. O exemplo das armas é um deles. “Somos um facilitador, não um comprador”, como novo paradigma de gastos militares na Europa e de intervenção no mercado a partir do Estado. “Gastar na Europa”, como o novo lema de um populismo militar de geração de emprego e riqueza através de gastos em armas. “A situação do mundo está mais difícil”, como uma doutrina de choque.
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Von der Leyen, gastos com armas, populismo militar e doutrina do choque - Instituto Humanitas Unisinos - IHU