06 Junho 2023
"Certamente no cristianismo ressoa a voz de Jesus: 'Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem' no Evangelho de Lucas. Muitas perguntas se sobrepõem na mente de quem deve abordar esses temas: o perdão é um fato que pertence à natureza ou é algo gerado pela cultura? Certamente em nossa sociedade atual ouve-se pouco falar de perdão, não é um tema que frequenta tribunais ou livros de história", escreve Marco Belpoliti, escritor italiano, crítico literário e professor da Universidade de Bergamo, em artigo publicado por Repubblica, 05-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Um filósofo, Jacques Derrida, escreveu que o perdão pertence à ordem do imprescritível, ou seja, daquelas realidades que na linguagem jurídica não estão sujeitas à prescrição. É algo paradoxal, como reiterou Renato Rizzi, médico, oncologista e psicólogo, num livro dedicado a esse tema (Itinerari del perdono, Unicopli). Só se pode perdoar onde há algo imperdoável: daí o pensamento do pároco ao recordar Giulia Tramontano. Algo que pertence a uma espécie de ordem superior, pois para ser tal deve ser absoluto.
Quase um absurdo sobre o qual outros filósofos como Jankélévitch se questionaram em especial diante daquele evento histórico que foi o Holocausto. Para o filósofo francês esse acontecimento é inexpiável, irrevogável, indelével. Como acontece diante do assassinato de alguém que nos é caro, alguém que amamos e que a violência irrefreável apagou da vida. Aquele crime horrendo e imensurável que aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial, pelo que nenhum perdão resulta possível, é também um caso que mostra como o perdão não pode inscrever-se em nenhuma lei moral universal. O perdão está além de qualquer lógica jurídica, de qualquer medida, porque pertence ao incomensurável. Como Rizzi reitera no início desse livro, esse ato diz respeito ao próprio conceito de gratuidade.
No étimo falso, no entanto verdadeiro, da palavra "perdão" está a palavra "dom", tanto que a gratuidade é fonte do perdão, mesmo onde existe a ideia contrária do olho por olho, dente por dente. Não é necessário ser um crente para saber que o perdão vive fora da própria lei, além de qualquer norma jurídica: ultrapassa qualquer juízo de culpa. O culpado, lembram os juristas, fez algo sem ter o direito de fazê-lo, como apagar uma ou mais vidas, sendo por isso o pedido de justiça consoante à condenação. E, no entanto, há algo que está além de tudo isso, como nos mostrou Manzoni no confronto entre Frei Cristóvão e o Inominado, ou como se vê no gesto com que Trasíbulo após ter posto fim ao Regime dos trinta tiranos em Atenas em 403, de volta vitorioso à cidade, para acabar com a guerra civil, decretou anistia para todos aqueles que eram culpados de atos de sangue.
Embora o gesto não tenha levado à resolução dos problemas – o retorno à democracia não significou suspensão definitiva em Atenas de penas de morte – porém associou o perdão à expressão mè mnesikakein: “não me lembro do mal sofrido", razão pela qual "não me vingo". O esquecimento do mal tornou-se talvez pela primeira vez a resposta de paz para uma comunidade profundamente dividida. Hoje o tema da vingança, embora excluído de qualquer lei civil, soa como uma questão de grande atualidade. Como explicam os estudiosos da Grécia clássica, o gesto de Trasíbulo não recorreu a conteúdos políticos, mas religiosos, impondo o juramento de perdão perante os deuses.
Talvez não seja por acaso que foi justamente o arcebispo Desmond Tutu na África do Sul no fim do apartheid que trabalhou pela instituição do “Tribunal do Perdão” e com a “Comissão pela Verdade e Reconciliação”. Rizzi se pergunta na introdução do livro se o perdão é um valor religioso. A resposta não é simples. No Antigo Testamento o perdão cabe somente a Deus, enquanto o Novo contempla a possibilidade do perdão como fato humano. O budismo, por outro lado, usa outra chave para acessar o que nós chamamos perdão: a compaixão. Também este é um tema que mobiliza algo profundamente humano: o sentimento de piedade que comporta a participação nos sofrimentos dos outros.
Certamente no cristianismo ressoa a voz de Jesus: 'Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem' no Evangelho de Lucas. Muitas perguntas se sobrepõem na mente de quem deve abordar esses temas: o perdão é um fato que pertence à natureza ou é algo gerado pela cultura? Certamente em nossa sociedade atual ouve-se pouco falar de perdão, não é um tema que frequenta tribunais ou livros de história
Dominam quase sem contestação no plano social o ressentimento e o rancor, dois sentimentos que ocupam o campo tanto nos indivíduos quanto nas coletividades mais ou menos grandes. Nós não esquecemos que nem mesmo um espírito iluminado, além de iluminista, como Primo Levi, não queria ouvir falar de perdão em relação aos campos de concentração nazistas e fascistas da Segunda Guerra Mundial.
Mas quem já leu e releu "Os afogados e os sobreviventes" sabe com quanta angústia e com quanto tormento é escritor de Turim tenha se questionado sobre todos aqueles que estavam envolvidos de várias maneiras naquele crime incomparável que foi o Holocausto. Derrida, em "Perdoar", defende que o perdão deve ser incondicional e, portanto, silencioso, invisível, discreto. Algo quase impossível.
No entanto, entre nós houve pessoas que foram capazes disso e disseram de uma vez por todas: "Eu perdoei". Algo que está além de qualquer disposição natural dos seres humanos e, no entanto, se alguém o fez, significa que é possível.
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Quando o perdão está fora de moda. Artigo de Marco Belpoliti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU