04 Abril 2022
Em meio às ondas desencadeadas pelas mais de 3.000 crianças nativas que morreram nos internatos católicos administrados pelo governo canadense entre 1870 e 1997, a Santa Sé, ao invés da barca de Pedro, é mais semelhante ao caiaque Inuvialuit doado ao Papa Pio XI e hoje conservado no museu etnográfico vaticano e que as Primeiras Nações, os Métis e os Inuit gostariam de levar de volta ao Canadá.
A reportagem é de Marco Grieco, publicada em Domani, 01-04-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Depois de se encontrarem com o Papa Francisco, foram eles que pediram à Igreja Católica que volte à terra do Ártico e expie os pecados de obras e omissões que marcaram as missões cristãs na América do Norte por mais de um século: “Eu me pergunto, e os católicos também deveriam se perguntar, como é que a Igreja demorou tanto para fazer o mais certo, humano e honroso”, interroga-se Niigaanwewidam Sinclair, professor de Estudos Indígenas na Universidade de Manitoba.
As delegações reunidas no Vaticano há poucos dias apresentaram uma conta salgada: segundo o trabalho realizado pela Comissão para a Verdade e a Reconciliação desde 2007, em mais de 100 anos pelo menos 150 mil crianças foram arrancadas das tribos aborígenes a que pertenciam com tamanha violência que, em 2008, o primeiro-ministro canadense, Stephen Harper – tomando emprestado o termo introduzido pelo jurista Raphael Lemkin –, pediu desculpas publicamente por aquilo que definiu como “genocídio cultural”.
Um ano depois, no Vaticano, o Papa Bento XVI também expressou o seu pesar diante do presidente da Assembleia dos Nativos do Canadá, Phil Fontaine. Na sua viagem ao Equador em 2015, o Papa Francisco admitiu os “graves pecados contra os nativos americanos cometidos em nome de Deus”.
Para os povos aborígenes, porém, as declarações não são suficientes: “Espero que o papa anuncie que visitará o Canadá, desculpando-se com os sobreviventes das Primeiras Nações, Inuit e Métis pelos abusos espirituais, emocionais e sexuais perpetrados contra eles, da mesma forma que em 2010, ao se dirigir às vítimas de violência sexual na Irlanda”, disse Sinclair.
Na base das reivindicações, espera-se que o papa condene a chamada “doutrina do descobrimento”, o marco normativo na base da apropriação territorial e sociocultural das terras indígenas, que se cristalizou com a sentença da Suprema Corte dos Estados Unidos no caso Johnson vs. McIntosh (1823), mas que, de fato, tem a sua origem na bula Romanus pontifex, emitida pelo Papa Nicolau V em 1455: um passe usado pelos colonos europeus para “submeter todos os inimigos de Cristo [...] e reduzir os seus habitantes à escravidão perpétua” no Novo Mundo.
“A Igreja precisa devolver toda a terra que recebeu para administrar as escolas residenciais das Primeiras Nações. Não se deve negociar sobre isso, porque a terra tirada com violência deve ser devolvida”, reiterou Sinclair.
Os jesuítas canadenses compartilham a mesma opinião: “Estamos dando a nossa contribuição para descolonizar as nossas formas de pensar e apoiar os esforços dos povos indígenas à autodeterminação. Nesse sentido, nós, jesuítas, estamos comprometidos tanto com a busca de novas oportunidades de igualdade de acesso à educação quanto com a reconstrução da cultura indígena suprimida nos anos dos internatos”, declara a Companhia de Jesus no Canadá.
Mas reparação não significa apenas restituição. Há dois dias, a delegação canadense, na presença do Papa Francisco, abordou o tema dos abusos de menores perpetrados à sombra das escolas. De certa forma, trata-se de uma ferida ainda aberta, como demonstra o caso de Johannes Rivoire, o padre acusado de ter abusado de menores durante o seu ministério nos anos 1960 entre as comunidades Naujaat e Rankin Inlet, em Nunavut, território ao norte do Canadá. Hoje, o religioso de 90 anos vive na França, e as vítimas pedem há muito tempo a sua extradição.
Lori Idlout é parlamentar em Nunavut e luta para que outros falem: “É inaceitável permitir que criminosos como Johannes Rivoire vivam as suas vidas em liberdade, enquanto os sobreviventes ainda estão feridos. As desculpas são um primeiro passo para reconhecer o dano e o trauma, mas a Igreja deve parar de proteger os abusadores e os encobrimentos institucionais que ocorreram sob a sua vigilância. Agora, eles têm a oportunidade de remediar essa atrocidade”, disse.
Dom Anthony Krótki, bispo da Diocese de Churchill-Hudson Bay-Nunavut, também é a favor da extradição do padre. A última palavra será proferida pelo papa nestes dias: as expectativas são muitas em relação à Igreja das periferias.
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Canadá. Para os nativos, o mea culpa do Papa Francisco não basta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU