08 Agosto 2016
Antes que a Reforma transformasse a relação com a religião de fenômeno geral em evento vivido individualmente, os comportamentos coletivos definiam a atitude em relação ao medo, normatizavam-na. Agora está acontecendo algo semelhante? A ansiedade se torna um fenômeno comum e não mais apenas uma experiência emocional individual?
A reflexão é do escritor italiano Marco Belpoliti, crítico literário e professor da Universidade de Bergamo, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 05-08-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O medo está de volta. Parecia domado, tornado inofensivo pela nossa capacidade técnico-científica de dominar o mundo, de prever tudo ou quase tudo. Mas ei-la de novo. Zygmunt Bauman nos tinha avisado há dez anos em "Medo líquido" (Ed. Saraiva): esse é o nome hoje da nossa incerteza, da precariedade, da falta de futuro.
Ninguém parece indicar o que fazer. A liderança mundial oscila perigosamente à beira de uma cratera. O mundo está em agito, e vivemos em um estado de medo. Ou, melhor: de ansiedade.
Sergio Mattarella também lembrou disso em um discurso, ressuscitando a fórmula usada pelo poeta W. H. Auden em uma obra dele: "A era da ansiedade". Écloga barroca escrita em 1947, logo depois das duas bombas atômicas lançadas pelos estadunidenses sobre Hiroshima e Nagasaki, das quais ocorre o aniversário nestes dias.
Em 1966, os Rolling Stones, em Mother’s Little Helper, descrevem as donas de casa britânicas que recorrem ao Valium, um ansiolítico. O psicanalista Henry P. Laughlin define a ansiedade como "tensão apreensiva, inquietação que nasce do fato de sentir um perigo iminente, mas vago, de origem conhecida".
Como podemos definir aquilo que sentimos quando, ao entrar na estação, passamos por um posto de controle com militares totalmente camuflados, ou quando nos submetemos às revistas das bolsas na entrada de uma mostra, ou quando vemos uma mochila suspeita no metrô? O que tememos? Um ataque terrorista, um comando suicida?
Tudo isso, mas também outras coisas. A ansiedade não tem um conteúdo definido. Se o medo se focaliza em uma ameaça externa específica, um evento presente ou iminente, como escreve o neurocientista Joseph LeDoux em Ansia (Ed. Raffaello Cortina), a ansiedade envolve uma ameaça não definida, menos identificável, "algo mais interno", uma expectativa mental que também poderia ser algo apenas imaginado com poucas chances de ocorrer.
A palavra "ansiedade" vem do latim anxietas, que deriva do grego angh, raiz que foi usada para significar "oprimido" ou "perturbado", ou seja, "angustiado"; o seu significado inicial se refere a sensações físicas como tensão, constrição, desconforto. A própria palavra "angina", que diz respeito a doenças cardíacas com dores no peito, vem de angh (LeDoux).
As emoções que sentimos são um magma, lembra-nos o psiquiatra Eugenio Borgna em Le figure dell’ansia (Ed. Feltrinelli), porque se misturam com coisas diferentes: estados de humor, sentimentos, experiências vividas. A ansiedade, assim como outras emoções, não é algo homogêneo ou distinto, mas estratificado, que pode ser entendida e sondada apenas com muito coração, escreve Borgna. Por mais que a ansiedade seja uma emoção individual, subjetiva, assim como o medo, ela se comunica.
Certamente, o 11 de setembro, evento a que assistimos ao vivo em todo o mundo, na frente da TV, criou uma onda de pânico que, com o passar dos dias e dos meses, se transformou em ansiedade. Trata-se do transtorno de estresse pós-traumático típico de quem experimentou uma experiência avassaladora; nesse caso, porém, não disse respeito apenas àqueles que se encontravam debaixo das Torres Gêmeas, mas também àqueles que, longe de Nova York, viveram o acontecimento como se tivesse estado realmente lá.
Hoje, as redes sociais e os telefones celulares multiplicam esse efeito em escala planetária. Os historiadores mostraram que, no passado, o medo era, acima de tudo, um sentimento coletivo. Jean Delumeau, no seu estudo sobre o medo entre os séculos XIV e XVIII ("O medo no Ocidente, séculos XIV-XVIII"), examina o temor da escuridão, de Satanás, das bruxas, da magia, das heresias, da peste. Antes que a Reforma transformasse a relação com a religião de fenômeno geral em evento vivido individualmente, os comportamentos coletivos definiam a atitude em relação ao medo, normatizavam-na.
Agora está acontecendo algo semelhante? A ansiedade se torna um fenômeno comum e não mais apenas uma experiência emocional individual?
No seu poema, Auden parece sugerir algo semelhante. Vivia-se, no fim dos anos 1940, sob o temor da bomba atômica, no pesadelo da explosão fim-de-mundo descrita depois por Stanley Kubrick no seu "Dr. Fantástico".
A ansiedade, assim como outras emoções, é contagiosa. Todos vivemos uma atitude de espera, de antecipação. Enquanto no medo a antecipação diz respeito, "se e como uma ameaça atual irá causar danos", escreve Le-Doux, na ansiedade, "a antecipação envolve a incerteza sobre as consequências de uma ameaça que está presente e que pode não acontecer".
Esse é o estado de espírito coletivo em que nos encontramos hoje: preocupamo-nos com ameaças futuras que podem nos prejudicar como coletividade e como indivíduos, mas não sabemos bem quais e se, depois, realmente vão nos afetar.
Reformulando uma expressão de Kierkegaard, Louis Menand afirmou que "a ansiedade é o preço da liberdade humana".
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A era da ansiedade e do medo líquido. Artigo de Marco Belpoliti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU