31 Outubro 2023
"Mas, como ensina a história de Florence Nightingale, no que diz respeito a assistência médica, são sempre as guerras que permitem avanços na prática hospitalar. A guerra e, acrescente-se, as enfermeiras – em particular as enfermeiras inglesas, jovens mulheres da alta sociedade, cultas e com a possibilidade de serem ouvidas pelo governo – são as forças que estimularam e criaram a mudança", escreve Lucetta Scaraffia, jornalista e historiadora italiana, em artigo publicado por Il Foglio, 26-10-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em nossa sociedade, a piedade, a participação comovida nos sofrimentos alheios, assume uma forma nunca antes vista: apagar a dor por meio da morte provocada de quem está sofrendo. Não que antes todos estivessem prontos a lidar misericordiosamente com o sofrimento incurável dos moribundos, a ajudar com amor nas últimas horas, ou nos últimos dias: como veremos, prevaleceu a tendência de colocá-los de lado, tentando esquecê-los. Mas pelo menos não havia planos para matá-los. Porém, no início do século XX, a presença de tantas pessoas incuráveis e à beira da morte nos hospitais pôs o problema para a comunidade. De fato, os hospitais ampliaram seu raio de ação e capacidade de cura após a descoberta das bactérias e, portanto, da sepse. Anteriormente, quem ia ao hospital era apenas alguém pobre, sem possibilidade de assistência, que corria o risco de adoecer ainda mais gravemente simplesmente por estar num local cheio de bactérias e vírus. Mas, por volta de meados do século XX, a situação mudou: a higiene generalizada e, sobretudo, a descoberta dos antibióticos tornaram os hospitais um local de cura relativamente seguro, onde também os pertencentes às classes média-alta procuravam assistência – se estivessem gravemente doentes.
Mas, como ensina a história de Florence Nightingale, no que diz respeito a assistência médica, são sempre as guerras que permitem avanços na prática hospitalar. A guerra e, acrescente-se, as enfermeiras – em particular as enfermeiras inglesas, jovens mulheres da alta sociedade, cultas e com a possibilidade de serem ouvidas pelo governo – são as forças que estimularam e criaram a mudança.
Isso é confirmado pela história de Cicely Saunders, uma enfermeira de uma família rica empenhada no cuidado dos feridos durante o desembarque na Normandia. Sua súbita atração por um belíssimo oficial gravemente ferido a leva a descobrir que os feridos sem esperança são transferidos para uma Zona onde os médicos não atendem mais e apenas freiras dedicadas e piedosas os atendem até à morte. Uma morte que, no entanto, chega depois sofrimentos terríveis, porque não lhes são injetadas doses suficientes de morfina, com a motivação absurda de que isso os levaria à dependência.
Por amor ao oficial, Cicely confronta o médico que nega a morfina, com a frase que mais tarde marcará toda a sua vida: “Assuma as suas responsabilidades, não fique preso aos protocolos!” Cicely sempre assume as responsabilidades e por isso mesmo, aos quarenta anos, decide se formar em medicina, para finalmente poder decidir como ajudar as pessoas prestes a morrer.
Conta-nos a sua história um fascinante romance biográfico, Di cosa è fatta la speranza (De que é feita a esperança, em tradução livre, Bompiani), de Emmanuel Exitu, que reconstrói as dificuldades encontradas por uma mulher, mesmo que de família rica, em realizar algo novo no campo da assistência aos doentes incuráveis. Em meio a mil resistências, contínuas humilhações – até de sua própria família – e com a ajuda de duas amigas preciosas e de uma freira enfermeira da Caridade, Cicely consegue concretizar o seu projeto: um hospital para doentes incuráveis à espera da morte, o que hoje chamamos de hospice (unidade de cuidados paliativos). Um lugar para cuidar de suas dores terríveis, experimentando novas terapias analgésicas, sem economizar nos opiáceos, para devolver o amor à vida àqueles que agora estão reduzidos a um amontoado de sofrimento e mais nada. A terapia não é apenas farmacológica: cada doente é acompanhado por médicos e enfermeiras com a escuta, as conversas sérias ou divertidas, porque a morte é encarada como a realização de uma vida, e nesse contexto os últimos desejos adquirem novo significado e poder taumatúrgico.
Di cosa è fatta la speranza (De que é feita a esperança, em tradução livre, Bompiani), de Emmanuel Exitu (Foto: Divulgação)
No hospice renasce a vida, sem a preocupação de uma dor insuportável, reconstituem-se as relações com os entes queridos, com os quais se pode trabalhar um longo adeus que conduz a uma morte pacificada. No hospice cozinham-se doces - quem já não consegue mais comê-los participa na festa coletiva, sentindo o aroma dos bolos, que já é uma festa em si - ouve-se música e canta-se. Cicely organiza um coral entre os doentes, quem sabe tocar encontra a possibilidade de compartilhar a música com outras pessoas, cria-se uma comunidade de moribundos muito vivos, capazes de piadas irônicas sobre seu destino agora selado.
Um dos momentos mais divertidos contados é quando um domador hospitalizado, que gostaria de viver até o nascimento de um filhote de elefante, recebe a visita do próprio filhote de elefante no hospital, para a diversão de todos os pacientes.
Saunders ensinou a todos que a civilização deve se confrontar com a morte, que não pode simplesmente colocá-la de lado, e que isso é possível para ateus e crentes, quando se volta a respeitar todo destino humano.
Essa biografia é um livro que deveriam ler todos os defensores da eutanásia, do suicídio assistido ou similar, porque demonstra praticamente como existe outra possibilidade de ajudar quem está prestes a morrer com misericórdia, uma possibilidade digna do ser humano, pensando primeiro no respeito pela vida e no sentido do destino de cada um que está à custa do cuidado, nunca evocado mas que é a verdadeira motivação da febre de eutanásia do nosso tempo.
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A civilização que se confronta com a morte é aquela que respeita cada destino humano. “Do que é feita a esperança”. Um livro. Artigo de Lucetta Scaraffia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU