“Neste triste tempo de guerra, dificuldades, perda e luto, há duas coisas no coração do cristianismo que são mais do que nunca necessárias: esperança e perdão.”
Esta é a primeira de duas reflexões extraídas de uma palestra proferida em maio a jovens que estão discernindo a sua vocação para a vida religiosa. Timothy Radcliffe é ex-mestre da Ordem Dominicana, conferencista itinerante, pregador e diretor de retiros.
Timothy Radcliffe, terceiro a partir da esquerda, com outros delegados em uma viagem à Síria que os levou para perto da linha de frente da guerra civil (Foto: The Tablet)
O artigo foi publicado em The Tablet, 13-07-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
John Henry Newman disse: “Não tema que sua vida chegue ao fim, mas sim que ela nunca tenha um começo”. Ou, como alguém muito diferente, a romancista Jeanette Winterson, disse, “à medida que tento entender como a vida funciona – e por que algumas pessoas lidam melhor do que outras com a adversidade – volto a dizer sim à vida, que é o amor pela vida, por mais inadequada que seja, e o amor por si mesmo, seja como ele for. Não de uma forma que coloca o ‘eu’ em primeiro lugar, que é o oposto da vida e do amor, mas com uma determinação semelhante à do salmão de nadar contra a corrente, por mais agitada que seja a corrente, porque este é o seu riacho”.
Somos chamados a estar plenamente vivos. E estar vivo plenamente, humanamente, é ser capaz de se libertar do peso do passado e abrir-se à esperança do futuro. Para viver agora, precisamos de perdão e esperança.
Comecemos pela esperança. A desgraça está no ar. Este é um momento difícil para ser jovem. O futuro parece estar desaparecendo. Democracias em todo o mundo estão desmoronando. A catástrofe ecológica se aproxima. Existe até, pela primeira vez desde a minha infância, a ameaça de uma guerra nuclear. Não é à toa que muitas pessoas estão decidindo não ter filhos. Então, como podemos ter esperança?
Permitam-me voltar à Última Ceia, o fundamento de toda a nossa esperança. Comecei a vislumbrar isso quando fui a Ruanda no início do genocídio e descobri que estava sem palavras. Tudo o que eu podia fazer era compartilhar a Última Ceia. Mais recentemente, eu visitei a Síria. Os dominicanos têm uma base em um mosteiro nas colinas entre Damasco e Homs. Estávamos a apenas cinco quilômetros da linha de frente da guerra civil, e eu ficava acordado à noite pelo som dos disparos de artilharia de um posto de armas a apenas 50 metros do meu quarto. Todas as manhãs, o sino do mosteiro tocava desafiadoramente, convocando-nos para a Eucaristia. Eu me perguntava o que os soldados rebeldes em suas trincheiras próximas pensavam do seu som ecoando pelo pequeno vale que nos separava. Não há nada como estar perto de pessoas que teriam prazer em cortar a sua cabeça por revelar a esperança da Última Ceia.
Em cada missa, somos transportados de volta à última noite antes da morte de Jesus, quando tudo está descendo ao caos. Judas havia traído Jesus, Pedro estava prestes a negá-lo, e os outros estão se preparando para fugir. Parece que tudo o que vem pela frente é fracasso, sofrimento e morte; o futuro foi engolido. Então, Jesus pega o pão e o parte, dizendo: “Isto é o meu corpo dado por vocês”. Todos os domingos, reunimo-nos para lembrar a pior de todas as crises, a Última Ceia, quando Cristo nos deu o sacramento da esperança. A Eucaristia não é um encontro alegre de pessoas bonitas que cantam e se sentem bem. É uma expressão ultrajante de esperança desafiando tudo o que poderia destruí-la.
Jesus faz esse audacioso ato de generosidade diante da morte. Se você for chamado à vida religiosa, estará fazendo o seu insano ato de generosidade diante da morte. A sua própria morte, que provavelmente parece muito distante. Mas também a morte que pode afligir a sua congregação e os seus projetos mais queridos.
Gervase Mathew era um maravilhoso padre dominicano que lecionava em Oxford e era amigo de Tolkien e C. S. Lewis. Quando estava morrendo, ele me chamou ao lado do seu leito e me mandou comprar duas garrafas de cerveja. Eu fui buscá-las, chorando. Gervase ergueu a sua garrafa e disse: “Ao Reino de Deus!”. Uma enfermeira que passava disse: “Padre Gervase, o senhor sabe que não deve beber junto com seus comprimidos?”. Ele respondeu: “Não seja uma velha boba. Eu vou morrer amanhã de manhã”.
Você provavelmente está enfrentando a morte de todos os tipos de instituições que foram criadas pelas suas congregações, como escolas e hospitais. Quando fui eleito provincial da Ordem dos Pregadores na Inglaterra em 1988, meu primeiro dever foi visitar um mosteiro dominicano de freiras contemplativas, chamado Carisbrooke, na Ilha de Wight. Fui junto com o provincial anterior. As irmãs haviam chegado ao fim da estrada e tinham que enfrentar o fechamento. Uma delas me disse: “Mas nosso querido Senhor não deixaria Carisbrooke morrer, deixaria?”. Ao que o provincial respondeu: “Ele deixou o seu próprio Filho morrer”. Então, assim como Jesus na Última Ceia, podemos enfrentar a morte com alegria e esperança. Podemos olhar a morte nos olhos.
Então, como é uma vida cheia de esperança? Parte disso está aí, mesmo quando parece inútil. Estou em contato frequente com os irmãos e as irmãs dominicanos na Ucrânia. Metade deles são poloneses e metade, ucranianos. Eles poderiam facilmente ter fugido para a Polônia. E era necessário que muitas pessoas pudessem fazer isso. Mas ficar e apenas estar lá é um belo sinal de esperança. O Senhor Ressuscitado disse aos seus discípulos: “Eis que estou com vocês todos os dias, até o fim dos tempos” (Mateus 28,20).
Então, como vocês podem ser sinais do Senhor que permanece até o fim dos tempos? Às vezes, o mais importante que podemos fazer é apenas permanecer com as pessoas em sua hora de necessidade. O Filho do Homem disse: “Eu estava doente, e vocês me visitaram” (Mateus 25,36). Rowan Williams disse: “‘Eu não vou embora’ é uma das coisas mais importantes que podemos ouvir”.
Outra expressão dessa esperança é apenas levantar todas as manhãs e fazer qualquer boa ação que o Senhor lhe der para fazer naquele dia. São Paulo diz que somos “criados em Cristo Jesus para as boas obras que Deus já havia preparado de antemão, a fim de que as praticássemos” (Efésios 2,10). Terry Eagleton escreve: “Os atos mais florescentes são aqueles realizados como se fossem os últimos, e assim realizados não pelas suas consequências, mas por si mesmos”.
Mais uma vez, foi no Oriente Médio devastado pela guerra que eu vi isso da forma mais bela. Um dos nossos irmãos dominicanos estava relutante em voltar para Bagdá. Ele estava com medo, mas agora estava feliz por estar ali. Ele me disse: “Esperança significa que eu vivo agora, aconteça o que acontecer amanhã”. A única pergunta é: o que me é dado fazer hoje? As Irmãs da Caridade cuidam de crianças com deficiência que foram abandonadas pelas suas famílias. Não posso esquecer o rosto severo de Nora, nascida sem pernas nem braços, e que alimenta os mais novos segurando uma colher na boca.
Também encontrei esperança nas boas ações que os muçulmanos fizeram pelos cristãos. Logo abaixo do mosteiro na Síria em que eu fiquei está situada o vilarejo de Qara. Alguns anos atrás, ele foi capturado pelo ISIS. Os ícones das nossas igrejas foram desfigurados, as sepulturas do cemitério cristão foram profanadas, e os corpos espalhados por toda a parte. Quando o vilarejo foi recapturado, os cristãos não tinham onde celebrar o Natal. O imã disse: “Venham e celebrem-no na mesquita”.
Essas são boas ações feitas por si mesmas. Não fazem parte de um programa político. Não são um meio para um fim. Nós as fazemos porque é bom fazê-las. O que essas boas ações alcançarão? Isso não é assunto nosso. O Senhor da colheita lhes dará frutos que não podemos imaginar. Ao fim da alimentação dos cinco mil, todos os fragmentos são recolhidos. Nada é desperdiçado. A nossa esperança é de que nada das nossas vidas será desperdiçado.
Thomas Merton escreveu a um amigo que estava desencorajado pelo fracasso da sua campanha de paz em produzir qualquer resultado: “Não dependa da esperança dos resultados. Quando você está fazendo o tipo de trabalho que assumiu, pode ter que encarar o fato de que seu trabalho será aparentemente inútil e até mesmo não obterá nenhum resultado. À medida que você se acostuma com essa ideia, você começa a se concentrar cada vez mais não nos resultados, mas no valor, na retidão, na verdade do próprio trabalho”.
Ensinar é uma bela expressão da nossa esperança para os jovens. O ensino reconhece a dignidade dos jovens como buscadores da verdade, quer se ensine ciência, literatura ou religião. Ele encarna a nossa esperança em relação ao futuro deles. Cada escola é um sacramento de esperança. Homs, na Síria, havia sido praticamente destruída. Encontramos uma pequena escola onde as crianças com deficiência estavam sendo ensinadas. Foi aqui que o jesuíta holandês Franz van de Lugt foi assassinado. Rezamos diante do seu túmulo, e depois, em uma sala, encontramos um velho jesuíta egípcio ainda lecionando. Ele estava lá porque essas crianças foram feitas para a verdade e porque elas são o nosso futuro desconhecido.
O verdadeiro ensino é uma rejeição do fundamentalismo cego que está consumindo o mundo. Em última análise, a única resposta ao fundamentalismo é encorajar as pessoas a pensar. Vincent McNabb, OP costumava dizer aos novatos: “Pensem; pensem em qualquer coisa, mas pensem, pelo amor de Deus”. Pensar, especialmente em meio à crise, expressa a nossa esperança de que, no fim, tudo fará sentido. Quando Oscar Romero visitou o local de um massacre cometido pelo Exército em El Salvador, ele se deparou com o corpo de um menino em uma vala: “Era apenas um menino, no fundo da vala, virado para cima. Dava para ver os buracos das balas, as contusões deixadas pelos disparos, o sangue seco. Seus olhos estavam abertos, como se estivessem perguntando o motivo da sua morte e não entendendo”.
O desespero é o colapso de toda esperança de sentido. “A esperança não é a convicção de que algo vai dar certo”, como afirmava Václav Havel, “mas a certeza de que algo faz sentido, independentemente do que aconteça”.