20 Dezembro 2019
O poderoso livro publicado nos últimos dias pela Comissão Bíblica da Congregação para a Doutrina da Fé e intitulado Che cosa è l’uomo? [O que é o homem?, em tradução livre] está dando o que falar.
A reportagem é de Massimo Battaglio, publicada em Gionata.org, 19-12-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
De fato, é um documento estrondoso, no qual os biblistas oficiais da Igreja parecem querer mudar toda a doutrina sobre a homossexualidade. E, como quem encomendou a obra foi o papa em pessoa, muitos o estão comentando como a abertura definitiva de Francisco à modernidade. Outros se limitam a falar dele como “mais uma façanha de Bergoglio”.
Embora ainda não esteja nas livrarias, a partir das prévias pode-se entender que, com efeito, é bastante forte. Extraímos alguns trechos que nos interessam.
É verdade, reitera-se em “O que é o homem?”, que “a instituição matrimonial, constituída pela relação estável entre marido e mulher, é constantemente apresentada como evidente e normativa em toda a tradição bíblica”. Também é verdade que, na Bíblia, não existem “exemplos de união legalmente reconhecida entre pessoas do mesmo sexo”.
Contudo, muitas vozes internas à Igreja reivindicam uma nova acolhida “da homossexualidade e das uniões homossexuais como expressão legítima e digna do ser humano”.
Até ontem, “acolher” uma pessoa homossexual muitas vezes significava “fechemos um olho, Deus também te ama”. Agora, o ex-Santo Ofício registra (e é algo impressionante) que uma grande parte do pensamento católico considera legítimas e dignas as uniões LGBT. Repito: muitos cristãos não consideram os atos homossexuais cometidos em uma relação de casal como pecado.
O que é estrondoso é que, até ontem, uma afirmação dessas seria seguida por: “Bem, quem sustenta essas distorções se equivoca e deve ser condenado assim como os gays”. Agora, ao contrário, diz-se algo bem diferente.
“Uma compreensão nova e mais adequada da pessoa humana impõe uma radical reserva sobre a exclusiva valorização da união heterossexual em favor de uma análoga acolhida da homossexualidade e das uniões homossexuais.”
“Além disso, argumenta-se às vezes que a Bíblia diz pouco ou nada sobre esse tipo de relação erótica, que, por isso, não deve ser condenada.”
“O exame exegético realizado sobre os textos do Antigo e do Novo Testamentos trouxe à tona elementos que devem ser considerados para uma avaliação da homossexualidade em seus aspectos éticos. Certas formulações dos autores bíblicos [...] requerem uma interpretação inteligente, que salvaguarde os valores que o texto sagrado pretende promover, evitando repetir literalmente aquilo que traz consigo também traços culturais daquele tempo.”
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O Pe. Gianluca Carrega é professor de Novo Testamento na Faculdade Teológica de Turim e responsável pela mesa diocesana sobre fé e homossexualidade. Ele se diz confiante: “O adjetivo que melhor descreve o meu sentimento neste momento é precisamente este: confiante. Eu ainda não li o texto, mas conheço Bovati como uma pessoa reta e livre” (Bovati, membro da Comissão Bíblica e consultor da Congregação para a Doutrina da Fé, é o principal autor do texto).
“‘O que é o homem?’ pode dar indicações menos fundamentalistas do que aquelas a que estamos acostumados. Estou na expectativa, embora não tenha ilusões.”
Alguns objetam que, se não existem muitas fontes bíblicas sobre a homossexualidade, a Escritura, porém, não é a única fonte da revelação. A exegese bíblica, dizem, deve ser reconciliada com a moral, com a tradição. O que o senhor acha?
Gianluca Carrega – É claro, também existem as outras disciplinas: moral, teologia... Mas elas não podem contradizer a Escritura. Onde a Escritura não parece ter as respostas específicas sobre casos particulares, mesmo assim ela fornece as orientações. E essas orientações são, acima de tudo, o princípio da misericórdia, o mandamento do amor. A doutrina ou uma exegese parcial demais não podem pôr em discussão esses pressupostos.
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Franco Barbero é ex-padre, suspenso na época de Bento XVI justamente por causa da sua proximidade com as temáticas LGBT. Pergunto-lhe, acima de tudo, o que ele acha do documento:
“Finalmente, uma primeira abertura. É preciso ver se são coisas reais e não apenas palavras um pouco novas. Mas não me surpreende que se tenha chegado a uma reavaliação de velhas categorias, porque estávamos em um estado de barbárie. Se esses pontos não forem mudados, a Igreja vai ao fracasso.”
Até ao fracasso da Igreja?
Franco Barbero – Certamente. Os bispos alemães estão dando a entender isso muito bem. Lá, onde os fiéis têm a alternativa protestante à sua disposição, o risco é justamente este: que abandonem a Igreja Católica porque a consideram desatualizada, distante. E já estão fazendo isso.
Mas então é apenas uma questão, digamos assim, política?
Franco Barbero – É uma questão séria. Esse texto finalmente reflete sobre como se deve ler a Bíblia. Há anos dizemos isto: ao nos aproximarmos das Escrituras, devemos depor os óculos do dogma. Não podemos nos aproximar da Palavra de Deus, esperando que ela confirme as nossas ideias, para que elas se tornem dogmáticas. Não podemos jogar sobre elas os nossos preconceitos. Devemos analisá-la e nos deixar inspirar por ela, e não vice-versa. Os judeus também aprenderam a ver a Bíblia como um texto dinâmico, que fala a cada um no seu tempo. Nós devemos fazer o mesmo.
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Selene Zorzi é teóloga, desde sempre estudiosa das temáticas femininas e LGBT. Ela escreveu textos como “Il Genere di Dio” [O gênero de Deus, em tradução livre]. E parece menos entusiasmada.
“Nada disso. Estamos longe de formular reflexões concluídas. Digamos que é um passo. E me surpreendeu, depois do documento sobre o gênero publicado em maio pela Congregação para a Educação Católica.”
Na sua opinião, quais argumentos contribuíram para a formulação e para a publicação de “O que é o homem”?
Selene Zorzi – Acima de tudo, o Papa Francisco, que sempre desejou uma Igreja com várias vozes e aberta ao debate. De várias partes vinham críticas de incoerência sobre a doutrina. Mais cedo ou mais tarde, deviam ser ouvidas. Além disso, já existe uma vasta literatura sobre a homossexualidade. Informações, testemunhos, pesquisas científicas e também teológicas também chegam ao Vaticano. A cúpula da Igreja não pode ignorá-los se não quiserem correr o risco de testemunhar o velho ou o falso.
Contradições da doutrina?
Selene Zorzi – Sim. Quando se afirma, na constituição conciliar Gaudium et spes, que a sexualidade é um dom, que garante o progresso pessoal e o destino eterno de cada um dos membros da família etc., e depois se impede que uma grande quantidade de pessoas vivam esse dom. É uma contradição.
E por que só agora é que se decidiu enfrentar essas contradições?
Selene Zorzi – Na realidade, muitos estudos estavam prontos há algum tempo. Só que, até agora, o clima no Vaticano não era favorável. Agora, tendo mudado a cúpula e os colaboradores mais próximos, começa a haver realmente espaço para todos.
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Francesco Lepore aprofunda esse último aspecto. Ele é um ex-padre e trabalhou durante anos no Vaticano, em estreito contato com os cardeais.
“‘O que é o homem?’ é um estudo encomendado pelo papa e foi desenvolvido junto à autoridade mais alta e competente. Portanto, deve ser levado a sério. Pode ser lido como uma reação às conclusões do Sínodo sobre a Família.”
No sentido de que é uma espécie de resposta às famosas “dubia” que alguns purpurados faziam ao papa para pôr em discussão as suas aberturas?
Francesco Lepore – É uma resposta à Igreja. Uma resposta escritural, portanto, profunda e, de certa forma, definitiva. De certa forma, também pode ser entendida como um apoio ao futuro sínodo dos bispos alemães, que pré-anunciaram que levantarão questões de modo muito claro. Com “O que é o homem?”, fornecem-se indicações que vão ao seu encontro, colocando algumas indicações. Portanto, quer-se aproveitar o pedido de atualização, evitando avanços excessivos.
Acha que serão possíveis novos desdobramentos?
Francesco Lepore – Veja, durante muitos séculos, interpretou-se a questão do véu para as mulheres em um sentido normativo. Até recentemente, para uma mulher, assistir sem véu a uma ação de culto era considerado um pecado grave. Por outro lado, São Paulo havia dito isso, os Padres da Igreja haviam reiterado isso. Depois, entendeu-se que era um preceito filho dos tempos em que havia sido elaborado, que devia ser relido, talvez em chave simbólica. E simplesmente caiu em desuso.
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Gianni Geraci é há anos animador e responsável do grupo de cristãos LGBT Il Guado, de Milão. Ele nos revela alguns pequenos segredos.
“Na realidade, ‘O que é o homem?’ não faz nada mais do que retomar um documento de 1993 sobre a ‘Interpretação da Bíblia na Igreja’, no qual já se dizia que uma abordagem literal aos textos bíblicos era perigosa. Naquele caso, porém, os membros da Comissão Bíblica (incluindo o cardeal Martini) não tiveram coragem de dar exemplos. Muito menos de falar de homossexualidade. Por outro lado, o ar era muito menos salubre para quem dizia certas coisas na Igreja Católica. Finalmente agora, o clima de medo que existia até alguns anos atrás na Igreja acabou. Isso permitiu que a Pontifícia Comissão Bíblica detalhasse livremente os casos em que aquela leitura fundamentalista produziu os maiores danos.”
E nós, pessoas LGBT, estávamos entre os mais prejudicados.
Gianni Geraci – Sim.
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"O que é o homem". Um importante documento da Comissão Bíblica do Vaticano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU