17 Agosto 2022
“Nossa experiência de vida como graça é real e culturalmente benéfica. A redução do valor da vida ao exercício da autonomia não deixa espaço para noções de dom ou graça. Além disso, o pensamento católico sobre o florescimento dos indivíduos está sempre, sempre, sempre relacionado ao ideal de bem comum. Estas são as duas razões pelas quais os católicos se sentem compelidos a defender tão profundamente a vida humana”, escreve o jornalista estadunidense Michael Sean Winters, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 17-08-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
O Canadá está engajado em um importante, e algumas vezes assustador, debate sobre o direito à vida ou, ao fim da vida, no extremo oposto do espectro do debate que está acontecendo aqui nos EUA. Eles estão debatendo a prática generalizada da eutanásia e se a liberalização das leis de eutanásia está ou não de acordo com os valores de seus tribunais.
Em 2015, a Suprema Corte do Canadá sentenciou no caso Carter vs. Canadá que as proibições contra o suicídio assistido e a eutanásia violavam os direitos fundamentais dos cidadãos canadenses. A corte sustenta que “uma resposta individual para uma condição médica irremediável e atroz é um assunto crítico para a dignidade e a autonomia. A proibição nega às pessoas nessa situação o direito de tomar decisões sobre sua integridade corporal e cuidados médicos e então entrincheira suas liberdades. E por deixá-las persistir em sofrimento, isso implica na segurança da pessoa”.
Em uma frase francamente orwelliana, o tribunal canadense considerou que “a proibição priva alguns indivíduos da vida, pois tem o efeito de forçar alguns indivíduos a tirar a própria vida prematuramente, por medo de serem incapazes de fazê-lo quando chegou ao ponto em que o sofrimento era intolerável.”
A lei resultante, aprovada em 2016, não produziu os resultados elevados e nobres que os juízes da corte canadense poderiam esperar, especialmente depois que uma emenda liberalizou ainda mais a lei. Com efeito, qualquer pessoa com deficiência pode pedir o fim de sua vida.
Os ativistas da deficiência entenderam corretamente que isso tem o efeito de dizer que suas vidas não são tão valiosas quanto as vidas daqueles que não são deficientes. “Os esforços de nosso governo, principalmente nos últimos anos, têm impulsionado amplamente o fornecimento de opções para morrer, em vez de realmente trabalhar para tornar as coisas melhores, mais fáceis e mais funcionais para pessoas com deficiência”, disse Jeff Preston, canadense com deficiência física, em 2020, quando a lei estava sendo debatida.
Ativistas de direitos humanos para idosos e pobres, bem como para deficientes, argumentaram que o sistema canadense viola os direitos dos três grupos. Eles escreveram que “reduzir o número de testemunhas necessárias e aceitar funcionários pagos como testemunhas independentes” representava uma ameaça real para “aqueles sem redes de apoio adequadas de amigos e familiares, em idade mais avançada, vivendo na pobreza ou que podem ser marginalizados por sua raça, indígena, identidade de gênero ou outro status.” Essas pessoas “serão mais vulneráveis a serem induzidas a acessar MAiD [Assistência Médica ao Morrer]”.
Tim Stainton, diretor do Instituto Canadense de Inclusão e Cidadania da Universidade da Colúmbia Britânica, disse à Associated Press que a lei do Canadá é “provavelmente a maior ameaça existencial às pessoas com deficiência desde o programa nazista na Alemanha na década de 1930”.
Alguns países, como os Países Baixos, onde a eutanásia é legal há 20 anos, fazem revisões mensais de casos difíceis, embora seja difícil imaginar um caso que não seja “difícil”, e nos perguntamos por que as revisões são realizadas após o fato. Ainda assim, as autoridades holandesas vêm investigando alguns abusos dentro de seu sistema e o sistema canadense só tem uma revisão anual que segue as tendências.
E as tendências são alarmantes: mais de 10 mil canadenses morreram por eutanásia em 2021, um aumento de 32% em relação ao ano anterior. Os números de 2020, por sua vez, representaram um aumento de 36% em relação a 2019.
É isso que a Suprema Corte do Canadá quis dizer com “justiça fundamental” quando emitiu sua conclusão em Carter vs. Canadá? Os juízes escreveram: “A proibição da morte assistida por médico infringe o direito à vida, liberdade e segurança da pessoa de uma maneira que não está de acordo com os princípios da justiça fundamental”. É este um resultado que se assemelha até à justiça?
A ligação da dignidade humana com a autonomia pessoal feita por aqueles que defendem o suicídio assistido é muito fácil. A autonomia pessoal e a integridade corporal, que não são a mesma coisa, são constitutivas, não exaustivas, da dignidade humana. Este fato moral pertence ao debate sobre o aborto, bem como a eutanásia, e o faz de maneiras complicadas, como apontado recentemente pela professora do Boston College, Cathleen Kaveny.
Os defensores das pessoas com deficiência entendem isso muito bem: a diferença entre sua autonomia e sua dignidade é muitas vezes a medida de seu sofrimento. É sempre a medida da compaixão ou indiferença da sociedade. Essa é uma das razões pelas quais a advertência do Santo Padre contra uma “cultura do descarte” é tão poderosa: atinge uma verdade moral óbvia, embora desconfortável.
Além disso, nossa experiência de vida como graça é real e culturalmente benéfica. A redução do valor da vida ao exercício da autonomia não deixa espaço para noções de dom ou graça. Além disso, o pensamento católico sobre o florescimento dos indivíduos está sempre, sempre, sempre relacionado ao ideal de bem comum. Estas são as duas razões pelas quais os católicos se sentem compelidos a defender tão profundamente a vida humana.
Não é necessário recorrer a ideias religiosas para se preocupar com esse desenvolvimento assustador no Canadá. O potencial de coerção – familiar, social ou cultural – é assustador à primeira vista e tem sido muito pouco abordado no Canadá. Parece impossível declarar que certas pessoas deveriam ter permissão para acabar com suas vidas sem sugerir que outras como elas deveriam ser encorajadas a fazê-lo também se parecerem um dreno dos recursos de uma família ou de uma sociedade. Este é o território do Admirável Mundo Novo.
O suicídio assistido é legal em 10 estados dos EUA, onde 10 é muito. A morte vem para todos nós. Uma sociedade que a abraça, não como uma realidade, mas como uma escolha, é uma sociedade que está a caminho de se tornar moralmente grosseira.
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Canadá. Leis de eutanásia são assustadores exemplos da “cultura do descarte” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU