31 Agosto 2022
"Nessas palavras densas, o olhar de Martini não se volta apenas para o passado e para o atraso acumulado hoje pelos crentes. Seu olhar está mais orientado para o futuro. Ele não pensa tanto na Igreja que existe ou naquela que já existiu, mas na Igreja que virá, na Igreja que os fiéis de hoje, superando o sentimento de desconfiança e cansaço que muitas vezes os dominam, desejarão dar vida. Por isso, a tônica desta resposta é o amor, que oferece o horizonte certo de compreensão à provocação do atraso da Igreja. Os crentes de hoje são chamados a um verdadeiro ato de amor capaz de colocar em prática tudo o que é necessário para que a experiência eclesial volte a ser esse extraordinário lugar de encontro entre o Deus-Amor revelado a nós por Jesus e o homem e a mulher das terras do bem-estar", escreve o teólogo italiano Armando Matteo, professor de Teologia Fundamental da Pontifícia Universidade Urbaniana e subsecretário adjunto da Congregação para Doutrina da Fé, em artigo publicado por Vita Pastorale, agosto-setembro de 2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Não parece nada exagerado indicar a última entrevista que o cardeal Carlo Maria Martini concedeu, poucas semanas antes de sua morte, como um verdadeiro testamento de amor. Nas respostas que deu ao seu coirmão Georg Sporschill (com quem já havia preparado o excelente texto das Conversas Noturnas em Jerusalém) e à jornalista Federica Radice Fossati, de fato, encontra-se concentrado o grande amor do antigo arcebispo de Milão pela Igreja, à qual se entregou incessantemente, entregando toda a sua energia física, intelectual e espiritual. E, ao mesmo tempo, encontra-se um convite, dirigido a todos os seus irmãos e irmãs na fé, a um renovado amor pela Igreja.
Como se sabe, a entrevista foi publicada nas colunas do Corriere della Sera no dia seguinte à morte do cardeal e precisamente em 1º de setembro, dez anos atrás. E logo teve uma repercussão imediata, que continuou ao longo do tempo.
De fato, há apenas alguns anos, o Papa Francisco recordou uma passagem por ocasião do seu discurso de Natal à Cúria Romana. Voltar agora àquelas palavras de Martini, que também têm um toque áspero e provocativo, não pode ter outro valor senão aquele "recordar" típico da tradição bíblica, para a qual a memória é sempre um ato performático, que torna presente e vivo o que já foi. E é assim que aquela entrevista se torna, para cada um de seus leitores, um convite a se perguntar quanto amor traz para a Igreja, que sonho tem para a Igreja, que esperança tem para a Igreja, que empenho pretende colocar em ação para a Igreja. A situação atual da fé exige isso.
Aqui estamos, então, na primeira consideração que Martini desenvolve sobre a Igreja. Sem meios-termos, destaca o estado de "cansaço" em que, na sua opinião, se encontra hoje a comunidade dos crentes. Estas são as suas palavras: “A Igreja está cansada, na Europa do bem-estar e nos Estados Unidos. Nossa cultura envelheceu, nossas Igrejas são grandes, nossas casas religiosas estão vazias e o aparato burocrático da Igreja fermenta, nossos ritos e nossas vestimentas são pomposas. Essas coisas, no entanto, expressam o que somos hoje? [...] O bem-estar pesa muito. Estamos ali como o jovem rico que triste foi embora quando Jesus o chamou para fazer dele seu discípulo. Sei que não podemos deixar tudo com facilidade.”
Condensam-se aqui duas observações particularmente esclarecedoras: por um lado, a tomada de consciência de que o Ocidente se tornou a terra do "bem-estar", que levou a uma transformação radical das condições de vida do cidadão médio. É claro que ainda hoje não faltam problemas ou situações de dificuldade, mas, num olhar geral e com referência ao passado recente, é indubitável que o cidadão médio da Europa e dos Estados Unidos usufrui no presente de um imenso leque de possibilidades e oportunidades nunca imaginadas por seus pais e avós.
A segunda observação é que a "cultura católica" envelheceu. Poder-se-ia dizer, em linguagem mais explícita, que os imaginários que regem a ação pastoral da Igreja já não correspondem mais àquela condição humana inédita e inaudita que a própria palavra "bem-estar" condensa com tanta eficácia. Assim, acrescenta Martini, são necessários crentes mais livres e ousados, capazes de reativar a dinâmica do amor para com os seus contemporâneos, a única que pode encorajar e sustentar a busca de novos caminhos para anunciar a beleza da fé na era do bem-estar generalizado.
Na terceira pergunta, o antigo arcebispo de Milão indica três sugestões para toda a comunidade dos fiéis nesse esforço de aproximação ao tempo que são chamados a viver. Recorda, em primeiro lugar, o tema central da conversão pessoal e comunitária: “A Igreja deve reconhecer os seus próprios erros e deve percorrer o caminho radical de mudança, começando pelo Papa e pelos bispos. Os escândalos da pedofilia nos impelem para um caminho de conversão.” Recorda depois a essencial centralização de toda a experiência cristã na Palavra de Deus: "Só quem percebe em seu coração esta Palavra pode fazer parte daqueles que ajudarão a renovar a Igreja e saberão responder às perguntas pessoais com uma escolha certa."
Por fim, destaca a possibilidade de colocar o tema da cura no centro da visão da ação sacramental da Igreja: “Os sacramentos não são um instrumento para a disciplina, mas uma ajuda para homens e mulheres nos momentos do caminho e nas fraquezas da vida. Levamos os sacramentos aos homens que precisam de uma nova força?”
Chegamos assim à última resposta de Martini, que se tornou uma espécie de slogan que alguns relançaram com convicção, outros rejeitaram com determinação. De minha parte, acho que aquelas palavras só podem ser bem entendidas fazendo referência ao grande amor que Martini nutriu e manifestou pela Igreja; um amor que ele queria despertar em todos os crentes, para reagir ao seu cansaço.
E aqui estão aquelas famosas palavras: “A Igreja está atrasada de 200 anos. Por que não se sacode? Estamos com medo? Medo em vez de coragem? No entanto, a fé é o fundamento da igreja. Fé, confiança, coragem. Eu sou idoso e doente e dependo da ajuda dos outros. As pessoas boas ao meu redor me fazem sentir o amor. Este amor é mais forte do que o sentimento de desconfiança que às vezes percebo em relação à Igreja na Europa. Só o amor supera o cansaço. Deus é Amor. Ainda tenho uma pergunta para você: o que você pode fazer pela Igreja?”
Nessas palavras densas, o olhar de Martini não se volta apenas para o passado e para o atraso acumulado hoje pelos crentes. Seu olhar está mais orientado para o futuro. Ele não pensa tanto na Igreja que existe ou naquela que já existiu, mas na Igreja que virá, na Igreja que os fiéis de hoje, superando o sentimento de desconfiança e cansaço que muitas vezes os dominam, desejarão dar vida. Por isso, a tônica desta resposta é o amor, que oferece o horizonte certo de compreensão à provocação do atraso da Igreja.
Os crentes de hoje são chamados a um verdadeiro ato de amor capaz de colocar em prática tudo o que é necessário para que a experiência eclesial volte a ser esse extraordinário lugar de encontro entre o Deus-Amor revelado a nós por Jesus e o homem e a mulher das terras do bem-estar.
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Um testamento para a igreja. “Opção Francisco”, por Armando Matteo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU