07 Fevereiro 2024
A filósofa Angela Davis (Alabama, 26 de janeiro de 1944) conecta as experiências de seu ativismo precoce em favor da Palestina com seu ideal de que a situação desencadeada por Israel possa representar um ponto de inflexão para deter a barbárie em todo o mundo.
A entrevista é de Frank Barat, publicada por El Salto, 05-02-2024.
Esta é a última de uma série de conversas que Frank Barat, jornalista e coordenador do Tribunal Russell sobre a Palestina entre 2008 e 2014, tem promovido desde 7 de outubro com pessoas especializadas que contribuem com abordagens complementares ao que está acontecendo na Palestina e em Israel, de diversas disciplinas como história, direito, educação ou filosofia. Todo o material está disponível em seu canal no YouTube. Desta vez, ele dialoga com Angela Davis, e como em outras ocasiões, a entrevista foi publicada em colaboração com o Mondoweiss.
Neste diálogo, Angela Davis transita entre o passado e o futuro, o concreto e o abstrato, a ação e a reflexão, assim como entre a esperança ativa e o realismo cruel dos tempos que estão por vir. Vamos guardar as sementes que Angela Davis planta e fazê-las brotar imediatamente.
Cada vez que te ouço falar, ou te ouvi falar, cada vez que leio algo que escreveste, a Palestina está presente, em teus discursos, em teus escritos. Nos últimos três meses, vivemos algo que gostaria que ninguém tivesse que viver ou testemunhar jamais. Praticamente a aniquilação de um povo ao vivo em nossas telas. Há pouco, falei com Noura Erakat, a quem também conheces muito bem, e falamos sobre o fato de realmente sentirmos que estes últimos três meses foram uma espécie de trauma coletivo de pessoas experimentando um genocídio ao vivo, como já mencionei. E queria começar te perguntando sobre a Palestina em particular, perguntar sobre tua própria jornada de compreensão em relação à Palestina. Queria perguntar, qual foi a importância de tua visita à Palestina em 2011?
Antes de tudo, Frank, devo dizer-te que realmente tenho refletido sobre minha própria trajetória em relação à solidariedade com a Palestina. E tenho lembrado como foi frequentar uma universidade que foi fundada no mesmo ano que o Estado de Israel, como realmente foi aprender a experienciar a solidariedade com o povo palestino por meio de minhas colegas judias da Universidade de Brandeis, e pensando nas conversas, essa espécie de conversas subterrâneas que aconteciam no campus quando a administração sempre enfatizava a importância de que Brandeis apoiasse o Estado de Israel. Então, tive uma jornada muito longa que implicou que prisioneiras políticas palestinas me apoiassem quando estava na prisão, que implicou conhecer Arafat no Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes em 1973. Acredito que tenha sido na Alemanha Oriental. E percebi que o próprio sentido de mim mesma como ser política está muito ligado às formas como aprendi a experienciar e organizar a solidariedade com a Palestina. Parece-me que a Palestina representa para esta geração o que a África do Sul representava para as gerações anteriores, e o sentido de que deve ser incorporada em cada uma das agendas dos movimentos pela justiça social, especialmente agora, diante deste ataque genocida contra a população de Gaza. Por um lado, estou muito triste, e sei que isso é uma questão emocional, não apenas uma questão política, para tantas pessoas em todo o mundo, mas ao mesmo tempo me alegro em testemunhar uma espécie de demonstração massiva de apoio ao povo de Gaza e, conforme minha própria experiência, ver como as pessoas enfrentam o sionismo como nunca antes o tinham feito.
Então, minha visita à Palestina em 2011 foi realmente um ponto de virada para mim. Eu havia participado de iniciativas de solidariedade com a Palestina desde meus dias na universidade, mas foi visitando a Palestina e reconhecendo que por mais que eu acreditasse saber sobre a situação do apartheid na África do Sul, na realidade não era assim, e me trouxe lembranças de quando cresci na cidade mais segregada dos Estados Unidos. Me fez reconhecer que, em muitos aspectos, a situação que Israel criou para as pessoas palestinas era muito pior do que tudo o que eu havia vivido. Então, nós que fomos nessa delegação, uma delegação de mulheres de cor e mulheres indígenas que eram ativistas acadêmicas, todas nos comprometemos firmemente a continuar fazendo o trabalho que estávamos fazendo, mas ainda mais a tentar ajudar a garantir que a questão da Palestina fosse incorporada às questões de justiça social e às agendas de justiça social, independentemente de qual fosse o enfoque específico.
Durante muito tempo estavam todas as questões de justiça social, os movimentos contra o racismo, os movimentos pela igualdade de gênero, os movimentos contra a guerra em outras partes do mundo, e então estava a Palestina como uma questão à parte. Então, nos comprometemos conosco e com o mundo a tentar ajudar a quebrar esse isolamento que havia sido responsável por tantas pessoas em todo o mundo, e especialmente aqui nos Estados Unidos, simplesmente não saberem o que estava acontecendo na Palestina.
É interessante ouvir-te dizer isso porque é exatamente o que senti durante minha primeira visita em 2007. Por mais que eu acreditasse saber, quando cheguei lá realmente tudo mudou radicalmente. Pensei que não havia ponto de retorno. E lembro-me de ter lido Arundhati Roy que disse: "uma vez que você vê, não pode mais deixar de ver". E assim é exatamente como me senti depois de voltar. De certa forma, mudou radicalmente tudo, a maneira como coloquei a Palestina no meio de outras lutas. Também queria perguntar-te sobre uma pessoa, June Jordan. Em 1982, ela escreveu um longo poema no qual dizia: "Nasci sendo uma mulher negra e agora me torno palestina". Eu me perguntava quanto influenciou as pessoas afro-americanas - e outras - a realmente entender o que era a Palestina. E me perguntava se tu a conhecia. Suponho que sim.
Sabe, Frank June era uma amiga muito próxima e foi uma pioneira no que diz respeito aos esforços para gerar solidariedade com a Palestina. E esse poema ao qual te referes, "Movendo-se em direção ao lar" [Moving towards home], é uma expressão realmente poderosa da necessidade de solidariedade, especialmente da necessidade dos laços de solidariedade que unem as pessoas negras nos Estados Unidos com as palestinas. Na década de 1980, June viajou para o Líbano após a guerra lá. Ela teve conversas com pessoas que ainda estavam muito influenciadas pelo sionismo. Adrienne Rich, por exemplo, que era uma poetisa muito conhecida, teve um compromisso prolongado. Bem, elas se tornaram amigas, mas no início, June foi muito crítica com Adrienne por não reconhecer o lugar da Palestina em nosso imaginário. E assim, com o tempo, Adrienne se tornou uma representante muito poderosa da necessidade de desafiar o Estado de Israel, de desafiar os Estados Unidos por sua aliança com Israel, por ser o aliado mais poderoso que Israel pode reivindicar.
Sim, poderia falar de June eternamente, e me encontro neste período, e de fato, desde os protestos em 2014 que ocorreram em Ferguson, quando começamos a ver uma demonstração visível de apoio à Palestina entre os jovens negros, com os Defensores dos Sonhos [Dream Defenders], etc.. Então me encontro desejando que June Jordan ainda estivesse aqui porque ela é certamente responsável em muitos aspectos por este desenvolvimento de um sentimento de parentesco político entre as comunidades negras nos Estados Unidos e as palestinas que lutam por sua liberdade. E é um poema incrível. Também há um poema sobre a guerra do Líbano, e se alguém o lê, parece uma descrição do que está acontecendo hoje em Gaza. Sinto muita falta dela.
Acho que todos nós a sentimos falta, dela e de seus escritos, seus poemas, sua influência... É interessante que mencione que lendo o poema de June sobre o Líbano você sente que é o que está acontecendo em Gaza agora. Há pouco encontrei um vídeo teu no Tribunal Russell, acredito que foi em 2014, na última sessão de Bruxelas, onde fizeste um dos discursos de encerramento. E ouvindo o discurso, poderias colocá-lo hoje, mudar algumas datas, e é, novamente, exatamente o que está acontecendo em Gaza agora, talvez multiplicado por dez. Mas o processo, o padrão, é realmente exatamente o mesmo. O que mostra que, novamente, a história não começou em 7 de outubro, como já sabes.
Claro. Há uma dimensão do sionismo que se recusa a reconhecer a história, que quis congelar a história em um determinado momento. De modo que, mesmo em 2024, quando lembramos os eventos do último outono, vemos que o discurso do governo e o discurso do apoio sionista ao governo recriam a própria história da qual nasceu o Estado de Israel. E acho que isso nos leva a ser críticos com o próprio processo de criação de um Estado, um Estado-nação, com base em prevenir ataques catastróficos contra os seres humanos e ver esse Estado como a única resposta possível a essas catástrofes. Reconhecendo que o Estado se baseia no exército, se baseia na violência, se baseia na guerra. De modo que significa que a única forma de responder realmente é através da violência. Espero que este período também nos inspire a ter diferentes formas de imaginar o futuro fora do quadro do Estado-nação, com seu exército e toda sua polícia e suas diversas formas de violência.
Suponho que uma perspectiva abolicionista seja necessária agora mais do que nunca. Queria perguntar-te também sobre algo sobre o que falas frequentemente, o internacionalismo negro. Há pouco, estive com uma organização palestina com a qual trabalho, e falando sobre estratégia e tal, percebemos que grande parte do trabalho que fazem as organizações beneficentes e as ONGs que trabalham sobre a Palestina é muito eurocêntrico ou muito centrado no ocidente. Tentamos pressionar os parlamentares em Londres, nos Estados Unidos, mas quando ouves a resposta que o Ocidente está dando agora, percebes... e quando vês a resposta do Sul Global, do mundo majoritário, percebes que, de certa forma, estamos equivocados. Deveríamos construir alianças muito sólidas com o Sul Global, com o mundo majoritário, porque não podemos esperar que as pessoas que realmente movem os cordões, que permitem a Israel fazer o que faz, um dia, de novo, cedam seus privilégios e parem de fazê-lo. Então, me perguntava se, de certa forma, é isso que queres dizer com internacionalismo negro. Falamos sobre isso com Susan Abulhawa, também há alguns dias, sobre a necessidade de construir alianças com o Sul Global, que é o mundo majoritário.
Bem, sim, isso é definitivamente importante, em particular as alianças Sul-Sul. Acho que o problema ao qual te referes é o fato de que se assumiu que todas as alianças têm que ser canalizadas através do Norte Global. E portanto, muitas conexões muito produtivas entre pessoas que vivem no Sul Global foram impedidas. Mas acho que... Tua pergunta me lembra algo que W.E.B. Du Bois apontou há muitas, muitas décadas, quando falou sobre o melhor tipo de panafricanismo, a melhor maneira de perseguir um tipo de panafricanismo, no qual muitas pessoas pensavam naquela época apenas pelo parentesco racial entre pessoas negras nos Estados Unidos, por exemplo, e pessoas negras na África. E Du Bois apontou que não era o parentesco racial que produziria o tipo de internacionalismo e o tipo de solidariedade que precisávamos, mas reconhecer que os esforços anti-imperialistas estavam no próprio centro, ou deveriam estar no próprio centro, dessas alianças. Não alianças baseadas formalmente em alguma noção de raça, mas em uma solidariedade muito concreta e em compromissos de solidariedade que uniam pessoas de ascendência africana com pessoas de todo o mundo que também lutavam contra o imperialismo.
Mas acho que o internacionalismo sempre foi uma dimensão importante das lutas negras. Na verdade, quando penso no período em que pessoas como Frederick Douglass viajaram para a Europa, e Ida B. Wells mais tarde, durante o movimento contra os linchamentos, viajou para o exterior para conseguir apoio para esse movimento. Em muitos aspectos, pessoas negras nos Estados Unidos sempre foram beneficiárias da solidariedade internacional. E houve aqueles que reconheceram que não só devemos nos ver como beneficiários da solidariedade, mas também como forjadoras de solidariedade para pessoas em todo o mundo que são oprimidas pelo capitalismo, pelo capitalismo racial, de fato. Porque se falamos em questionar o racismo, tem que ser expresso como uma consciência do papel que o capitalismo desempenhou na produção do racismo. E como muitas pessoas apontaram, o sistema capitalista que conhecemos agora é o capitalismo racial. E portanto, sem uma dimensão de internacionalismo, não há possibilidade sequer de começar a nos organizar para derrubá-lo.
De certa forma, nesse sentido, qual a importância, na sua opinião, de a África do Sul ter apresentado o caso ao Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) contra Israel?
Bem, em primeiro lugar, sei que muitos de nós ainda estamos muito emocionalmente ligados ao que imaginamos que uma vitória da África do Sul traria para o mundo. A África do Sul era a nossa esperança. E claro, devido ao capitalismo global, ao FMI e outras instituições financeiras capitalistas, e devido aos problemas dentro da África do Sul, por tipos de dificuldades internas, políticas, mas também devido às formas como uma luta nunca se desenvolve exatamente como a imaginamos. E é por isso que acho que houve uma espécie de depressão. Por um tempo, pensamos que o Brasil desempenharia o papel que a África do Sul não desempenhou após a derrubada do apartheid. E então, o que experimentamos? Então, estou dizendo tudo isso, tenho esse longo prefácio ao meu comentário, sabes, seja qual for o resultado final da decisão da Corte, o fato de a África do Sul ter se levantado para representar a Palestina criou, creio, uma nova esperança no mundo. E acho que aquelas de nós que sentíamos que havíamos investido tanto na luta contra o apartheid e depois, de certa forma, fomos desapontadas, agora podemos olhar para a África do Sul e sua aliança com a Palestina na cena mundial e dizer que valeu a pena nos comprometermos todos esses anos na luta para desmantelar o apartheid. Então estou totalmente impressionada com o trabalho que a África do Sul fez. Acho que está tendo um impacto nas pessoas em todo o mundo. Uma fonte de esperança.
Poderia ser... —estou tentando ser talvez utópica—, poderia ser como uma rebelião do Sul Global e de certa forma o fim da hegemonia estadunidense? Sabes, os Estados Unidos sempre assustaram os países para que agissem porque diziam "cuidado, nós mandamos. Se agirem, cortaremos isso, cortaremos aquilo". De certa forma, a África do Sul se arriscou e muitos países a seguiram e disseram que a apoiariam. Então, em um mundo ideal, poderia ser o princípio do fim da hegemonia estadunidense?
Bem, claro, essa é a nossa esperança. E o fim definitivo da hegemonia estadunidense vai exigir muito mais luta em muitos níveis diferentes. Mas acho que este momento nos permite vislumbrar concretamente um futuro em que o conjunto ideológico dos Estados Unidos não seja tão poderoso sobre grande parte do mundo. O fato de a Corte ter proferido a sentença que proferiu, é claro que todos ficaram desapontados por não terem conseguido um cessar-fogo, mas há muitas razões pelas quais isso não aconteceu. Acho que, em muitos aspectos, esse foi o melhor resultado possível, pelo menos em relação ao relatório preliminar. E enquanto todas nós estávamos observando como se desenrolava diante de nossos olhos o que consideramos um genocídio, ouvir a presidente da Corte ler a sentença que incorporava grande parte da linguagem que a África do Sul havia utilizado e o fato de a presidente do Tribunal ser dos Estados Unidos, considerando que os Estados Unidos são o maior aliado de Israel. E a única juíza que não assinou era de Uganda. E realmente não entendo, especialmente porque Uganda, pense o que se pense de Uganda, se desvinculou da posição daquela juíza. Então foi uma decisão praticamente unânime. E acho que, seja qual for o impacto legal que possa ter, o impacto mais importante vai ser sobre outros Estados e indivíduos em todo o mundo, que agora temos um quadro mais sólido para nos dedicarmos ao trabalho que devemos estar fazendo para acabar com esta guerra genocida.
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“A Palestina representa para esta geração o que a África do Sul representou para as anteriores”. Entrevista com Angela Davis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU