14 Setembro 2023
"A tradução de A Bíblia foi feita diretamente do hebraico, amaraico e grego, tem linguagem fluente e utiliza-se das pesquisas bíblicas mais recentes na busca de fidelidade às línguas originais", escreve Eliseu Wisniewski.
Eliseu Wisniewski é mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul e professor na Faculdade Vicentina, em Curitiba/PR.
Dada a centralidade e imprescindibilidade da Bíblia para a Igreja -, depois de um gigantesco trabalho a Paulinas Editora acaba de oferecer ao público de língua portuguesa uma tradução original da Bíblia. Ao longo de quinze anos, as Irmãs Paulinas e seus colaboradores: 22 tradutores e 7 revisores exegéticos, dentre os quais 5 mulheres e 4 de confissão protestante -, dedicaram-se ao projeto da tradução dos textos bíblicos. Após a publicação do Novo Testamento (2015), dos Salmos (2017) e do Pentateuco (2020), o leitor tem em mãos a edição completa de “A Bíblia” (Paulinas, 2023, 1984 p.).
A Bíblia (Paulinas, 2023, 1984 p.)
A tradução de A Bíblia foi feita diretamente do hebraico, amaraico e grego, tem linguagem fluente e utiliza-se das pesquisas bíblicas mais recentes na busca de fidelidade às línguas originais. Anoar Jarbas Provenzi, revisor literário de A Bíblia comenta que se buscou um grupo de especialistas, acadêmicos da área bíblica, que trabalharam, em equipe, com base em textos e métodos seguros, evitando o máximo possível acréscimos indevidos e exclusões desnecessárias. Este trabalho foi feito a partir das línguas originais (no documento conciliar referidas como “textos originais”): o hebraico, o aramaico e o grego.
Pronvezi salienta, ainda, que no centro do projeto de A Bíblia sempre esteve o leitor interessado em ter acesso tanto a uma tradução fiel da Bíblia quanto a explicações mais profundas do texto bíblico. A este respeito João Décio Passos observa que os conteúdos disponibilizados nas Introduções a todos os 72 livros (Cânon da tradição católica) dos dois Testamentos e nas Introduções a ambos os testamentos, oferecem informações preciosas ao leitor, sínteses primorosas dos estudos mais recentes das ciências bíblicas. O leitor atento e dedicado poderá encontrar nessas Introduções e nas Notas de pé de página um verdadeiro curso bíblico que oferece dados sobre o contexto em que surgiu o texto, comparações com outras passagens bíblicas, aproximações sobre o significado do livro.
Observa, ainda que, na edição do Novo Testamento de 2015, as Notas oferecem informações variadas sobre:
a) significados das palavras na língua original;
b) sentido das narrativas, dos gestos e símbolos;
c) ancoragens dos textos no contexto em que foi escrito;
d) correlatos de passagens análogas contidas em outros livros;
e) instruções sobre estilos literários;
f) comentários sobre a estrutura textual;
g) ligação das passagens com o significado global do livro em que estão situadas;
h) explicitação da mensagem teológica do texto.
Toda tradução pretende, evidentemente, ser original. Onde se encontra a originalidade de A Bíblia? Para destacar a novidade e as principais características de A Bíblia servimo-nos das observações feitas por Pronvezi em relação à tradução, introduções, notas e mapas, e à apresentação gráfica.
O coração de uma Bíblia é o próprio texto bíblico. Em se tratando de uma tradução, o ponto de partida é a escolha do texto-base. No caso de A Bíblia, o texto-base para a tradução do Antigo Testamento hebraico e aramaico foi a Bíblia Hebraica Stuttgartensia atualizada, na medida do possível e da disponibilidade, pelos fascículos da chamada Biblia Hebraica Quinta (BHQ), um grande trabalho de revisão da edição de 1997, sobretudo do aparato crítico; para os livros em grego do Antigo Testamento, os chamados deuterocanônicos (Tobias, Judite, 1-2 Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico, Baruc, adições em Ester e em Daniel), usou-se como base a Septuaginta editada por Rahlfs e Hanhart, bem como, em alguns momentos, alguns tomos da chamada Septuaginta de Göttingen (Septuaginta: Vetus Testamentum Graecum); para o Novo Testamento, usou-se a 28ª edição do Novum Testamentum Graece. Assim, fez-se uma tradução direta das línguas originais (hebraico, aramaico e grego), sem usar nenhuma outra língua moderna como base ou como referência.
Uma vez definido o texto-base, foi necessário definir o tipo de tradução: se mais livre ou se mais aderente às línguas originais. Até então, prevalecia entre nos estudos tradutológicos da Bíblia a chamada “equivalência dinâmica”, que preconizava o sentido em detrimento, muitas vezes, da forma e da literalidade. Essa teoria, porém, acabou gerando excessos e arbitrariedades, o que suscitou a reação de um grupo de teóricos e tradutores que passaram a defender uma tradução mais aderente ao texto “de partida”, a fim de que, na medida do possível, fossem mantidas a padronização do vocabulário, a sintaxe original, as metáforas originais, as imagens originais etc.
O argumento principal deste grupo era de que, ao manter a literalidade, preservava-se muito mais a mensagem original do texto, partindo do pressuposto de que a forma também é conteúdo e de que muitas vezes o central da mensagem está justamente no detalhe. Pouco a pouco esta visão acabou prevalecendo no grupo de tradutores de A Bíblia. A busca pela fidelidade às línguas originais (hebraico, aramaico e grego) acabou acolhendo inclusive uma recomendação da própria Igreja Católica: “Que se façam traduções aptas e fiéis nas várias línguas, sobretudo a partir dos textos originais dos livros sagrados” (Concílio Vaticano II, Constituição Dogmática Dei Verbum, n. 22 [itálico nosso]).
Vale lembrar que muitas Bíblias que estão no mercado não são traduções a partir das línguas originais: algumas são traduções de outras línguas modernas (inglês, italiano, espanhol, francês), outras se baseiam em Bíblias antigas só em grego (Septuaginta) ou em latim (Vulgata).
A Bíblia buscou, quanto possível, uma fidelidade às línguas originais e aos melhores manuscritos segundo a crítica textual. A fidelidade ao texto-base significou inclusive a manutenção de ambiguidades e repetições presentes das línguas originais, consideradas, aqui, estilísticas e literárias, ou seja, intencionais e carregadas de sentido. Um exemplo é a manutenção de “amém” e “amém, amém” no início de alguns discursos de Jesus, expressões que preservam o semitismo provavelmente enunciado pelo próprio Jesus e que diferenciam os discursos dele de qualquer outro. Quanto às ambiguidades originais, até pouco tempo consideradas “erros”, passaram a ser lidas e interpretadas como recursos estilísticos e retóricos. Então, uma incompletude, em vez de um defeito, pode ser um convite a que o leitor faça seu trabalho preenchendo algo que está aparentemente parcial; ou uma ambiguidade quanto ao sujeito de um verbo pode ser intencional, consciente, para que o leitor entenda que aquela ação específica pode ter como sujeito um ou outro personagem, quando não ambos.
Evitou-se, então, recorrer facilmente às variantes “facilitadoras” (e por isso limitadoras) da leitura, acreditando que de alguma maneira o texto, por mais difícil que seja, merece ser lido como está, para que se possa colher bem mais dele. Outra consequência da fidelidade às línguas originais foi o uso tradicional e gramatical da segunda pessoa, tanto no singular quanto no plural (tu e vós). Apesar de modernamente no português brasileiro o pronome pessoal reto de segunda pessoa estar quase extinto (salvo as exceções em alguns lugares), sobretudo na oralidade, ele foi mantido em razão da precisão terminológica, a fim de evitar paráfrases e malabarismos linguísticos. Além disso, é consenso que a linguagem bíblica apresenta certa nobreza e certa formalidade que muito bem combinam com o uso de “tu/vós”. Outro detalhe linguístico que respeita as línguas originais é o cuidado em diferenciar os pronomes possessivos de terceira pessoa (“sua/seu”), usando, quando necessário e adequado, as formas “dele(s)/dela(s)” ou então o “lhe”; neste ponto, cabe lembrar que nem sempre o texto em língua original é claro, o que tentou-se respeitar ao máximo.
Outra característica ligada à fidelidade às línguas originais é o respeito à padronização dos nomes (onomástica). Até então, o costume era adotar os nomes da Vulgata. Acontece que há muita discrepância entre a Vulgata e o Bíblia Hebraica. Um mesmo nome que, na Bíblia Hebraica, é grafado de modo igual em duas passagens diferentes acaba sendo grafado de modo diferente da Vulgata.
Pelo contrário, dois nomes diferentes em hebraico (ver abaixo Amós x Amoz) acabam chegando com a mesma grafia no latim da Vulgata. Percebeu-se cedo no projeto que haveria necessidade de uniformizar os nomes, em especial no Antigo Testamento, a fim de evitar confusões inclusive de interpretação. O fundamental seria igualar o que deveria ser igual e diferenciar o que deveria ser diferente. Dentre as diferenciações feitas em A Bíblia, destacam-se: a prostituta Rahab (Josué 2,1.3; 6,17 etc.), que não se confunde com o monstro Raab (Jó 9,13; 26,12; Salmo 87,4 etc.); o profeta Amós (Amós 1,1), que não é pai do profeta Isaías, Amoz (2 Reis 19,2; Isaías 1,1).
Na onomástica, também se deu atenção especial ao nome de Deus: em respeito à tradição litúrgica (Liturgiam authenticam, n. 41 e Lecionários) e ao diálogo inter-religioso com os judeus, as quatro letras hebraicas do nome de Deus (o chamado tetragrama) foram grafadas como Senhor, em versal-versalete (e não como as hipotéticas grafias e/ou pronúncias “Iahweh”, “Javé” ou “Geová”). Além de respeitosa ao diálogo inter-religioso, a opção preserva a inefabilidade do nome divino, como forma de preservar sua incomensurável superioridade em relação à criação.
Por fim, outra consequência da fidelidade às línguas originais foi a harmonização sinóptica, em especial dos evangelhos. Visto que os evangelhos apresentam diversas passagens semelhantes entre si, A Bíblia procurou respeitar, com base nas línguas originais, estas semelhanças, bem como as diferenças de cada evangelista (Silva, 2022, p. 42). Assim, o leitor mais atento poderá comparar uma mesma passagem presente em mais de um evangelho (passagem sinóptica) e perceber o que é igual e o que é diferente em cada um deles, ou seja, como cada um dos autores quis enfatizar um ponto ou outro. A multiplicação dos pães para cinco mil pessoas, por exemplo, que aparece nos quatro evangelistas (Mt 14; Mc 6; Lc 9; Jo 6), pode ser lida, em cada uma das versões, em seus mínimos detalhes de igualdades e de diferenças: se Mt 14,19, Mc 6,41 e Lc 9,16 falam de “peixes” (ἰχθύς), já Jo 6,11 traz “pescados” (ὀψάριον), sutileza que é preservada na tradução de A Bíblia. Os exemplos poderiam se repetir à exaustão e somente o uso revelará o benefício deste cuidado na tradução.
Para os leitores que se aventuram a ler mais integral e sistematicamente a Bíblia, é de fundamental importância poder ter acesso a informações prévias e gerais sobre determinado livro, ou seja, ter à disposição introduções aos livros. Elas apresentam quem é o autor do livro ou, mais exatamente, a quem o livro é atribuído, visto que no mundo antigo a autoria visava muito mais dar credibilidade ao texto do que a dar mérito ao autor real, o que explica o uso abundante da pseudonímia; quando e onde o livro foi redigido; a quem o livro se destina originalmente; qual a estrutura do livro; quais os principais temas do livro; nos livros do Antigo Testamento, acrescentou-se à introdução um tópico útil ao leitor cristão sobre “Intertextualidade com o Novo Testamento”, reforçando-se, assim, a ligação entre ambos os conjuntos de livros, tão reforçada pelos estudos bíblicos das últimas décadas, e evitando o risco de uma espécie de marcionismo moderno. De todas as partes da introdução, a apresentação dos principais temas costuma ser a mais importante, pois apresenta, junto com a estrutura, um mapa seguro para adentrar e percorrer o livro mediante pistas que apontam para o fundamental da obra.
Por melhor que seja uma tradução da Bíblia, são necessárias notas explicativas a fim de fornecer ao leitor moderno mais elementos de compreensão. A distância temporal e cultural dos escritos bíblicos entre si mas sobretudo em relação ao leitor atual podem gerar “ruídos” e incompreensões que só uma explicação consegue superar. O desafio do projeto foi estabelecer o tipo de nota que iria acompanhar a tradução. Inicialmente, prevaleceram as notas mais pontuais, conforme o comprova a primeira edição do Novo Testamento (2015). À medida que o projeto foi avançando, percebeu-se que notas por perícope seriam mais adequadas (Salmos, 2017; Pentateuco, 2021). Com isso, as notas passaram a abranger toda a perícope.
Trata-se de amplas notas, com um terço de notas para cada dois terços de tradução nos livros em geral, com exceção dos Evangelhos e dos Salmos, que trazem notas maiores: a mesma quantidade de caracteres de nota e de tradução. Juntas, essas notas formam um pequeno, mas robusto, comentário bíblico, com informações fundamentais para quem quer entender bem o texto bíblico. As notas, de caráter exegético-teológico e em estreita relação com a tradução, querem ajudar a todos aqueles que pretendem compreender mais profundamente o texto bíblico na preparação da liturgia, na leitura espiritual, nos estudos bíblicos e na leitura literário-cultural da Bíblia. O conteúdo das notas varia de acordo com o gênero literário do texto e as dificuldades textuais: ora são mais pontuais, com alguma informação específica sobre um dado que esclareça a leitura; ora são mais enfático-parafrásticas, a fim de, em forma de sintetize, enfatizar o ponto central da perícope.
E as notas, bem como a tradução, foram elaboradas com base em sérios estudos bíblicos. Não são fruto de uma operação mecânica e automática, mas envolveram estudos de análise literária (estrutura do texto, ideia central, personagens, enredo da narrativa), de linguística (tempos verbais, vocabulário etc.), de história (costumes da época, governantes, impérios), de arqueologia (novas escavações e descobertas que auxiliam em datações), de geografia (distâncias, relevos, climas, fenômenos naturais), de teologia (reflexões sobre a imagem de Deus) etc.
Aos tradutores recomendou-se que se valessem dos melhores e mais consolidados comentários bíblicos disponíveis, a fim de que tanto as traduções quanto as notas pudessem ganhar em qualidade graças aos avançados e meticulosos estudos bíblicos feitos nas últimas décadas. Como os textos bíblicos se relacionam uns com os outros (intertextualidade e canonicidade), uma passagem pode ajudar a explicar outra. Por isso, as notas e a última camada do NT de A Bíblia trazem abundantes referências bíblicas relacionadas ao que está sendo lido e explicado. Exemplo importante da intertextualidade bíblica são as citações do Antigo Testamento presentes no Novo Testamento, as quais, quando literais, estão grafadas em itálico e devidamente referendadas ou na nota explicativa ou na camada própria de referências cruzadas.
Apesar de muitos lugares bíblicos terem sua localização e seu sentido explicado em nota, são muito úteis mapas bíblicos. A Bíblia permite que o leitor consulte os principais lugares bíblicos do mundo do Antigo Testamento, a divisão das tribos (de Israel), os reinos de Israel e Judá, o mundo do Novo Testamento, a terra de Israel nos tempos do Novo Testamento, Jerusalém nos tempos de Jesus e as viagens de Paulo.
Além de um bom conteúdo, uma Bíblia precisa ser bem apresentada graficamente. A diagramação em duas cores (o vermelho para cabeços, capítulos, versículos, títulos e referências de nota) favorece a “navegação” pelas páginas, junto com o cabeço indicando o livro e o capítulo e junto com o índice digital lateral (tarja). Além disso, procurou-se otimizar o máximo possível o aproveitamento das páginas, para que os mais de 7,5 milhões de caracteres coubessem em menos de 2 mil páginas. Para isso, foi indispensável o uso de duas colunas e a escolha de uma tipologia que mantivesse a legibilidade inclusive em tamanhos menores, como nas notas. As ilustrações da capa e do miolo e a tipologia diferenciada e inconfundível, em estilo bizantino, nas aberturas dos livros são do saudoso Cláudio Pastro, falecido em 2016, um grande entusiasta do projeto.
Fica, então, o convite a todos para que tomem contato com esta nova tradução, com notas, da Bíblia, a fim de que possam experimentar a profundidade, a riqueza e a beleza de A Bíblia, de Paulinas Editora. Concordamos com Passos quando diz que o resultado de um grande mutirão que gerou a nova tradução exigirá outros mutirões para levá-la ao povo de Deus como mais uma contribuição à leitura orante, ao uso catequético e litúrgico, à reflexão pessoal e grupal e ao estudo. A tradução técnica e pastoral que vem a público continuará sendo traduzida pelos leitores que a ela se achegam como fonte de água capaz de saciar...
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A Bíblia. Artigo de Eliseu Wisniewski - Instituto Humanitas Unisinos - IHU