30 Janeiro 2023
"Houve outros genocídios antes do Holocausto? Pelo menos dois: o dos armênios pela Turquia de 1915 a 1916 com 1,5 milhão de vítimas, e aquele planejado por Stalin contra os ucranianos com a grande carestia de 1933-34 chamado de Holodomor com 3,5 milhões de vítimas. Naqueles tempos, porém, não existia um Dia da Memória e por isso Hitler em 1939 pôde declarar: 'Quem ainda hoje fala da aniquilação dos armênios?' (do relatório do embaixador britânico de 25 de agosto 1939). É evidente que o silêncio em que havia caído o genocídio dos armênios o encorajava a levar a cabo o genocídio que estava planejando contra os judeus e que realizou pouco tempo depois".
A opinião é do teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Universidade San Raffaele de Milão e da Universidade de Pádua, em artigo publicado por La Stampa, 27-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Liliana Segre afirmou: “Em alguns anos sobre o Holocausto haverá uma linha nos livros de história, e depois nem mesmo esta”. É possível evitar tal resultado? Vamos começar dizendo que dar um nome aos eventos é essencial. Significa compreendê-los, assumi-los, torná-los próprios: um evento, que antes estava fora da mente, depois, através do nome atribuído, entra nela e, como objeto mudo, assume um significado. Churchill havia falado do extermínio dos judeus pelos nazistas como de um "crime sem nome" porque não havia precedentes na história, por mais sangrenta que fosse, da humanidade. Mas então a necessidade de entender da mente começou a propor nomes para o evento e entre estes, ao final, um prevaleceu: Holocausto (Shoah), termo hebraico que significa "catástrofe".
Mas que tipo de catástrofe se nomeia ao dizer Holocausto? Catástrofe, de fato, pode ser referida a muitas coisas e nós usamos o nome na linguagem cotidiana, mesmo para eventos bem pouco catastróficos, como quando, falando de um espetáculo, dizemos “a peça de teatro foi uma catástrofe”. É necessário, portanto, especificar a tipologia de catástrofe nomeada ao dizer Holocausto, esclarecer qual foi a peculiar catástrofe que os nazistas implementaram com a operação que chamaram de Endlösung, "solução final".
A melhor resposta é aquela fornecida pelo jurista judeu polonês Raphael Lemkin com o termo que cunhou para nomear o conteúdo específico do Holocausto: "genocídio". O Holocausto é a catástrofe que consiste no genocídio do povo judeu.
Para cada termo, o dicionário Zingarelli informa o ano da primeira ocorrência na língua italiana e para "genocídio" o ano é 1950 (para Shoah é 1985). O termo foi cunhado por Lemkin seis anos antes, em 1944, com base em duas palavras antigas: o grego “genos”, povo, e o latim “cidium” (do verbo “caedere”, “golpear à morte”) de onde “homicidium”. Genocídio é o homicídio de todo um povo.
Houve outros genocídios antes do Holocausto? Pelo menos dois: o dos armênios pela Turquia de 1915 a 1916 com 1,5 milhão de vítimas, e aquele planejado por Stalin contra os ucranianos com a grande carestia de 1933-34 chamado de Holodomor com 3,5 milhões de vítimas. Naqueles tempos, porém, não existia um Dia da Memória e por isso Hitler em 1939 pôde declarar: 'Quem ainda hoje fala da aniquilação dos armênios?' (do relatório do embaixador britânico de 25 de agosto 1939). É evidente que o silêncio em que havia caído o genocídio dos armênios o encorajava a levar a cabo o genocídio que estava planejando contra os judeus e que realizou pouco tempo depois.
O que mostra que existe uma profunda conexão entre as formas de mal extremo que os humanos são capazes de cometer, e é tarefa do pensamento identificar essa conexão. Mas há também uma conexão no mínimo igualmente profunda entre as formas de bem extremo que os humanos também são capazes de praticar, e é sempre tarefa do pensamento identificá-las e tarefa do coração celebrá-las. É o que a Gariwo faz há mais de vinte anos, uma fundação sediada em Milão e com inúmeras colaborações internacionais, cujo nome é um acrônimo que significa “Gardens of the Righteous Worldwide”, “Jardins dos Justos de todo o mundo”. Presidida pelo escritor judeu Gabriele Nissim, e fundada por ele em 2000 juntamente com o escritor armênio Pietro Kuciukian, a Gariwo trata de buscar as figuras exemplares de Justos da humanidade, para torná-las conhecidas e celebrá-las. Faz isso plantando árvores, uma árvore para cada Justo, em cada um dos mais de duzentos Jardins que instituiu e cultiva em toda a Itália e em uma dúzia de países, entre os quais, não por acaso, Armênia, Alemanha, Israel, Argentina, Curdistão iraquiano.
Nessa perspectiva, Nissim vem travando sua batalha há anos para fazer compreender como o sentido do Dia da Memória deva ser duplo: em relação ao passado para recordar os nomes e os rostos daqueles que foram mortos nos campos de extermínio; em relação ao futuro para prevenir qualquer possível novo genocídio. De fato, como antes do genocídio judeu, foram lembrados os dois genocídios, assim depois se seguiram outros. Quantos? Segundo Gregory Stanton, fundador do Genocide Watch, de 1948 até hoje houveram mais de 55 extermínios que poderiam ser definidos como "genocídio" com 70 milhões de vítimas. Recentemente Nissim escreveu um ensaio intitulado "Auschwitz nunca acaba: A memória do Holocausto e os novos genocídios", cuja tese é que o Holocausto não deve ser considerado algo único e consequentemente não repetível na história, mas deve ser considerado como o genocídio paradigmático do século XX, uma lupa para identificar e impedir qualquer outra possibilidade de genocídio. O Holocausto como genocídio "paradigmático": o paradigma é o modelo gramatical da conjugação de um verbo. Nele não estão contidas todas as possíveis formas que o verbo assumirá, mas graças a ele é possível reconhecê-las. Assim, para Nissim e outros estudiosos judeus, deveria ser a memória do Holocausto: representar um paradigma que nos permite reconhecer todas as possíveis formas de conjugação do verbo do terror e do ódio.
O primeiro a falar do Holocausto como genocídio paradigmático foi o historiador israelense Yehuda Bauer, que depois acrescentou: “Não há diferença entre o sofrimento dos judeus, dos tutsis, dos russos e dos chineses, dos congoleses ou de qualquer pessoa que tenha se encontrado diante de um assassinato em massa de viés genocida. Não existe gradação no sofrimento... portanto não existe nenhum genocídio pior que outro. A ideia de competição não é apenas repugnante, mas totalmente ilógica”. Esse é o ponto delicado da questão: definir o Holocausto como um genocídio "sem precedentes" fazendo uso de uma categoria histórica, ou defini-lo como uma "unicidade absoluta" incomparável a qualquer outro genocídio se valendo de uma categoria meta-histórica e chegando mesmo a diferenciar o valor das vítimas e de seu sofrimento reconhecendo o título de Justo apenas para aqueles que salvam judeus e não outros seres humanos (como afirmam alguns expoentes do judaísmo). Para Nissim, e antes disso para Bauer e para Lemkin, o Holocausto é um genocídio sem precedentes (mas que, como escreveu Primo Levi, “aconteceu, portanto, pode acontecer novamente") e o título de Justo cabe àqueles que salvam vidas humanas de qualquer povo, sem nenhuma diferença.
Liliana Segre afirmou que “daqui a alguns anos sobre o Holocausto haverá uma linha nos livros de história, e depois nem mesmo esta”. Evitar tal desfecho é dever de todo ser humano de reta consciência moral, porque o Holocausto deve continuar a ser estudado e lembrado por todos, aliás, ainda mais. Mas como? Com a condição do que escreve Anna Foa, historiadora judia: “A única maneira de manter viva a memória do Holocausto é abri-la aos genocídios que constelaram o século XX e que continuam a ocorrer, neste nosso terceiro milênio, no resto do mundo”. Da mesma forma, continua a estudiosa, “se nos limitarmos a contar o que aconteceu ao povo judeu no Holocausto, se nos fecharmos numa visão defensiva da memória, teremos perdido a batalha de saída”. Abrir-se a uma visão não defensiva da memória significa erigir a memória do Holocausto a paradigma a partir do qual reconhecer qualquer outro genocídio, passando a falar, como gostaria Lemkin, de "Dia do Holocausto e da prevenção dos genocídios". E também significa exercer as pressões possíveis sobre Israel para que finalmente reconheça o extermínio dos armênios perpetrado pela Turquia como "genocídio", como muitos Estados fizeram até agora, inclusive a Itália. Israel não pode deixar de lembrar as palavras de Hitler de 1939 sobre o genocídio esquecido dos armênios! Inclusive porque, se há um povo que pode compreender a atrocidade de não ver reconhecido o seu sofrimento, é precisamente o povo judeu. Gabriele Nissim escreveu: “Nós nos tornamos maduros quando incluímos em nossa memória os sofrimentos dos outros”.
Quando o acusaram de trair a religião porque ele também acolhia os párias infringindo o ordenamento das castas, o Buda respondeu: "O sangue de todos é vermelho, e as lágrimas de todos são salgadas. Somos todos seres humanos”. O Dia da Memória transformado em "Dia do Holocausto e da prevenção dos genocídios" poderia nos lembrar disso com mais eficácia, evitando assim que o Holocausto seja reduzido a uma linha nos livros de história e depois no futuro nem mesmo a isso.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Para manter viva a memória do Holocausto, é preciso ter a força para dar um nome ao mal. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU