13 Junho 2023
Seu pai espiritual, professor e amigo, o sociólogo francês Alain Touraine, acaba de falecer. E com uma pequena homenagem a ele iniciamos a entrevista com Manuel Castells (Hellín, 1942), que acaba de publicar Testimonio: Viviendo Historia (Alianza Editorial). Vejamos. No livro, Castells conta como Daniel Cohn-Bendit disse a Touraine, em plena revolta de maio de 68: “Para que reformistas como você tenham sucesso, revolucionários como nós devem tentar revoluções fracassadas”.
Castells, que foi líder dessa revolução, esteve próximo de muitas outras, assim como de inúmeros movimentos sociais, seja no Chile, Brasil, Bolívia, no movimento dos indignados da Espanha, Occupy Wall Street, nos Estados Unidos, e no alvorecer das revoltas feministas no Irã. Ou assessorando e se manifestando com o movimento democrático russo, no período de Gorbachev.
A entrevista é de Álex Rodríguez, publicada por La Vanguardia, 11-06-2023. A tradução é do Cepat.
O que nos resta de maio de 68?
As ideias. Todas as grandes ideias que depois abriram o caminho na esquerda, na extrema-esquerda e na sociedade. Feminismo, ecologismo e ecologismo radical, a solidariedade internacional, a luta pelas liberdades e os direitos humanos em todo o mundo, a defesa dos animais e da natureza. E os debates sobre a democracia, a democracia real que, na Espanha, surge nos anos 2010. Esta democracia, a que já vivemos e a que estamos vivendo agora, é muito indireta, é mediada por aparatos de partidos e pelos meios de comunicação.
Com o afastamento dos cidadãos de seus políticos.
Sim. No mundo, mais de dois terços das pessoas não acreditam nos políticos, nem nas instituições democráticas existentes, mas não são contra a democracia. Agora, depois de um tempo se colocando tão contra a democracia realmente existente, vão apontando para qualquer um. E daí a onda de extrema-direita que existe nos Estados Unidos e na Europa.
Uma onda alimentada pelo medo e a incerteza, não?
Totalmente.
Há medo e não há esperança...
Bem, ainda há algumas esperanças, mas você tem toda a razão. Para a neurociência, são as emoções humanas que levam ao comportamento no essencial. A racionalidade vem depois e é construída sobre o que se sente. Dessas emoções, a mais forte é o medo, porque no fundo é a que previne os riscos e permite a sobrevivência.
Temos o medo instalado em nossas sociedades, alimentado por extremos políticos que também alimentam o ódio….
O medo, quando não encontra uma saída, expressa-se polarizando e antagonizando com o outro. Deve-se repetir mil vezes que não está correto que a polarização possa ter a origem em dois polos: a direita e a esquerda. Não. Em termos de oposição radical às instituições democráticas e aos valores democráticos, tem realmente a origem na extrema-direita. Claramente.
Falando de modo muito claro, por exemplo, um movimento como o Podemos não surge do ódio, não surge do medo. Surge da deslegitimação das instituições. Quando as elites dominantes têm medo de perder seus privilégios, espalham esse medo e, então, há uma polarização baseada no ódio, no ódio ao outro, no ódio ao imigrante, que é também o velho bode expiatório da história.
Uma experiência do 15-M que parece frustrada...
Sim, é uma grande degradação. Contudo, não são os movimentos sociais que tomam o poder, mas podem criar condições para que as forças políticas emergentes dos movimentos sociais façam a passagem de seus sonhos e esperanças à institucionalização.
Ou seja, quando surgem, são muito puros. Depois, existem movimentos que se transformam em forças de reforma dentro do sistema, mas reformando tão profundamente que o sistema não é mais o mesmo que existia. O exemplo mais claro é a social-democracia que surge do movimento operário.
Então, o que está acontecendo agora, na Espanha, com esse governo de coalizão que fez história? Era previsível? Era previsível que se sacrificasse a esquerda que está à esquerda do PSOE, institucionalizada?
Não, na verdade, não. Primeiro, sempre pensei e sempre disse que, no mínimo, terminaria a legislatura, por uma razão muito simples: a Espanha presidirá a União Europeia no último semestre do ano.
Acredita que o Podemos pode desaparecer?
De fato, desapareceu.
Assessorou na transição soviética, quando a Rússia iniciava a sua travessia, viu como a oligarquia nasceu e como a nova história da Rússia gravitou em órbitas distantes daquelas com as quais sonhou. O que sonhou?
Com uma Rússia democrática, plurinacional, com uma forte participação das pessoas, com uma cultura extraordinária, que é a cultura russa, com uma ciência extraordinária, e se integrando a uma ordem econômica mundial. É a reserva dos recursos naturais e minerais do planeta e de energia. Com a Rússia acoplada, esqueça os árabes. Esqueça. A Rússia é Europa.
No entanto, a KGB tomou o poder e agora a Rússia invade a Ucrânia e traz a guerra de volta à Europa. Quando e como considera que isso vai acabar?
Quando se cansarem de se matarem inutilmente. E terminará com uma negociação, assim como terminam todas as guerras.
Paz por territórios?
Bem, sim, primeiro a paz e depois os territórios. Eu sempre digo que a negociação que acontecerá está em quantos milhares a mais de mortos a cada quilômetro, pois as guerras só terminam com o aniquilamento de um dos dois ou com a negociação. A aniquilação de um dos dois, quando um é uma potência nuclear, não acontecerá. Ou seja, caso consigam ocupar, estão prestes a ocupar a Crimeia, a Rússia utilizará arma nuclear, certamente. Por isso, a derrota total da Rússia não funciona. Ou se aniquila, e não se pode aniquilar neste caso, ou se negocia.
Continuo comparando a situação com a Coreia, onde permanecem em guerra, mas há um armistício desde 1953. Eu não vejo outra solução a curto prazo e, além disso, está se cometendo um erro gravíssimo, que é tentar colocar a China no mesmo saco, ao ser considerada um inimigo estratégico pela OTAN. A China apoia a Rússia, mas só em certas coisas. Não consolide essa aliança colocando os dois no mesmo saco.
A China não gosta de instabilidade...
Não, a China quer fazer negócios. Quer estabilidade, que é a base para fazer negócios, e tempo: mais 50 anos para ser a maior potência econômica e tecnológica do mundo.
Sua relação com a China também é antiga...
Sim. Eu a visitei em 1983 e, depois, a partir de 1987, quando o Conselho de Estado pediu a um colega da Stanford e a mim que desenvolvêssemos uma nova política tecnológica e de economia internacional. Cortei minha relação com o governo chinês com o massacre de Tiananmen. Voltei em 2000, mas por meio de universidades e estive com suas grandes empresas de tecnologia, como Huawei e Tencent.
Tenho também uma visão da sociedade civil e industrial, mais do que da parte propriamente política. Entendo o potencial da China no positivo e no negativo. Se conseguirmos articular produtivamente a China, sem questionar seu sistema político, logo se abrirá, não a forcemos. Não se pressiona a China. E a China não entregará de bandeja a hegemonia mundial aos Estados Unidos e à OTAN, deixando Putin cair.
E não estão isolados: Índia, Brasil, Argentina, México... Quem está isolado de quem? Meu maior medo é que tenhamos estacionado em uma visão do mundo ocidental. Continuamos acreditando que temos todo o poder do planeta. E não está correto, nem economicamente, nem tecnologicamente, nem demograficamente, nem politicamente.
Considera que o confronto entre os Estados Unidos e a China pode levar a uma guerra?
Um conflito. Não, não. Não interessa à China, não lhe convém. E até agora quem incitou a China foram os Estados Unidos.
E Taiwan?
Taiwan estava calminho. Calminho. E de repente, a senhora Nancy Pelosi, para se aposentar com glória, vai reconhecer de fato o regime de Taiwan que nunca havia sido reconhecido. A China sustenta que, a longo prazo, Taiwan é China, é a província chinesa. E acontece que o partido fundador de Taiwan, o Kuomintang, que continua sendo o segundo por poucos votos de diferença do independentista, diz o mesmo. Diz o mesmo, mas diz: “vamos ver como nos articulamos”, querem fazer parte da grande nação chinesa.
Em segundo lugar, o maior investidor no sul da China, de capital estrangeiro, é Taiwan. Não são as multinacionais americanas, é Taiwan. Ou seja, Taiwan já está tão imbricado na China que não compensa para os chineses colocarem a bandeira chinesa, desde que não sejam provocados. Agora, não excluo que se Taiwan declarar independência, ataque.
Em seu livro, escreve que é preciso cooperar a partir do respeito mútuo, não só do poder do outro, mas também dos valores... Ou seja, que respeitem o jeito de ser da China.
Sim. É preciso denunciar os abusos humanos em todo o mundo, sem problemas, a partir de nossos valores. Contudo, também é preciso considerar a diferença de escalas. Ou seja, as minorias chinesas, que são fundamentalmente os uigures e os tibetanos, minorias chinesas muito oprimidas, são 4% da população. Não são os Estados Unidos, onde as minorias étnicas chegam a quase 50%, nesse momento. Não são a França com seus imigrantes argelinos ou a Alemanha com seus turcos.
Não é um problema social, mas é um problema moral de direitos humanos. Um problema que não vemos com a Arábia Saudita, os Emirados Árabes... De quem caíram os anéis quando Pinochet se apoiava em Kissinger para exterminar milhares de chilenos ou com os desaparecidos na Argentina? Não se opta pelos valores éticos, é a legitimação e racionalização dessa hostilidade, que se dá em termos de poder, não em termos de sobrevivência moral.
Os chineses são a fragilidade da China? Confiam mais no governo do que em seus concidadãos...
Bem, confiam sobretudo em sua família, é a única coisa. Pensando rapidamente, eu diria que sim. Existem cientistas sociais muito bons na China que fornecem muitas informações e muitos dados, e as coisas vão por aí. O governo tem uma aprovação acima de 60%. Por quê? Porque há muitos oprimidos pelos patrões locais, pelas máfias e por um capitalismo chinês muito selvagem, no qual os sindicatos existem para defender a empresa.
Esse é o grande problema da China. A capacidade manufatureira está conduzindo cada vez mais a explosões sociais ligadas, por outro lado, às explosões sociais urbanas, porque estão mudando completamente as cidades e expulsando as pessoas de suas casas e de suas terras agrícolas onde as cidades se expandem. Isso é um barril de pólvora. Segundo o governo, há mais de 100.000 confrontos violentos por ano na China.
O outro é a inovação tecnológica. Há engenheiros que se destacam de verdade, que emigram. Têm a sorte, do ponto de vista do governo chinês, que nos Estados Unidos são tão tolos que estas pessoas são tratadas como potenciais espiãs, então, limitam a imigração. Em vez de sugar o talento chinês, rejeitam por medos geopolíticos. Os Estados Unidos e a China precisam entrar em acordo porque, caso contrário, ambos vão passar muito mal.
E a Europa, tocada...
Priorizam-se a segurança e o medo da Rússia. Acontece que a União Europeia fica sob a OTAN. Hoje, a OTAN é muito mais importante para a integração europeia do que a União Europeia. Muito mais. Sim, a prioridade é a segurança. A segurança, em última instância, é militar. Caso não seja alcançada uma estabilidade, não digo a paz, mas estabilidade duradoura com a Rússia, a Europa e todos os grandes projetos serão condicionados por isso.
E, além disso, com uma tensão muito forte com os países do leste da Europa, pois a Polônia, por exemplo, está convencida de que um dia ou outro a Rússia a atacará. Ou seja, hoje, se a Polônia decidisse atacar a Rússia por conta própria, a maioria da população a apoiaria. Penso que a Polônia e os bálticos não se incomodariam se tudo se deslizasse para uma guerra generalizada entre a OTAN e a Rússia para acabar de uma vez com o pesadelo russo. Isso não os incomodaria em nada. Não estou dizendo que agirão assim, mas estão nisso.
Ou seja, a União Europeia está entregue à OTAN.
Essa é a minha visão. Hoje, a União Europeia está entregue à OTAN. Dentro da União Europeia, existem diferentes tendências, diferentes fronteiras, mas ainda nos restam os valores europeus. Por quanto tempo mais vamos defender os valores europeus com a extrema-direita no poder ou decidida a estar no poder?
Na Itália, a senhora Meloni pode se disfarçar do que quiser, mas é de extrema-direita. Vamos ver o que acontece na França, depois de Macron. A Inglaterra está na direita; o governo sueco depende do apoio parlamentar do partido neonazista; na Finlândia, o Partido dos Finlandeses, que é nazista, está no poder; na Dinamarca, o apoio parlamentar da extrema-direita é essencial para o governo e o mesmo acontece na Holanda.
Portugal entra em crise e veremos o que acontece na Espanha, onde a direita e a extrema-direita vão juntas e estão assumindo posições de poder muito sérias, já as têm na dimensão territorial. Podem ser governo. O que resta? A Grécia, que já está consolidada.
A União Europeia, outra vítima da invasão da Ucrânia?
Já é. Mesmo que a guerra pare, a Europa nunca mais terá uma relação normal com a Rússia.
E agora temos a inteligência artificial. Seus promotores pedem aos governos: “por favor, regulamentem-nos”. O que está por trás desse pedido?
Bem, há um descaramento ilimitado, porque sabem que haverá muitíssimos problemas legais, muitíssimos. Ao mesmo tempo, não vão parar a capacidade de inovação que isso representa, vão desenvolvê-la, estão desenvolvendo, porque é um campo enorme de tecnologia e negócios e estão entusiasmados com suas próprias maravilhas tecnológicas. Isso está muito claro. Contudo, como se alcançará algo muito forte, estão dizendo: “Não, regulamentem-nos, se puderem. Regulamentem-nos, encontrem formas”. Eles não vão parar a inovação.
Claude, o programa da Anthropic, tem uma Constituição de ética…
Sim, estabeleceram uma constituição dos direitos básicos, o que se pode fazer, o que não se pode fazer etc. No entanto, as pessoas estão descobrindo que mesmo assim você, diretamente você, pode dizer que vale: “eu sei que isso você não pode fazer, mas faça-me algo parecido”. Ou seja, você manipula e encontra a brecha constitucional para que façam a você o que quiser, pois, afinal, você é seu cliente. Então, penso que como não terão realmente o controle, deixam para os especialistas de governos e de universidades que regulamentem, para ver se são capazes.
Qual é o problema?
Para regulamentar de verdade, é preciso ter um conhecimento tecnológico muito profundo. E que problema há nisso? É algo que está escapando das pessoas. A inteligência artificial foi criada nas universidades, sobretudo no MIT, Berkeley, Stanford etc. Portanto, a maior parte dos especialistas estava lá. Hoje, 70% dos pesquisadores de inteligência artificial estão em empresas privadas. Então, não será possível controlá-los.
Você conhece muito bem o Vale do Silício...
Há uma síndrome demiúrgica no novo Vale do Silício. Minha relação com o Vale do Silício é complexa, porque eu o acompanhei quase desde o início e admirava aqueles jovens inovadores, iconoclastas, sem medo de nada, que inventavam tudo, que acreditavam que estavam criando um mundo novo e o fizeram. Era uma espécie de ideal libertário e dessa parte eu gostava. Mas, claro, conforme foram ganhando poder econômico e tecnológico, foram aumentando sua loucura. Na realidade, é uma loucura, porque verdadeiramente estão pensando em ir para Marte.
Como vão agir?
Agora, há uma reação universal ao ChatGPT… E não estamos pensando nas coisas importantes. A primeira é a privacidade. Com a inteligência artificial e bons bancos de dados, os algoritmos, se quiserem, nos controlam. Não apenas sabem tudo sobre todos nós, como também podem projetar o que vamos fazer, seguindo padrões de desenvolvimento. Ou seja, o grande irmão digital está aí. Agora, sim. Antes, era muito mais um receio. A inteligência artificial invade tudo, sabe tudo, controla tudo, e as pessoas, sem saber exatamente, mas estão reagindo.
Ou seja, é preciso ter um pouco de medo de toda essa inteligência artificial.
É preciso ter, eu diria, um sentido comum do que pode ser feito, do que não pode ser feito, e uma atitude muito cautelosa e, sobretudo, sim, é verdade que a regulamentação das instituições deve ser levada a sério e é preciso pressionar os governos. Não basta criar uma comissão dessas de notáveis e que produzam um relatório sobre a filosofia da inteligência artificial. Não, que expliquem o que pode acontecer, de que maneira e como podemos nos prevenir. E que haja uma implementação.
Como imagina o futuro?
Nesse momento, eu diria que o mundo entrou em uma fase sem futuro. Ou seja, podem existir muitos futuros em nível individual, mas não há nada previsível, porque oscilamos, agora de forma séria, cientificamente, entre a extinção da habitabilidade no planeta, não do planeta, mas da nossa capacidade de vivê-lo, a desintegração moral e social em grande parte do mundo e a crescente hostilidade entre grupos humanos, com o racismo, a xenofobia, o ódio. Ódio, justamente o ódio ao outro. Medo, ódio. E com pouca esperança, porque os projetos comuns vão sendo rompidos.
Como o da União Europeia?
A União Europeia, os governos reformistas de coalizão que podem representar uma esperança. Os nacionalismos se tornam mais irredimíveis e mais violentos, mais intransigentes. Então, não é que entraremos, estamos em uma época obscura da humanidade. Eu, como sou por natureza vitalista e otimista, acredito que, no fim, a humanidade sempre encontra fórmulas. Contudo, hoje, ainda não enxergamos essas fórmulas. A Organização das Nações Unidas, a grande esperança, tornou-se uma burocracia inútil.
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“O mundo entrou em uma fase sem futuro”. Entrevista com Manuel Castells - Instituto Humanitas Unisinos - IHU