25 Novembro 2023
“Não sei se os líderes de Israel se dão conta do tsunami de horror que estão desencadeando na psicosfera global. Um mês de horror ininterrupto que, em primeiro lugar, apagou o horror de 7 de outubro da psique coletiva e, depois, criou as condições para uma mutação monstruosa na percepção que a mentalidade planetária tem de Israel”. A reflexão é de Franco Berardi, em artigo publicado por Observatorio de la Crisis, 22-11-2023. A tradução é do Cepat.
Moshe Dayan afirmou em 1967 que Israel deveria agir como um cão raivoso, para que os seus inimigos soubessem que as suas ações hostis receberão uma resposta incomensurável. Uma estratégia que amplia infinitamente o bíblico “olho por olho”.
Atacar escolas, destruir hospitais, matar, matar, matar. Muito bem, entendemos isso, mas não sei se os líderes de Israel se dão conta do tsunami de horror que estão desencadeando na psicosfera global. Um mês de horror ininterrupto que, em primeiro lugar, apagou o horror de 7 de outubro da psique coletiva e, depois, criou as condições para uma mutação monstruosa na percepção que a mentalidade planetária tem de Israel.
De uma perspectiva clínica, a grande maioria dos israelenses hoje aparece como psicopatas que perderam toda a inibição moral e são, portanto, perigosos para os outros, mas também para si mesmos e para qualquer pessoa que confiar neles, para qualquer pessoa a quem de alguma forma o seu destino tenha sido entregue.
Todo o Ocidente, por razões nada nobres (o sentimento de culpa ligado ao Holocausto que se transformou numa identidade negativa da Europa), entregou o seu destino a Israel. O presidente Biden entregou o seu destino a Israel.
Houve massacres no passado: os do Estado Islâmico na Síria, os de Fallujah com o fósforo branco dos estadunidenses em 2005, etc. Mas nenhum dos incontáveis surtos de violência foi transmitido de forma contínua em todas as telas do mundo durante um mês ou sabe-se lá quanto tempo mais. Ninguém ocupou tão completamente a infosfera e, consequentemente, a psicosfera de todo o planeta.
Que consequências esperam os vingadores israelenses deste tsunami de horror, para além da improvável aniquilação do Hamas?
Pode-se expor o corpo torturado de uma população inteira sem pagar o preço?
Ninguém sabe como evoluirá a situação político-militar, mas podemos supor que os Estados Árabes, muito mais atentos aos bolsos das elites nacionalistas do que à solidariedade islâmica, continuarão com as suas condenações sem abrir mão dos negócios e acordos com Israel. Este não é o preço que Israel irá pagar. Os establishment ocidental e árabe não romperão com a entidade sionista.
O preço que Israel irá pagar é a sua desintegração moral. A classe dominante de Israel está impregnada de cinismo e arrogância, não recuará perante qualquer crime para manter o controle da situação, mas não será capaz de manter esse controle por muito tempo, porque a catástrofe dos palestinos é a catástrofe moral dos israelenses.
A memória judaica não pode coexistir por muito tempo com a responsabilidade pelo genocídio. A comunidade judaica americana ocupou os corredores do Capitólio e da Estátua da Liberdade para dizer: “Não em meu nome”, para rejeitar a identificação com os exterminadores de Israel.
Israel não é mais (se é que alguma vez foi) uma representação do judaísmo; é a sua vergonha, a sua imagem invertida.
Aquilo que o sionismo identificou incorreta e perigosamente como o Estado dos judeus não conseguirá sobreviver em meio ao ódio que o genocídio israelense desperta em populações que guardam na memória a humilhação colonial. E, acima de tudo, o Estado de Israel está hoje isolado entre as novas gerações que se identificam com os palestinos de todo o mundo, não tanto por razões históricas e políticas, mas por causa da percepção de uma condição claustrofóbica comum, de uma ausência comum de caminhos futuros e caminhos de saída. Esta percepção faz dos palestinos a vanguarda da última geração global.
Há algo de horrível na forma como os europeus viram as costas quando um genocídio está ocorrendo a uma curta distância deles, assim como fizeram nas décadas de 1930 e 1940, quando um genocídio estava ocorrendo no seu território, mas não diante dos seus olhos mediatizados como acontece hoje.
É difícil descrever a transformação de Israel sem fazer referência ao trauma original, ao Holocausto, ao desejo de vingança das suas vítimas e que cria ao longo de décadas.
Tudo isso tem pouco a ver com política e muito com psicopatologia. O cão raivoso de que falou Dayan está realmente louco. É preciso entender a gênese da sua loucura, que não se manifesta hoje, mas começou a se manifestar em 1948.
Tocamos aqui num ponto extremamente delicado e doloroso, que se refere à evolução do inconsciente israelense, distanciando-se e diferenciando-se da cultura judaica.
Antes de sua morte em 1967, Isaac Deutscher escreveu sobre o judaísmo preso na armadilha do Estado-nação:
“O mundo forçou os judeus a abraçar o Estado-nação e a orgulhar-se dele precisamente quando há poucas esperanças para o futuro nisso. Não se pode culpar os judeus, o mundo é culpado disso. Mas pelo menos os judeus deveriam estar conscientes do paradoxo e compreender que o seu entusiasmo pela soberania nacional é historicamente lento. Espero que os judeus acabem por se conscientizar da insuficiência do Estado-nação” (Isaac Deutscher, The Non Jewish Jew).
Desde as suas origens, Israel quis ser uma nação, e por isso recorreu à expulsão, à perseguição, ao internamento e à subjugação da população presente naquele território – Franco Berardi
Não foi isso que aconteceu: desde o início, a existência de Israel coincidiu com a traição da cultura judaica moderna. Desde as suas origens, Israel quis ser uma nação, e por isso recorreu à expulsão, à perseguição, ao internamento e à subjugação da população presente naquele território.
Agora todos percebem a armadilha em que caiu o Estado sionista.
O presente dos colonialistas ingleses, prometido por Balfour em 1917 e entregue em 1948, revela-se como o que era desde o início: um presente envenenado.
Os palestinos também entraram no túnel sem saída do Estado-nação.
A fórmula “dois povos, dois Estados” sancionava o caráter identitário e tribal do Estado nacional e negava qualquer possibilidade de coexistência pacífica de duas comunidades dentro da mesma entidade política.
As duas entidades estatais (a existente de Israel e a inexistente mas proclamada da Palestina) acabaram por se identificar com as suas componentes mais identitárias, fundamentalistas, religiosas ou abertamente fascistas.
O genocídio em Gaza é o epicentro de um cataclismo que dividirá a humanidade de forma duradoura: o sul do mundo e os subúrbios das grandes metrópoles ocidentais cercam a cidadela branca com um muro de ódio que alimentará a vingança nos meses e anos vindouros. Este evento inaugura o século de confronto entre a raça colonial e o mundo colonizado.
Israel é o posto avançado do racismo colonialista no mundo.
O epicentro do terremoto está na terra dos três monoteísmos, mas o terremoto está em toda parte. Não me parece que se originem desse epicentro vibrações capazes de desencadear uma guerra mundial, mas uma guerra caótica composta por inúmeros fragmentos de violência.
Talvez o conflito no Médio Oriente se tenha transformado numa guerra entre fanáticos bárbaros, mas o Ocidente é responsável pelo massacre e pelas suas consequências, e está destinado a ser arrastado para esta louca disputa.
Em nome da defesa de Israel, a Europa está apagando o Estado de direito, proibindo os protestos pró-palestinos e criminalizando os símbolos palestinos.
Os hipócritas estão indignados com o antissemitismo que emerge, mas é claro que o antissemitismo encontra terreno fértil no ódio que Israel alimenta, e está cada dia mais claro que Netanyahu conduziu o seu povo para talvez a mais terrível guerra suicida esquecendo que numa guerra suicida o fundamentalismo islâmico é imbatível.
Por que a Europa é cúmplice do genocídio? Diz-se que um sentimento de culpa leva os europeus a defender Israel, mas penso que a questão é outra. A defesa acrítica de Israel faz parte de um processo de autodefesa da decadente civilização ocidental.
Os racistas mobilizaram-se para defender Israel: os descendentes de Pétain, os colaboradores antissemitas de todos os tempos, juntamente com o racista declarado Eric Zemmour, marcham exigindo a representação da França branca, enquanto a militante de 72 anos pelos direitos das mulheres palestinas Mariam Abu Daqqa é expulsa porque ousou dizer que Israel é responsável por uma ocupação colonial, e enquanto em todas as metrópoles os banlieues (subúrbios) se refugiam em um silêncio ameaçador.
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Epicentro. Artigo de Franco Berardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU