03 Mai 2023
"A ascensão do Corpo Glorioso refuta a teologia da cruz e do sofrimento. Coroa uma teologia do perdão e do abandono. Um filme todo feito a partir da sublime irrupção no mundo de um Deus que não existe. E esse eterno Deus inexistente paradoxalmente é o único meio de nos irmanarmos uns aos outros, unidos pelo seu infinito e misericordioso abandono".
O comentário é de Rodrigo Petronio, publicado em sua página pessoal do Facebook, 01-04-2023.
Escritor e filósofo, Rodrigo Petronio é professor titular da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP. Desenvolve pós-doutorado no Centro de Tecnologias da Inteligência e Design Digital – TIDD/PUC-SP sobre a obra de Alfred North Whitehead e as ontologias e cosmologias contemporâneas. É também doutor em Literatura Comparada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ.
Possui dois mestrados: em Ciência da Religião, pela PUC-SP, sobre o filósofo contemporâneo Peter Sloterdijk, e em Literatura Comparada, pela UERJ, sobre literatura e filosofia na Renascença. Entre suas publicações poéticas, destacamos História natural (Gargântua, 2000), Assinatura do sol (Gêmeos R, 2005) e Pedra de luz (A Girafa, 2005). Atualmente divide com Rodrigo Maltez Novaes a coordenação editorial das Obras Completas de Vilém Flusser pela Editora É.
Pelo IHU, Petronio publicou Mesoceno. A Era dos Meios e o Antropoceno, Cadernos IHU ideias número 339; Yuval Noah Harari: pensador das eras humanas, Cadernos IHU ideias número 329; e Desbravar o Futuro. A antropotecnologia e os horizontes da hominização a partir do pensamento de Peter Sloterdijk, Cadernos IHU ideias número 321.
A Baleia é um filme primoroso. E com ele Aronofsky chega a um novo patamar de sua obra. Pi explora os limites do conhecimento humano a partir da computação e da matemática. Cisne Negro adentra os meandros mentais da divisão intra-extra psíquica. Em Mãe, temos um aprofundamento dos jogos entre os signos e suas motivações, todo estruturado em chave metafísica e disseminação de signos teológicos.
A Baleia traz um enquadramento mais realista aos deslocamentos e subtextos, codificações e decodificações de signos, mitos, símbolos e alegorias que permeiam a obra de Aronofsky. E diferente dos filmes anteriores, temos aqui um tratamento mais circunscrito à dramaturgia, ao minimalismo, à teatralização.
O protagonista gay, padecendo de obesidade mórbida, encena em seus últimos dias a via-crucis de Cristo. O abandono irmana todas as personagens. A necessidade de perdão é o imperativo para vidas destruídas e interditadas. O trabalho de atores, o roteiro e a evolução cênica são impecáveis. O recurso ao melodrama, com a música ostensiva e sentimentalismo raiando o piegas: nada disso poderia faltar em uma obra como esta, pois a proposta é justamente comover e gerar empatia.
Os deslocamentos de Moby Dick aprofundam ainda mais as leituras possíveis. A Baleia é o protagonista, tentando ser assassinado por seus inimigos. Mas seus inimigos o ferem para ocultar suas membros amputados, seu medo, suas fraquezas, suas feridas que não cicatrizam.
Em uma chave mais alegórica, a Baleia é o Cristo monstruoso de que falam Zizek e Milbank. Um sentido do amor de Cristo que explode todas leis morais e a hipocrisia dos fariseus que cospem em sua cara. Nesse sentido, o fim apoteótico é esperado e (mesmo assim) sublime.
“O homem bom não tem forma”, diz o poeta Wallace Stevens ao se referir a Jesus. Ascendendo aos céus, o corpo disforme que não cabe mais no mundo é justamente o corpo glorioso do Deus que se fez carne e depois retornou a si, mas sem nos salvar.
“Ninguém pode salvar ninguém”. E: “Não existe ninguém que não se importe com os outros”. Essas duas frases complementares e paradoxais são as chaves do sentido profundo dessa obra. Somos todos abandonados. E criamos o subterfúgio da salvação para mascararmos nossos traumas e escondermos nossa incapacidade de amar e de perdoar.
A ascensão do Corpo Glorioso refuta a teologia da cruz e do sofrimento. Coroa uma teologia do perdão e do abandono. Um filme todo feito a partir da sublime irrupção no mundo de um Deus que não existe. E esse eterno Deus inexistente paradoxalmente é o único meio de nos irmanarmos uns aos outros, unidos pelo seu infinito e misericordioso abandono.
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A Baleia. “Somos todos abandonados”. Comentário de Rodrigo Petronio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU