10 Julho 2023
"Sebastiano Pinto usa a etnometodologia para examinar Jó e as razões do seu protesto tal como estão presentes em Jo 29-31. O estudioso explicita as dinâmicas subjacentes à interpretação de 'justo sofredor' feita pelo próprio Jó. “A leitura sociológica objetiva evidenciar as dinâmicas subjacentes à sua visão do mundo que, devido à doença, é menos evidente em sua obviedade", escreve Roberto Mela, padre dehoniano, teólogo e professor da Faculdade Teológica da Sicília, em artigo publicado por Settimana News, 01-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Formado em Sociologia, professor titular de Exegese e diretor do Departamento de Ciências Bíblicas da Faculdade Teológica Pugliese (BA), Sebastiano Pinto pretende expor o fecundo diálogo que se pode estabelecer entre as ciências humanas, e em particular a sociologia, e a exegese dos textos bíblicos.
Se o método histórico-crítico estuda o substrato profundo dos textos, a abordagem sociológica diz respeito ao húmus, a camada mais superficial de substâncias orgânicas, dentro das quais cresce a raiz de qualquer planta. A riqueza do húmus em que a Escritura se enraíza e por meio da qual cresce é representada pela cultura, economia, religião e instituições que expressam essa realidade. Com competência sociológica, sólidas bases exegéticas, prudência hermenêutica, evitando tornar unilateral a investigação, procedendo por tentativa e usando a moderação, é possível colher os frutos da interação entre sociologia e exegese.
L’humus della Parola. Bibbia e sociologia in dialogo, de Sebastiano Pinto (Foto: Divulgação)
No primeiro capítulo do livro (p. 19-42), o autor repassa os diversos métodos empregados nos estudos bíblicos assim como são apresentados no documento da Pontifícia Comissão Bíblica, intitulado A interpretação da Bíblia na Igreja (Paulinas, 1993). De cada método e abordagem o estudioso expõe os princípios e, portanto, também os limites.
Gradualmente, são examinados o método histórico-crítico – que continua sendo o principal método para os estudos exegéticos – e os novos métodos de análise literária: o método retórico, o narrativo e o semiótico.
Depois são ilustradas as abordagens. Mais do que métodos, são pontos de vista (abordagens, justamente). As abordagens baseadas na tradição são a canônica, a abordagem por meio do judaísmo e, finalmente, a abordagem baseada na história dos efeitos. As abordagens pelas ciências humanas vêm da antropologia cultural e da psicologia (abordagens psicológicas e psicanalíticas). As abordagens contextuais são a liberacionista e a feminista. Finalmente, é feita uma menção à leitura fundamentalista da Bíblia.
Pinto quer propor um exemplo de abordagem sociológica de alguns textos bíblicos.
No segundo capítulo do livro (p. 43-64), é oferecido primeiro um exame de alguns textos do Pentateuco a partir de uma análise inspirada na neurossociologia, em busca da ligação que existe entre o corpo físico, as leis sociais e as normas morais.
Ao estudar a relação corpo/mente e a evolução moral relacionada ao corpo biológico e social, notamos uma conexão, por exemplo, entre corpo sujo, rito de purificação (social e religioso) e juízo moral. Analisam-se as normas que regulam os casos de impureza menstrual da mulher e aquele do leproso. A mediação das normas cabe ao aparato sacerdotal.
Em relação ao senso de justiça, estuda-se a evolução moral que conduz em quatro etapas desde a lei do talião, à reparação monetária, à simbólica e, finalmente, à simbólico-religiosa quando se percebe que o comportamento humano prejudicou não só a ordem social, mas diretamente a honra divina. Essa expiação apela à sensibilidade do ofendido e invoca o perdão.
O autor aponta que o sistema expiatório tem dois pressupostos básicos: o primeiro é que existe uma relação direta entre a justiça humana e a justiça divina, enquanto o segundo remete à justiça divina concebida de forma muito semelhante àquela vigente entre os homens.
A relação entre as Escrituras e as neurociências aparece para Pinto como legítima. "Essa relação apreende os processos de percepção do divino a partir da reação humana (codificada pelo Livro) que se deixa questionar cognitivamente pela experiência da fé” (p. 63). Da Bíblia não é possível extrapolar o mapa das reações neuronais, mas pode-se “registrar os comportamentos que revelam indutivamente os processos mentais de formação do senso moral, comportamentos que a sociologia pode descodificar e interpretar” (p. 63). O traço específico que as neurociências nos permitem derivar da comparação com o texto bíblico é a evolução do senso moral.
No terceiro capítulo da obra (pp. 65-82), valendo-se da antropologia cultural, o autor confronta o status e o poder de Saul com o de Davi. Enquanto a psicologia considera o sujeito agente do ponto de vista de suas intenções e de sua capacidade de definir o sistema de ação no qual se move, a sociologia desloca a perspectiva do indivíduo para os sujeitos que interagem entre si e com o sistema em que operam. “A antropologia cultural, por outro lado, centra-se nos esquemas e códigos que os sujeitos usam para definir a situação e para orientar a sua ação dentro do sistema” (p. 67).
Analisando a relação entre Saul e Davi, Pinto combina sociologia e antropologia. Saul é apresentado como proscrito por Deus e rejeitado pelas mulheres, um rei neurastênico comparado ao rei empático como é Davi.
Há um conflito de status e de poder entre Saul e Davi. O status refere-se à posição social à qual estão vinculados os direitos e deveres que podem derivar do nascimento ou da aquisição pessoal. O poder, em vez disso, é a capacidade do sujeito de alcançar de modo intencional determinados objetivos, impondo sua própria vontade; tem poder aquele que pode fazer cumprir, com ou sem a força, as ordens dadas.
Pinto lembra que existem emoções estruturais, emoções antecipatórias e emoções conclusivas. A gestão da raiva tem consequências importantes. Saul e Davi lidam diferentemente com a raiva que resulta dos eventos. Enquanto Saul vê diminuir e depois desaparecer o poder e o status, David vê os dois aumentarem.
O quadro das relações estabelecidas pode ser identificado e caracterizado com três categorias sociológicas: a significação, a legitimação e a dominação.
A significação expressa o papel de orientação da raiva sobre os comportamentos e sobre as escolhas dos atores. Saul descarrega sobre Davi sua derrota e seu sentimento de rejeição por Deus: é a "armadilha da atribuição". Davi não retribui a atitude de Saul e escapa da armadilha pedindo uma explicação pela raiva de Saul. A gestão equivocada da raiva faz com que o grupo de amigos de Davi se compacte em torno dele.
A legitimação mostra o contraste entre a vazão indisciplinada e instintiva de raiva de Saul e a reação paciente e respeitosa de Davi. Ele respeita o papel de Saul, restitui ordem ao caos relacional e religioso causado por Saul, repassa ao juízo de Deus a disputa em curso: Davi realiza gestos novos e inéditos que confundem e surpreendem. Poupe a vida do rei-sogro. “Do ponto de vista da relação entre sociedade, religião e ética, a legitimação se concretiza graças ao comportamento moral de Davi e daqueles que assumem a sua causa. Eles sancionam operativamente a conduta descontrolada do rei; sem uma punição direta do outro, o comportamento compartilhado do grupo estabelece as condições estruturais com base nas quais é possível criar e manter a ordem legitimada por YHWH (uma monarquia duradoura sob a sábia orientação de Davi)” (p. 79).
A dominação alude à perda de status e de poder da parte de Saul, ao qual corresponde o aumento tanto do poder como do status de Davi.
A atitude respeitosa de Davi é a resposta direta ao extremo poder com que Saul administra o medo de perder seu reino. O fato de não contra-atacar o sogro produz um efeito desestabilizador na política de Saul e só cria as condições para que o prestígio e a fama de Davi possam aumentar e, consequentemente, acionar a aliança daqueles que o defendem. “Não enfrentar diretamente Saul endossa o status quo estabelecida por Deus, que prevê a sucessão de Davi ao trono [...]. Podemos dizer que o filho de Jessé, na fragilidade estrutural e institucional de quem nada possui além de um punhado de homens fiéis, vê aumentar o seu próprio poder carismático, preparando assim aquelas condições relacionais necessárias à gestão do poder monárquico” (pp. 79-80).
O exame socioantropológico das emoções fez emergir a sua importância: “são elas que marcam as regras sociais, posicionando os sujeitos no espaço social e religioso em que estão inseridos e estruturando o encadeamento das suas interações. A gestão das emoções é fundamental para a condução da ‘coisa pública’, assim como as dinâmicas ligadas à significação, legitimação e dominação são extremamente significativas para fins de restabelecimento da justiça relacional, pois a partir da compreensão das emoções e das modalidades com que podem ser exibidas, decorre o correto management do sábio governante” (p. 80).
No quarto capítulo (p. 83-100) Pinto usa a etnometodologia para examinar Jó e as razões do seu protesto tal como estão presentes em Jo 29-31. O estudioso explicita as dinâmicas subjacentes à interpretação de “justo sofredor” feita pelo próprio Jó. “A leitura sociológica objetiva evidenciar as dinâmicas subjacentes à sua visão do mundo que, devido à doença, é menos evidente em sua obviedade. A etnometodologia ajuda a explicitar as razões que estão na base do protesto dirigido contra Deus” (p. 84).
Pinto descreve a construção social da estima tal como descrita em Jo 29,7-10, a posterior queda em desgraça que lhe faz explicitar a inversão da ideia de um Deus bom, “constituindo-se como o último ato de força para salvaguardar o que resta de si e de seu mundo” (p. 87).
Existe o pressuposto da confiança ingênua. As esperanças de vida de Jó se radicam na teoria da retribuição: deve-se corresponder à bondade divina com uma conduta adequada, sob pena de perder as promessas e os bens a ela ligados (terra, riqueza, saúde, fecundidade).
Jó tem um olhar ordenado sobre o mundo: pertence a Jó e a todo homem que habita o cotidiano com confiança "ingênua", ou seja, que a realidade seja realmente como parece, sem truques nem enganos. Há um crédito de confiança que se abre para com os semelhantes e as estruturas sociorreligiosas por elas realizadas. Os amigos de Jó têm uma fé férrea nesse mundo de regras, percebido como o melhor dos mundos possíveis.
Uma leitura sociológica traz à tona o empenho de todos os membros da sociedade em manter de pé o sistema.
Por outro lado, faz emergir "como a sensação de frustração, perplexidade, incômodo e hostilidade causados por uma anomalia (a desgraça do justo) é prontamente acompanhado pelo profuso empenho para que possa retornar o alarme social" (p. 90).
A doença aparece como um reativo. A diferença entre Jó e seus amigos reside no fato de que o primeiro está disposto a sacrificar a ideia que tem de divindade para salvar a sua religiosidade, enquanto os segundos preferem sacrificar Jó. A doença é avaliada como a ruptura da ordem moral, como uma anormalidade em um curso de eventos considerados habituais e previsíveis, como uma anomalia em um sistema que não previu tal ocorrência.
Os teólogos da retribuição selecionam um conjunto de características estáveis de uma organização e procuram as variáveis que as mantêm unidas. A abordagem pela etnometodologia apresenta os métodos com os quais acontece essa operação de seleção (justamente etnometodologia). “A doença ‘abre os olhos a Jó’ e faz ele compreender que tais variáveis são mantidas unidas pela tradição, pelos bons costumes, do ‘sempre se fez assim’ e do ‘ouvir dizer’. Em outras palavras, a partir de um conjunto de práticas que são tornadas rotina até serem sacralizadas” (p. 91-92). O que Jó anteriormente acreditava saber – Pinto fala de "ilusão de ótica" – revela-se em toda a sua pequenez e parcialidade. Outro mundo está se descortinando para Jó.
A atribuição de sentido passa, segundo Pinto, pela “história legítima”. Jó é visto pelo estudioso como um "doente social", no sentido de que concede à sociedade boa parte de sua autopercepção religiosa. Jó não questiona o dado normativo, mas o funcionamento de tal aparato normativo.
Normalmente a ação moral é explicada pela indicação de sua conformidade ou não conformidade com a regra. "A diferença ética que coloca Jó e sua moral em crise – ou seja, a discordância entre sua conduta institucionalizada e a recompensa esperada (a doença em vez de saúde) – traz à tona as rachaduras de atribuição de um sentido causal-dedutivo porque, mesmo aplicando aquelas normas tidas como éticas, ele não vê os benefícios sociais. Isso obriga a explicitar os pressupostos implícitos que regem essa moralidade e inspiram a sua obediência, com vista à sua confirmação” (p. 93).
"A desorientação de Jó", continua o estudioso, "visa sanar as fraturas do sistema anterior. Ele contesta Deus e sua justiça, porque espera ser reabilitado e tranquilizado sobre as escolhas de vida nas quais tanto apostou. A categoria de "justo sofredor" com que se apresenta aos seus amigos é um oxímoro social que não pode ser exibido por muito tempo, sob pena de perder a honra e a estima conquistadas com tanto esforço [...]. Ressaltamos que o processo causal-dedutivo não desaparece de imediato, mas é reformulado para trás de Jó: o sentido de conduta do passado – que o leitor no prólogo do livro simplesmente é informado sem entrar nas motivações do protagonista (capítulos 1 e 2) – é rastreado, criado e explicado à medida que a história se desenrola, porque foi perdido ou não foi totalmente compreendido" (ivi).
No c. 31 Jó amplia hiperbolicamente sua conduta passada: o exagero é uma provocação, diretamente proporcional à vontade de resolver a aporia que ele próprio representa no sistema religioso e social. “A lógica que anima essas palavras permanece dedutiva e revela a ‘história legítima’ do piedoso Jó: essa lógica, devido à doença, foi tematizada, revelando uma expectativa de tratamento que anteriormente era dada como certa (a recompensa), enquanto agora é invocada aos brados” (p. 95).
"Do ponto de vista etnometodológico", escreve Pinto, "podemos deduzir que o aparato normativo clássico (as normas morais que inspiraram Jó) não tem tanto um carácter fundacional, mas ideal e futuro: um ‘deve ser’ (um paradigma de referência) mais do que um ‘ser’ (um dado assumido objetivamente)" (ibid.). A fonte de onde Jó extrai essas regras é bem elaborada pelo prontuário do piedoso israelita que orienta a reconstrução de carreira.
O c. 31 é, de fato, um longo exame de consciência centrado em três tipologias de pecados: social, sexual e teológico. Remete à Torá e às indicações sapienciais da vida. Jó está duplamente certo da retidão de sua conduta. “A doença não abalou as suas convicções, contribuindo, pelo contrário, para as sistematizar num amplo e sólido horizonte de fé, segundo o que em sociologia podemos chamar de visão congruente da realidade” (p. 99).
A etnometodologia destacou como "a atenção aos métodos, instrumentos, formas e procedimentos que Jó usa para contar as suas vicissitudes é substancial: a realidade é o conjunto de procedimentos e métodos que permitem o desdobramento ordenado da realidade cotidiana. Tal conhecimento é, em outras palavras, um conhecimento do como mais que um conhecimento sobre o quê” (p. 100). A leitura sociológica é menos subversiva do que se pensa - escreve o autor -, porque é não avaliativa; não quer desmontar criticamente as palavras de Jó, mas explicá-las, “isto é, fazer emergir aquele mundo tácito e ordinário que cotidianamente cada homem assume pacificamente e, muitas vezes, como o único mundo pensável” (ivi).
Pinto se dirige para a conclusão. "Da crise deste mundo pode nascer para Jó uma nova relação com o divino e com a sua história, e isso graças ao choque causado pelo sofrimento que ajudou a remover a cegueira em que estamos enredados quando certos automatismos normativos e teológicos são seguidos acriticamente (dedutivismo). A transição do como ao o quê pode revelar-se muito interessante na medida em que se chega ao quem, aquele tu divino a quem Jó se dirige no final da história e que, precisamente graças ao sofrimento, pôde conhecer” (p. 100).
Na Conclusão (pp. 101-104), o autor se pergunta se a sociologia não poderia assumir o papel de auxiliar da teologia bíblica, como no passado foi a filosofia para a teologia (com derivas negativas significativas). Segundo o estudioso, o papel não é de subordinação, mas de exploração, de inspiração.
Pinto está convencido de ter feito um exercício concreto de transdisciplinaridade, isto é, de acolhimento-integração de instâncias de uma disciplina (sociologia) no caminho de outra (exegese bíblica).
Com a devida honestidade e competência, a sociologia pode contribuir muito para a exegese no estudo do húmus da Palavra. "Temos a certeza", diz Pinto, "que o enraizamento no substrato das ‘coisas da terra’ – nas pegadas da Sabedoria que ‘apareceu na terra onde permaneceu entre os homens’ (Br 3,38) – possa alimentar os percursos de crescimento e amadurecimento rumo à Sabedoria das ‘coisas do céu’" (p. 104).
O autor explicita alguns aspectos positivos que surgiram em sua pesquisa. Nós os relatamos na íntegra.
a) “uma fé histórica: a Escritura não oferece a ideia de um kit de fé sempre idêntico e pronto para o uso, mas narra a chamada de Deus que interpela o homem envolvendo-o numa resposta existencial;
b) uma espiritualidade encarnada: é na história e na sociedade que se mensura a qualidade da resposta de fé, e não numa fuga para a frente (fuga mundi) ou para rás (para uma mítica idade de ouro), mas “aqui e agora”;
c) uma moral centrada na vida física: o que se move no corpo tem relevância no discurso de fé e deve ser levado a sério, pois é da corporeidade (necessidades, sentimentos, emoções, expectativas, medos) que nasce e se desenvolve o universo simbólico humano” (p. 103).
A bibliografia aparece nas p. 105-112.
O volume propõe uma abordagem de estudo de algumas passagens bíblicas através da contribuição da sociologia. O resultado é muito interessante, ainda que exija ao menos um conhecimento inicial de suas categorias interpretativas da realidade.
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Bíblia e sociologia em diálogo. Artigo de Roberto Mela - Instituto Humanitas Unisinos - IHU