19 Junho 2020
É 1972 e Angela Davis responde a uma pergunta sobre se aprova o uso da violência pelos Panteras Negras. Está sentada em frente um fundo de blocos azuis, as paredes de uma cela na prisão estadual da Califórnia. Usa uma gola alta vermelha e, como sempre, usa seu característico penteado afro e tem um cigarro na mão.
A reportagem-entrevista é de Lanre Bakare, publicada por El Diario, 17-06-2020. A tradução é do Cepat.
Enquanto responde, olha fixamente para o entrevistador sueco, praticamente parece que pode atravessá-lo com o olhar: “Você está me perguntando se eu aprovo a violência? Essa pergunta não faz sentido. Se eu aprovo as armas? Eu cresci em Birmingham, Alabama. Muitos bons amigos meus foram mortos por bombas, bombas preparadas por racistas. Uma das minhas memórias de infância é o som das bombas explodindo do outro lado da rua e de sentir como minha casa tremia... Por isso, acho incrível que alguém me pergunte se eu aprovo a violência, porque isso significa que a pessoa que faz essa pergunta não tem ideia do que os negros sofreram e viveram em sua própria carne, neste país desde, a chegada da primeira pessoa negra que foi sequestrada no litoral africano”.
Este pequeno trecho de vídeo permite compreender perfeitamente por que Davis é um símbolo: sua imagem, sua determinação e seu intelecto. O documentário The Black Power Mixtape a imortalizou, em 2011, e as redes sociais tem difundido vários fragmentos da entrevista, desde que George Floyd foi morto por um policial de Minneapolis e desencadeou um movimento de protesto contra a violência da polícia, em todo o mundo. O livro que publicou em 1981, Women, Race and Class, (Mulheres, raça e classe), tornou-se uma leitura obrigatória para quem quer aprender ativamente a combater o racismo, junto com o livro The Fire Next Time (Da próxima vez, o fogo), de James Baldwin, e a autobiografia de Frederick Douglass.
Aos 76 anos, fala pelo Zoom em seu escritório na Califórnia. Tem a impressão de que, após tantos anos, é possível uma profunda transformação? “Bom, é claro, desta vez pode ser diferente”, diz Davis. “Mas nada garante que será assim”. Davis se mostra compreensivelmente prudente, pois ao longo de sua vida viu de tudo, desde os distúrbios de Watts e Vietnã até os protestos de Ferguson e manifestações contra a guerra no Iraque. “Houve muitas situações que fizeram despertar a consciência cidadã e propiciaram oportunidades de mudança, mas a verdade é que os tipos de reformas que ocorreram não permitiram uma transformação radical”.
No geral, sente-se encorajada pelos extensos protestos que a morte de Floyd gerou. Embora muito recentemente, como em 2014, ocorreram outros protestos em massa, após a morte de Michael Brown, e outras mortes como Tamir Rice, Sandra Bland e Eric Garner, Davis acha que desta vez algo mudou. Desta vez, os brancos começaram a compreender a situação.
“Nunca tínhamos presenciado manifestações tão contínuas e deste tamanho que foram tão diversas”, diz Davis. “Sendo assim, acredito que é isso que está dando grande esperança às pessoas. Até agora, a reação de muitas pessoas que liam o slogan Black Lives Matter era: ‘Mas não deveríamos estar dizendo que todas as vidas são importantes?’. Finalmente, agora, estão compreendendo. Enquanto se segue tratando assim as pessoas negras, enquanto a violência do racismo permanecer como é, ninguém está a salvo.
Se alguém está qualificada para fazer uma avaliação da situação atual, é Davis. Por cinquenta anos, a intelectual lidera campanhas sobre justiça racial, mas as causas que tem perseguido - reforma penitenciária, desmantelamento da polícia, reestruturação do sistema de fianças - foram até recentemente consideradas radicais demais para o pensamento político dominante. Muitos tinham a sensação de que Davis tinha ficado presa ao passado, que pertencia a uma estirpe dos anos 1960 da chamada “radical chique” e que suas ideias tinham sido superadas. Em um perfil escrito em 2016, um entrevistador do Wall Street Journal perguntou a colegas jornalistas se sabiam quem era Davis. Ninguém com menos de 35 anos a conhecia.
Pode ser que Davis tenha se tornado um símbolo da justiça social 50 anos após ter alcançado notoriedade, mas insiste que obtém o mesmo da nova geração de manifestantes e pensadores políticos. “Vejo todos esses jovens inteligentes, que aprenderam com o passado e que desenvolveram novas ideias”, diz. “Estou aprendendo muito com pessoas 50 anos mais novas que eu. E para mim isso é emocionante. Isso me faz querer continuar lutando”.
“Acredito que é muito importante ressaltar que, embora a grandeza dessa resposta seja sem precedentes, as lutas que estão ocorrendo já foram travadas no passado”, diz. Davis não quer que o impacto da organização comunitária, das oficinas educacionais e dos bancos de alimentos - o trabalho de base iniciado pelos Panteras Negras, nos anos 1960 - seja ignorado. “Trata-se de uma batalha que já se trava há muito tempo”, acrescenta. “O que estamos vendo agora é o resultado de um trabalho que foi feito continuamente, ao longo do tempo, e não recebeu necessariamente a atenção dos meios de comunicação”.
Davis cita a militarização da polícia estadunidense, depois da Guerra do Vietnã, e a oportunidade que o país teve em pressionar pela reforma do sistema penitenciário, após o motim no centro correcional Attica, em 1971, que não se concretizou, pelo menos não da maneira que ela imaginava.
Nos Estados Unidos, a população carcerária passou de cerca de 200.000 prisioneiros, na época do Attica, para mais de um milhão em meados dos anos 1990. “Quando olhamos para trás, realmente percebemos que as reformas serviram apenas para consolidar a instituição e perpetuar o sistema”, diz. “E isso é o que me assusta do momento atual”.
Nesse sentido, que conselho você daria ao movimento Black Lives Matter? “A coisa mais importante do meu ponto de vista é começar a moldar todas as propostas sobre o que podemos fazer na sequência”, destaca.
Esta é, obviamente, uma pergunta importante e difícil de responder no contexto da crescente onda de protestos que está ocorrendo em todo o mundo. Uma coisa que Davis deixa claro é que situações específicas, como a queima de uma delegacia de polícia em Minneapolis e a remoção da estátua de Edward Colston, em Bristol, não são a resposta definitiva.
“Independentemente do que as pessoas pensem a esse respeito, isso realmente não vai produzir nenhuma mudança”, aponta em relação à estátua. “O que importa é como se organizam. O trabalho. E se há pessoas que continuam fazendo esse trabalho e continuam se organizando para combater o racismo e propor uma nova visão sobre como transformar nossa sociedade, é isso que fará a diferença”.
Angela Yvonne Davis nasceu em Birmingham, Alabama, em 1944. O Alabama era controlado pelo conhecido político supremacista branco Bull Connor. Davis era amiga de algumas das pessoas que morreram no ataque à Igreja Batista, da rua 16, em 1963 - um ato de terrorismo da Ku Klux Klan, no qual quatro meninas morreram e pelas quais nenhuma ação legal foi iniciada até 1977. “Já sabíamos que o papel da polícia era proteger os supremacistas brancos”, diz Davis.
Aos 15 anos, mudou-se para Nova York para cursar o ensino médio. Foi para a Alemanha Ocidental para estudar filosofia e marxismo, com Herbert Marcuse, na escola de Frankfurt, e quando retornou aos Estados Unidos, no final dos anos 1960, participou ativamente do movimento dos Panteras Negras e foi membro do partido comunista. Seus vínculos com o comunismo a levaram a ser demitida de seu cargo como professora interina de filosofia na UCLA [Universidade da Califórnia], pelo então governador Ronald Reagan.
Em 1970, ocorreu uma situação que mudou tudo. Uma escopeta que Davis havia comprado legalmente foi usada por um jovem, Jonathan Jackson, que entrou em um tribunal armado e tomou o juiz como refém. O juiz morreu, assim como Jackson e os dois homens que estavam sendo julgados na sala. Davis foi acusada de “sequestro agravado e assassinato em primeiro grau” porque havia comprado a arma. Viveu na clandestinidade até que finalmente foi presa em Nova York.
Aretha Franklin se ofereceu para pagar a fiança para que seu caso se tornasse conhecido, os Rolling Stones e John Lennon escreveram músicas sobre ela. Tornou-se uma causa célebre em todo o mundo e, após passar 18 meses na prisão, foi absolvida de todas as acusações. Após essa experiência, Davis tornou-se uma acadêmica de ideias radicais e líder da comunidade, como uma figura internacional de ativismo político de todas as tendências. “Sou muito grata por permanecer viva”, diz Davis, “porque sinto que estou vivendo o movimento atual em nome de todos aqueles que não chegaram tão longe”.
Davis é consciente de como esteve perto da morte. Quando falou com o jornalista sueco em 1972, ainda estava detida sob acusação de assassinato e poderia, em teoria, ter sido executada. Muitos dos companheiros Panteras Negras de Davis tiveram mortes violentas nas mãos do estado: Fred Hampton foi assassinado em uma emboscada policial em Chicago, enquanto Bobby Hutton foi morto a tiros enquanto se rendia em Oakland (Marlon Brando fez seu panegírico). Muitos outros permanecem na prisão (Mumia Abu-Jamal) ou no exílio (Assata Shakur).
“Sei que poderia ter sido um deles... vários não conseguiram”, diz Davis. “Poderia ainda estar na prisão, poderia ter sido condenada a passar o resto da minha vida atrás das grades. Estou viva porque pessoas de todo o mundo se mobilizaram e me salvaram. Então, de certa forma, nunca parei de travar essa batalha porque sou consciente de que não estaria aqui se outras pessoas não tivessem travado o mesmo tipo de batalha para me salvar. E continuarei fazendo isso até o dia em que morrer”.
Um dos princípios que marcaram a vida de Davis, desde que saiu da prisão, foi trabalhar para que a contribuição das mulheres na luta pelos direitos civis não seja ignorada. Acredita que nesse momento esta contribuição está sendo reconhecida e muitos estão lutando para que mulheres vítimas de violência policial - pessoas como Breonna Taylor, que foi morta a tiros pela polícia em Louisville, Kentucky, depois de usar um instrumento para entrar no seu apartamento - recebam a mesma cobertura que os homens.
“Essa masculinização da história tem muitas décadas e séculos”, diz Davis. “Os debates sobre linchamento, por exemplo, geralmente não só não reconhecem que muitas das vítimas de linchamento eram mulheres negras, como também que aquelas que lutavam contra o linchamento eram mulheres negras, como Ida B Wells”.
“Penso que é importante entender por que tendemos a representar essa luta com figuras masculinas e por que não reconhecemos que as mulheres sempre estiveram no centro dessas lutas, como vítimas ou como organizadoras”. As opiniões de Davis não prevalecem apenas sobre a reforma da polícia e a justiça social, suas ideias sobre como essa mudança ocorre estão provando ser igualmente influentes. Por décadas, promoveu o pensamento feminista que se opõe à liderança política hipermasculina e as formas de resistência. Acredita que os movimentos Occupy Wall Street e Black Lives Matter, que não tiveram um único líder, estão abrindo novos caminhos.
“Há pessoas neste país que perguntam: ‘Onde está o Martin Luther King contemporâneo?’, ‘Onde está o novo Malcolm X?’, ‘Onde está o próximo Marcus Garvey?’”, diz Davis. “E, é claro, quando pensam em líderes, pensam na liderança carismática de homens negros. Mas a organização radical mais recente entre os jovens, que foi um tipo de organização feminista, ressalta a liderança coletiva”.
Mas não há tensão entre os ideais da liderança compartilhada e o fato dela ser considerada um símbolo? “Não posso me levar muito a sério”, diz. “Digo uma vez e outra. Porque nada disso teria acontecido se dependesse de mim como pessoa. O que realmente [fez diferença] foi o movimento e o impacto que teve o movimento”.
Davis já havia tentado que o movimento deixasse de ser minoritário e passasse a ser uma corrente majoritária. De fato, concorreu às eleições em 1980 como candidata a vice-presidente do Partido Comunista dos Estados Unidos. Em uma conferência em 2006, falou com desespero da presidência de George W. Bush e agora nem se atreve a pronunciar o nome de Trump, preferindo falar “do atual morador da Casa Branca”. Acredita que a democracia americana tem espaço para ideias radicais sobre mudança social? “Não acho que isso possa acontecer”, diz Davis. “Não com a liderança das atuais formações políticas, não com os Democratas e, certamente, não com o Partido Republicano”.
Mas e os democratas ajoelhados e usando tecido kente como um sinal de solidariedade? Nancy Pelosi e outros proeminentes democratas usaram o tecido de Gana, dado a eles pelo Caucus Negro do Congresso, para mostrar “solidariedade” aos afro-americanos, uma base de eleitores crucial, com a qual o seu candidato à presidência Joe Biden está tentando se conectar. “Isso foi porque querem estar do lado certo da história”, diz Davis, com desdém. “Não necessariamente porque vão fazer o correto”.
Em suas conferências, Davis às vezes conta uma história sobre como, quando criança em Birmingham, em um contexto de segregação racial, perguntou à mãe por que não podia ir ao parque de diversões e às bibliotecas. Sua mãe, que era ativista antes dela, explicou como a segregação funcionava, mas seu discurso não parou aí. “Dizia-nos continuamente que as coisas mudariam”, diz Davis. “E que mudariam, e que poderíamos fazer parte dessa mudança. Então, quando criança, aprendi a viver sob a segregação racial, mas ao mesmo tempo, a viver em um novo mundo imaginado e a reconhecer que as coisas não seriam sempre como eram”. “Minha mãe sempre nos dizia: ‘As coisas não deveriam ser assim, o mundo não deveria ser assim’”.
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Estados Unidos. “Vivo o movimento atual em nome de todos aqueles que não chegaram tão longe”, afirma Angela Davis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU