30 Agosto 2016
“Parei por um momento enquanto fazia as malas para uma viagem de última hora para o litoral norte do Egito, conhecido como Sahel em árabe. Será que levo meu biquíni? Ou meu maiô? Ou o senão o quê?”
O depoimento é de Mona Eltahawy, autora de "Headscarves and Hymens: Why the Middle East Needs a Sexual Revolution", ou "Véus e hímens: por que o Oriente Médio precisa de uma revolução sexual", publicado por International New York Times e reproduzido por portal Uol, 30-08-2016.
Eis o depoimento.
Fazia anos que eu não ia à praia no Egito, e não tinha certeza do que hoje em dia seria considerado como um traje adequado. O pêndulo dos costumes sociais aqui foi para uma direção decididamente mais conservadora nas últimas três décadas, e talvez seu impacto mais visível tenha sido a tendência pelo uso dos véus e a obsessão com o "recato" das mulheres. Quando era mais jovem, eu mesma usei o hijab durante nove anos, cobrindo tudo exceto pelo meu rosto e minhas mãos.
Quando eu era criança nos anos 1970, a ideia de um código de vestimenta praiano nunca havia passado pela minha cabeça. Minha família de classe média, assim como muitas outras, costumava fugir para a cidade mediterrânea de Alexandria, para escapar dos verões insuportáveis do Cairo.
Algumas das minhas lembranças mais felizes são das noites de Alexandria, que eu passava comendo doces derretidos pelo calor do dia, junto com meu irmão mais novo e minha tia, que, sendo somente quatro anos mais velha que eu, era mais como uma irmã para mim. Quando não estávamos estragando os dentes, provocávamos uns aos outros cutucando os pontos em nossos ombros queimados de horas passadas debaixo do Sol.
Durante anos, minha família ficou obcecada pela lembrança do azul fluorescente do mar e da fina areia branca depois que trocamos o Cairo por Londres em 1975, onde meus pais foram fazer doutorado em Medicina através de uma bolsa do governo. O desagradável cinza do Canal da Mancha e as praias pedregosas do litoral sul britânico não eram um grande consolo.
Desde então fui morar e voltei do Egito várias vezes, sendo que minha volta mais recente começou em 2013. Minha pesquisa não científica sobre a cultura praiana do Egito de hoje me ensinou que à medida que Alexandria foi ficando mais cheia e decadente, os ricos foram migrando para o oeste, passando o verão em mansões construídas em pontos mais distantes da orla, mantendo seu acesso a praias limpas.
Para um público mais boêmio, o sul do Sinai se tornou um destino popular, onde as cabanas de praia oferecem uma alternativa acessível aos hotéis, e fumar haxixe é um divertimento aceitável. Para o público das festas, Gouna, um resort construído em torno de uma lagoa artificial, se tornou um dos destinos preferidos no Mar Vermelho nos últimos anos.
A anarquista em mim gosta de viagens para o sul do Sinai no verão ou no inverno. Em janeiro de 2015, passei uma noite congelante acampando sob as estrelas para poder assistir a uma famosa corrida de camelos que acontecia logo depois do nascer do Sol e trazia as tribos de beduínos e seus premiados camelos. Eu havia visitado Gouna em 1999, muito antes que ela se tornasse o centro badalado de hoje.
Mas eu nunca havia voltado para o Sahel, no norte. Eu havia aprendido a associá-lo com uma espécie de elitismo e riqueza que eu não fazia questão de observar de perto. Mas este ano, por precisar de férias, eu aceitei agradecida o convite de um amigo para passar alguns dias no Sahel. E foi assim que fui parar ali, acordando ao som de um imã na mesquita vizinha, abrindo aos berros o sermão de sexta-feira. Eu não me importava, pois estava indo para a praia.
Ficamos em um condomínio fechado onde um parente tinha um apartamento e onde as praias estavam em melhores condições. Se você tem um apartamento ali, pode acessar a praia gratuitamente, mas algumas poucas praias exclusivas cobram uma taxa. Meu amigo queria me mostrar uma das melhores, então compramos entradas e lá estava tudo: a água azul e a areia branca.
Os funcionários dos quiosques montaram espreguiçadeiras para nós. Meu objetivo era queimar os ombros como nos verões de minha infância que passei em Alexandria. E observar.
Logo chegou à praia um grupo de cinco jovens egípcias vestindo short e camiseta, que se instalaram perto de nós esticando suas toalhas. De dentro de suas bolsas, elas sacaram duas garrafas de vodca.
Elas passaram a maior parte do tempo debaixo dos guarda-sóis, fumando e bebendo. Quando finalmente foram nadar, estavam de maiô.
Cerca de uma hora depois que elas chegaram, um funcionário do quiosque montou cadeiras embaixo de um guarda-sol para um casal e seu filho pequeno. O pai se despiu até ficar de bermuda, enquanto a mãe usava um burquíni, um traje de banho de corpo inteiro preto, além de um véu cor de rosa na cabeça.
Perto deles estavam três mulheres que chegaram usando vestidinhos leves. Estes foram tirados quando elas foram entrar na água de biquínis rosa-choque e laranja.
Naquela noite, meu amigo e eu fomos para uma casa noturna. Chegamos à 1h da manhã, e descobrimos que estávamos cafonamente adiantados e éramos praticamente os únicos no local. Mas às 3h da manhã o lugar já havia lotado, e foi então que o DJ desligou a música.
Era hora do azan, a chamada para a oração da madrugada. Aparentemente a tribo beduína local exigiu que o clube respeitasse o chamado do muezim. Quando ele terminou, o DJ voltou para nos contar que naquela noite seríamos presenteados com a performance da mais famosa dançarina do ventre do Egito, Safinar.
Mais famosa ou talvez mais notória. A dançarina armênia residente no Egito, que também atende pelo nome de Safinaz, foi condenada no ano passado a seis meses de prisão e recebeu uma multa de US$ 2 mil por "insultar a bandeira nacional", uma vez que ela havia usado suas cores em um figurino.
Assim que Safinaz entrou, ela foi cercada por frequentadores do clube. Havia tanta gente tentando tirar um selfie com ela, que mal conseguíamos ver a performance. Frustrados, decidimos ir embora, e passamos a maior parte do caminho de volta para casa discutindo sobre o impacto das dançarinas do ventre estrangeiras sobre as dançarinas egípcias -- outra dançarina do ventre popular é ucraniana.
Expressei meu temor de que conceitos eurocêntricos de beleza acabem causando discriminação contra dançarinas locais. Além disso, as regras de comportamento predominantes são mais permissivas para as mulheres europeias. Tudo isso torna a vida mais difícil para as dançarinas egípcias, que já enfrentam uma repressão conservadora.
Nas praias da minha infância, agora não se veem mais biquínis. Nas praias de Gouna onde estive, não se veem biquínis. Mas aqui, no Sahel, todos nós tínhamos um lugar. O Egito, com todas suas contradições e incongruências, estava encarnado ali na praia, sentado lado a lado junto às tranquilas águas azuis do Mediterrâneo.
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Depoimento: Enquanto Ocidente discute burquíni, praias egípcias demonstram tolerância - Instituto Humanitas Unisinos - IHU