04 Janeiro 2024
Paola Cavallari, escritora feminista e redatora do Esodo, analisa primeiro as formas do tipo ideal militar, em seguida tematiza a categoria da guerra como produto histórico de lógicas viris e, finalmente, o foco dirige-se para o repúdio à guerra, sobre o qual se deve pensar, segundo a autora, numa perspectiva de longo prazo de transformação das consciências.
O artigo é de Paola Cavallari, escritora feminista e redatora da revista Esodo, publicado por Esodo, número 4, outubro-dezembro de 2023.
[…] Com as armas eles obrigam os outros a sonhar os seus sonhos.
O vencedor vive o seu sonho, o vencido vive o sonho alheio.
Simon Weil
No clima de apreensão, infausta, sombria, que estamos vivendo neste fim de 2023, onde as guerras se somam a guerras, e os temidos presságios de armas nucleares lampejam cada vez mais claramente nas nossas mentes, reli a correspondência entre o filósofo judeu alemão Gunter Anders e Claude Eatherly, o major do Exército dos EUA que participou da missão de bombardeio de Hiroshima, aquele que deu o sinal verde1.
Anders foi profundamente afetado pela tragédia existencial de Eatherly: ele enlouqueceu, aquele homem, por causa do indizível mal cometido. Além disso, precisamente por ter sido arrasado pelo horror realizado, ele foi profundamente estigmatizado, desprovido, aniquilado pelas estruturas militares do país pelo qual havia executado as ordens2.
Na troca de cartas percebemos a solicitude de um luminoso cuidado pelo ex-major; também ele – escreve Anders – foi vítima de Hiroshima. O filósofo demonstra uma atenção fraterna para com aquele homem que, após o ato exterminador, não conseguiu mais encontrar a paz. Os remorsos de consciência que o habitavam são maldosamente interpretados pelas hierarquias militares como sintomas mórbidos de uma consciência frágil, frágil demais para um Homem de caráter.
Eatherly não seria culpado de ter causado uma carnificina, mas de desarticular o tipo ideal militar. A ele é proibido se arrepender: “O arrependimento foi a sua condenação”, escreve-lhe Anders.
Não se podia permitir que os modelos viris desmoronassem por um desviante: ele tinha que ser rotulado como caso psiquiátrico, salvando o sistema assassino que havia sido a origem daquela alma dilacerada3. Ao maior eram contrapostos "heróis sorridentes": como o compatriota Joe Stiborick, ex-operador de radar no Enola Gay, que havia declarado: "Foi só uma bomba um pouco maior que as outras", ou no presidente dos EUA, aquele que decidiu prosseguir: numa entrevista declarou que não sentia a menor “pangs of conscience”4; como se apenas a falta de remorso fosse prova de inocência5.
Se o vacilar de Eatherly e sua progressiva fragmentação provoca rachaduras nos paradigmas viris imperantes nas forças armadas, mesmo entre os civis não foi menor a pedra de escândalo. Tinha que ser "isolado" absolutamente: também será destituído de autoridade no seu empenho pelo desarmamento.
Minha contribuição ao tema gênero/sexo e guerra encontra nessa correspondência a possibilidade de dissecar a convergência estrutural entre guerra e masculinidade. De fato, no epistolário podemos perceber o quanto a identidade masculina, por milênios inspirada no paradigma do guerreiro, se alicerça num modelo antropológico arcaico, mas vital.
Eatherly, assim como o homem afeminado, ou o judeu6, ou o homossexual “passivo” evocam fantasmas perturbadores que esfacelam o protótipo do verdadeiro homem, ousado, autossuficiente, vigilante no controle de emoções, coriáceo à empatia, baseado no autodomínio, sem rachaduras, tropeços, hesitações; modelo centrado no código de honra: para não ser manchado ou difamado, a honra patriarcal submete toda a família/clã aos seus ditames, com proibições e constrições, especialmente sexuais, para as mulheres.
“O conceito de honra está associado à coragem ou ao sangue frio”. “O contraste entre virilidade e efeminação foi uma constante na construção da masculinidade moderna, baseada em numa militarização da masculinidade”, observa o historiador George L. Mosse.
“O movimento feminista contra a guerra, a violência estatal e a luta armada é extremamente importante. Vimos isso nos Balcãs, na Turquia, na África do Sul ou na América Latina, onde há enormes movimentos pela democracia e contra a violência. Ni Una Menos ou as lutas indígenas não estão envolvidas na luta armados, mas em mobilizações de massa que lutam para estender a democracia a toda a população.
Na antiga Jugoslávia, as “mulheres de preto” eram contra a violência, toda violência, sérvia ou croata.
Temos muito que aprender com os movimentos feministas porque refletiram por décadas sobre a violência em todos os níveis, seja do Estado, da polícia ou da família"8. Essas são palavras recentes da filósofa judia Judith Butler: essenciais, incisivas; especificam, entre outras coisas, que as violências vêm do “Estado, da polícia ou da família”. E dever-se-ia acrescentar: das instituições religiosas. Por que as mulheres são tão sensíveis a um repúdio à guerra? Por que "como mulheres" podem reivindicar uma palavra contra? Não porque as mulheres sejam essencialmente (ou por natureza) mansas. É mais porque a guerra está historicamente inscrita no masculino e é produto dos homens. O slogan "tirem a guerra da história" - que muitos/as antimilitaristas, não violentos/as e pacifistas proclamam - é incompleto, carece de um elemento caracterizante fundamental. Se for omitido, o enunciado obscurece a raiz da guerra: a ideologia patriarcal militarista. O slogan poderia ser reformulado: "tirem a guerra dos homens da história".
Raramente, muito raramente, ouço vozes que ligam a guerra ao "instinto viril", que consideram o parentesco próximo que existe entre a beligerância e a milenária cultura de dominação masculina; e se questionam sobre a sua responsabilidade. Os produtos da cultura de um patriarcado milenar são certamente também outros: obras de civilização e conhecimentos irrenunciáveis. É claro que nem todos os homens se inspiram nos valores que descrevi. Mas não se negará o tipo ideal que é paradigma na construção da identidade masculina e que permeia o imaginário coletivo. Depois, felizmente, há os desertores que realizaram um êxodo corajoso e difícil do código vigente. Lembro-me mais uma vez das palavras de um deles, um pastor, um homem consciente, como ele mesmo se define: iniciava um dos seus escritos com estas palavras: “Na minha trajetória aprendi que a violência é constitutiva do gênero masculino”9.
Estaria prestando um péssimo serviço ao leitor/a se ignorasse10 aquela que é uma tragédia dentro da tragédia: os estupros de guerra. Já na edição de Esodo, 03-2021, desenvolvi esse tema. Escrevi: “O estupro de guerra configura-se como disputa entre combatentes do sexo masculino perpetrada pelo terror e aniquilação de corpos de mulheres... É cifra e troféu de uma dominação biopolítica que, na zombaria e na humilhação do inimigo, confirma a lei patriarcado de posse sobre as próprias mulheres e o controle patrilinear sobre a descendência". Mas as crueldades e as infâmias não param aqui: "a lógica sexista ainda hoje vê a vítima como o 'fruto vivo da desonra'; em sua carne se deposita a vergonha de um crime pelo qual ela - não os agressores - é tornada culpada"11.
Em muitos países, a morte civil ou, por vezes, a morte física são o destino desumano da vítima, quer o crime tenha ocorrido na guerra ou em outros contextos de hostilidade ou em tempos de “paz”. "Fui ao hospital para visitar uma garota que havia sido estuprada, mas nenhuma das internadas resultava ter sofrido violências sexuais. Eu tinha outros nomes de mulheres violentadas. Fui procurar uma delas, em sua casa, mas ela não estava mais lá. Enterrada viva ou morta pela família para salvar a honra”12.
Um verdadeiro, sério e fecundo confronto com a mentalidade bélica (que não só gera guerra, mas uma ampla constelação a flanqueia: ataques, atentados, conflitos armados, confrontos, batalhas, etc.) deve abordar uma profunda transformação das consciências, o que requer necessariamente uma perspectiva de longo prazo, com o objetivo (utópico, mas precisamos de utopias) de desaguar numa inversão de estilos de vida.
Devo essa convicção a Etty Hillesum, a escritora judia morta em Auschwitz. Na fúria do Holocausto, ela expandia a sua consciência com resultados surpreendentes e agia como um bálsamo sobre as feridas daqueles que estavam ao seu lado.
Conversando com um amigo, dizia algo assim: contra o ódio daqueles que nos aniquilam, não serve a resposta reativa, eficientista. O único caminho verdadeiro, que vai até a raiz da metástase do mal, é a metamorfose das consciências. E o primeiro passo dessa mudança centra-se na capacidade de amar mantendo sob controle o instinto da posse.
Outras páginas retomam o tema, selado nas palavras: “Para humilhar alguém é preciso que haja dois: aquele que humilha e aquele que é humilhado e, sobretudo, que se deixa humilhar. Se faltar o segundo, isto é, se a parte passiva é imune a qualquer humilhação, ela evapora no ar”13.
Mas gostaria de evocar outra página para dar ainda mais brilho a essa ignição da alma. "Quarta-feira, 23 de dezembro de 1942. Klaas, nada pode ser feito com o ódio... veja aquele nosso assistente... Ele odeia seus perseguidores com um ódio justificado. Mas ele também é um homem cruel. Ele seria um chefe perfeito de um campo de concentração... Veja Klaas, aquele homem estava cheio de ódio por aqueles que poderemos chamar de nossos algozes, mas ele também poderia ter sido um perfeito carrasco e perseguidor de homens indefesos. No entanto, ele me causava muita apena... Gostaria muito de entender os medos daquele homem e descobrir sua causa, gostaria de empurrá-lo de volta para seus territórios internos; é a única coisa que podemos fazer nestes tempos"14. O horizonte aludido, no léxico da filósofa Elena Pulcini, é uma política do cuidado, entendida no seu significado elevado e de autoridade: uma política, ou seja, gestão da polis, que tenha como objetivo constitutivo o incremento da consciência individual e comunitária, o empenho pedagógico e político para a formação de homens e mulheres maduros, responsáveis, capazes de trabalho duro, mas também de ganho da aceitação da dualidade constitutiva do gênero humano, da interdependência entre todos os seres vivos, do sentir empático, do agir na reciprocidade, no autêntico diálogo Eu-Tu.
O demônio da guerra é muito mais invasivo, fugidio e, em alguns aspectos, perturbador, do que a guerra na representação padrão, por exemplo nas imagens televisivas dos correspondentes de algumas redes de TV. As suas sementes se escondem em lógicas da “defesa dos princípios sagrados”: se desprovidos de suas camuflagens “civis”, revelam a face da hybris, daquele impulso à prepotência que o mundo clássico já tematizou. As raízes afundam no ódio e na vingança. Mas esses nomes quase nunca são reconhecidos como sentimentos que “me dizem respeito”, como fonte de nossas ações. Somos reféns do medo de “nos olharmos”, reconhecendo, com a consciência lúcida, o mal de que formos atores.
Exemplar nesse sentido é a conhecida história contada na Bíblia, onde Davi é levado a reconhecer seus erros através do truque maiêutico ao qual o profeta Natã o submeteu. Este último, com um propósito que é tudo menos que ingênuo, conta a Davi a história de um crime, que parece totalmente desconhecido para o interlocutor. Mas depois a indignação apaixonada do rei o domina a ponto de repreender o malfeitor mencionado, que merece, em sua opinião, ser punido. Então, quem é esse abjeto? Reviravolta: acontece o reconhecimento. Natã lhe responde com firmeza: “Aquele homem é você”. Davi havia se manchado de um crime grave que depois renegara: o preço era a profunda dissociação de si mesmo, ou seja, o eclipse da face de Deus16.
As sementes do demônio da guerra espreitam no subliminar, na irrelevância da cotidianidade, dos gestos simples e comuns: rivalidades, competições, ostentações de primazia, reivindicações para salvaguardar privilégios, apresentados como “direitos”, entrincheiramentos apresentados como defesas sacrossantas17, prevaricações de si mesmos irreconhecíveis do amour del soi.
Quando o/a outro/a, no entanto, se apresenta com sua subjetividade inevitável, com sua diferença, com seu rosto irredutível, sua posição diante de nós é então experimentada como uma ruptura ilegítima de uma ordem natural, uma injustiça recebida, por isso é necessário destruí-la, contra-atacar e restaurar o status anterior. Noutro âmbito que nos diz respeito de perto, aqui e agora, aquele dos migrantes, Alessandra Fussi observou: “A maioria dos gregos percebia a arbitrariedade e a injustiça da escravidão, mas não conseguia imaginar um modo de vida alternativo. Da mesma forma, não é que hoje não estejamos percebendo que condenar milhares de migrantes à morte por afogamento ou às torturas nas prisões líbias seja desumano e racista. Mas não estamos dispostos a questionar os privilégios que o atual regime de apartheid econômico-político, em nível internacional, garante-nos"18.
A cegueira diante das instâncias de quem é filha/o de um deus menor também espreita nas altas esferas da organização social, na cultura prudente e progressista. Apenas um exemplo: no debate na Constituinte sobre os artigos do sistema familiar, Pietro Calamandrei, o ilustre pai constituinte e ícone do antifascismo, declarou-se contra a igualdade dos cônjuges. Ele argumentou que a primazia da marido constituía “uma exigência daquela unidade da família desta sociedade que, para poder viver, precisa ser representada e dirigida por uma única pessoa". Essa pessoa era, mais uma vez, de sexo masculino; que, além disso, louvava principalmente a subserviência feminina, definindo a mulher “sacerdotisa doméstica da humanidade”; aquela que temperava o instinto à força; ou seja, como disse Auguste Comte, aquela que “modificava com o afeto o reinado necessário da força”20. Com interessantes exceções: na camaradagem militar o contato com o mundo feminino também é interpretado como subtração da virilidade21, que não pode ser arranhada, mas preservada para a honra do guerreiro.
1) Il pilota di Hiroshima, ovvero: la coscienza al bando, Linea d'ombra editore, 1992.
2) Existem muitas ressonâncias com o caso Eichmann. A “banalidade do mal” e os condicionamentos “banais” que a cultura androcêntrica exerce sobre os homens deveria, mais cedo ou mais tarde, ser objeto da cultura política.
3) Seria necessário rever a literatura que nas décadas de 1960 e 1970 tematizou o tema das instituições totais (o famoso texto Asylum, de Goffman), elevando-o a questão política.
4) Penas de consciência.
5) Il pilota di Hiroshima, cit., p. 32.
6) A reflexão sobre a convergência entre homem afeminado e o judeu é de George L. Mosse, L'immagine dell'uomo. Lo stereotipo maschile nell'epoca moderna, Einaudi, 1997.
7) George L. Mosse, L'immagine dell'uomo. Lo stereotipo maschile nell'epoca moderna, Einaudi, 1997, p. 21 e p. 59.
8) Judith Buffer: “Só uma democracia radical pode pôr fim à violência no Médio Oriente”, il Manifesto, 17.10.2023.
9) Daniele Bouchard, "Herança e responsabilidade de um homem consciente e cristão crítico", Non solo reato anche peccato, religioni e violenza sulle donne, Effatà ed., 2018, p. 81.
10) Estou ciente de que o tema exigiria mais espaço, de que não disponho aqui.
11) Paola Cavallari, "Ish e Ishàh", Esodo 3-2021, p. 10.
12) Giuliana Sgrena, citada por Codrignani, L'amore ordinato, Effatà, 2005, p. 84.
13) Etty Hillesum, Diario integrale, 1941-1942, Adelphi, 2012, p. 637.
14) Ibid., p. 768-770.
15) Inútil repetir que essa formação não pode prescindir de saberes/práticas das mulheres.
16) 2Sm 12.
17) Lembremos de um por todos: a famosa “defesa da raça” de italiana memória.
18) Valentina Pazè, Libertà in vendita, Bollati Boringhieri, 2023, p. 141.
19) Citado de Alessandro Bellassai, La legge del desiderio. Il progetto Merlin e l'Italia degli anni cinquanta, Carocci ed., 2006, p. 77.
20) Ibid., p. 58.
21) Alessandro Bellassai, L'invenzione della virilità, Carocci editore, 2011, p. 80.
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Guerra e masculinidade. Artigo de Paola Cavallari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU