05 Janeiro 2023
"O sagrado não desapareceu do mundo contemporâneo ao contrário do que pensavam os filósofos e teólogos da secularização, mas ainda permanece, embora de forma reduzida. Como escreveu Pasolini, "o futebol é a última representação sagrada do nosso tempo", enquanto outras representações sagradas estão em declínio, incluindo a missa. O acaso, ou talvez o destino, colocou hoje os dois espetáculos sagrados em direto confronto".
O artigo é de Marco Belpoliti, escritor italiano, crítico literário e professor da Universidade de Bergamo, publicado por la Repubblica, 04-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O paralelo é quase inevitável: dois corpos expostos no mesmo dia em dois diferentes lugares sagrados.
Aquele de Bento XVI, nascido Joseph Aloisius Ratzinger, na Basílica de São Pedro, a basílica da catolicidade mundial, e aquele de Pelé, nascido Edson Arantes do Nascimento, no estádio do Santos, templo futebolístico do Brasil e da comunidade de torcedores de todo o mundo. Um destino que os une também pela técnica adotada na preservação de seus corpos durante a exposição. Para ambos, foi aplicada a "tanatopraxis", um embalsamamento temporário através de uma intervenção no sistema arterial de circulação que retarda a decomposição. Tudo isso serve para realizar as cerimônias de despedida das duas personalidades, fundamentais para lhes prestar homenagem, como tem acontecido nas duas catedrais desde as primeiras horas em que os corpos foram apresentados ao público.
Não será, portanto, um verdadeiro embalsamamento, como foi feito no século XX para os corpos dos dois pontífices do comunismo, Lênin e Stálin, cujo culto foi propiciado pela conservação do próprio corpo exposto em local de culto erguido para o propósito na Praça Vermelha, ou para Mao, outro grande timoneiro da revolução, cujo corpo foi oferecido à devoção religiosa dos fiéis. É preciso dizer que essa prática foi patrimônio específico dos regimes políticos em que o elemento da santificação do líder era indispensável para a continuidade de seu culto post mortem. Lincoln foi mumificado após seu assassinato, depois também Evita Peron, personagem dotada de um carisma próprio, e recentemente os corpos de dois presidentes norte-coreanos da família Kim. A necessidade de embalsamar os dois papas recém-falecidos, o católico e o do futebol, não deveria ser considerada indispensável, pois, pelo menos no caso do papa Ratzinger, aplica-se a teoria dos dois corpos do rei, válida para todos os soberanos e cabeças coroadas ainda em circulação.
No século XVI, os juristas ingleses, como explicou Ernst Kantorowicz, produziram uma nova concepção jurídica segundo a qual o soberano tinha dois corpos, um natural e outro político. O primeiro é o mortal, que se depara com todos os problemas da existência terrena, incluindo doenças e enfermidades de vários tipos. O outro, o corpo político, é um corpo invisível que o rei recebe em sua investidura naquele cargo, e que sobrevive à sua morte e é transmitido por herança a seus descendentes. Tudo se baseia no fato de que, assim como Cristo tem duas naturezas, uma humana - ele é verdadeiramente homem - e outra divina - ele é verdadeiramente Deus -, assim também o rei é um ser duplo: humano e divino. Os rituais fúnebres reservados a essas figuras eram variados, desde o uso de manequins que reproduziam as feições do soberano até aqueles que envolviam tratar o morto como se estivesse ainda vivo. Tudo isso dura até que seja proclamado o sucessor, que por sua vez assume essa dupla natureza.
Ora, o Papa Ratzinger efetivamente liquidou o ritual de dupla natureza com sua renúncia, tanto que criou na época um problema de natureza teológica, além de jurídica, com a existência do Papa emérito, para o qual a sua exposição agora em São Pedro contém elementos rituais novos. No caso de Pelé, estamos diante de uma figura que carrega consigo sua própria divindade ligada ao corpo mortal, enquanto o corpo divino talvez ainda não tenha um herdeiro direto que possa substituí-lo tomando seu lugar. Sua passagem através da exposição nos diz que o futebol é cercado por uma aura de sacralidade; a figura de Pelé é mais a de um Santo do que a de um Papa Rei. Que o destino do corpo invisível de Edson Arantes do Nascimento é, portanto, aquele do ícone sacral e da lenda, alimentado pela existência de uma memória visual: as gravações dos jogos de futebol e seus gols. Algo muito mais eficaz do que a memória mnemônica dos indivíduos ou o testemunho fotográfico. A existência da televisão, e depois da web, prolonga seu corpo invisível em um lugar fora do tempo e do espaço.
O sagrado não desapareceu do mundo contemporâneo ao contrário do que pensavam os filósofos e teólogos da secularização, mas ainda permanece, embora de forma reduzida. Como escreveu Pasolini, "o futebol é a última representação sagrada do nosso tempo", enquanto outras representações sagradas estão em declínio, incluindo a missa. O acaso, ou talvez o destino, colocou hoje os dois espetáculos sagrados em direto confronto.
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Os dois espetáculos sagrados - Instituto Humanitas Unisinos - IHU