“Esse mistério do rebaixamento de Cristo a ponto de cair no abismo do abandono por Deus nos é posto à disposição no aqui e agora da nossa existência, graças à Eucaristia, que atualiza o sacrifício pascal de Cristo”, diz a teóloga.
Especialmente na Semana Santa, momento em que, tradicionalmente, os católicos celebram a Paixão, o sofrimento, a morte e a ressurreição de Jesus Cristo, entre o Domingo de Ramos e o Domingo da Páscoa, “a escuta do grito de Jesus crucificado nos permite vivenciar a perturbadora descoberta de que, quando experimentamos de diversas maneiras o poder do mal e da morte, temos o direito de pensar que somos abandonados por Deus, de nos sentir entregues por Ele e de lhe perguntar por que, sem que isso viole a qualidade de nossa confiança e de nossa esperança Nele”, assinala Francine Bigaouette, teóloga canadense, nesta entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Autora da tese de doutorado intitulada Le cri de déréliction de Jésus en croix. Densité existentielle et salvifique [O grito de derrelição de Jesus na cruz. Densidade existencial e salvífica, tradução livre] (Editions du Cerf, 2004), na qual propõe uma reflexão sobre o grito de Jesus na cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”, Francine ressalta que, diante das nossas indagações em relação ao silêncio e abandono de Deus nos momentos de sofrimento, “ao mesmo tempo, porém, descobrimos que as situações existenciais de abandono que vivenciamos não podem mais ser interpretadas como a expressão da ausência de Deus, de sua indiferença, de seu recuo, de seu castigo. Aqui, sem negar a ambiguidade trágica da existência humana em certos momentos, Jesus nos chama para uma conversão radical do nosso juízo sobre Deus e nós mesmos”.
Na interpretação da teóloga, é justamente no instante da morte de Jesus na cruz que “é desvelada a face de um Deus que luta contra a hostilidade dos adversários do Filho, mostrando-lhes o que é feito de seu amor quando eles o rejeitam: não a vingança, mas a misericórdia. (...) Ele, Deus, vem para suscitar nesse lugar a resposta que o ser humano, entregue a si mesmo, é incapaz de lhe dar: a resposta da fé. No clamor de Jesus na cruz, o silêncio de Deus diante da morte de seu Filho se faz ouvir como a palavra-ápice pela qual Ele nos revela a profundeza inaudita de seu respeito e de seu amor por nós”.
Francine Bigaouette nasceu em 1961 na cidade de Quebec, no Canadá. Entrou para a ordem religiosa em 1985, na Congregação das Dominicanas Missionárias Adoradoras. Realizou seus estudos de teologia na Faculdade de Teologia e Ciências Religiosas da Universidade Laval, em Quebec. Sua tese de doutorado foi publicada sob o título Le cri de déréliction de Jésus en croix. Densité existentielle et salvifique (Editions du Cerf, 2004).
*Entrevista originalmente publicada em 17 de abril de 2014.
IHU On-Line - Qual é o significado do grito de Jesus na cruz diante da morte: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste”?
Francine Bigaouette - Esta questão é vasta, muito vasta. É o tema da minha tese, que foi publicada com o título Le cri de déréliction de Jésus en croix. Densité existentielle et salvifique [O grito de derrelição de Jesus na cruz. Densidade existencial e salvífica, tradução livre]. No subtítulo, decidi empregar o termo “densidade”, em vez de “significado”, pois não se pode esgotar o significado desse grito.
Precisaríamos estar na consciência e no coração de Cristo morto na cruz e ressuscitado em Deus para realmente entender essa palavra-grito. À luz dos diferentes elementos do texto das Sagradas Escrituras, em que se situa essa palavra-grito, assim como à luz da identidade filial de Cristo, enviado pelo Pai para instaurar seu Reino, podemos, contudo, ouvir essa palavra-grito e tentar ter acesso à sua compreensão. Nos limites desta entrevista, vou me ater a alguns elementos que me parecem fundamentais para tentar responder à pergunta: “o que significa o grito de derrelição de Jesus na cruz?”.
Primeiramente, é importante considerar o conceito bíblico de abandono por Deus. Quando Israel ou um fiel se diz ou é dito abandonado por Deus, trata-se concretamente, para eles, da dolorosa e angustiante experiência de uma ausência de socorro, da intervenção libertadora de Deus numa situação de sofrimento ou opressão. Esta situação é geralmente percebida como a resposta divina ao abandono primordial, inicial, de Deus pelo ser humano, pois Deus, de acordo com a promessa feita aos padres e à Aliança que estabeleceu com Israel, não abandona o seu povo ou seu fiel se estes permanecerem ligados a Ele e a sua Lei.
Este binômio “abandono de Deus pelo ser humano—abandono do ser humano por Deus”, sendo o primeiro termo a causa do segundo, é, no entanto, vigorosamente questionado por Jó. Este homem, despojado de todos os seus bens, vive a experiência de um abandono por Deus, mesmo sabendo ser justo e fiel ao seu Deus. Bem mais do que isso, ele clama seu desatino e sua revolta diante do espetáculo insuportável da prosperidade de muitos ímpios e do destino desafortunado de muitos justos. Embora Jó não obtenha resposta de Deus para suas perguntas, este lhe dá razão perante os amigos, que defendem a tese tradicional da relação de causa e efeito entre pecado e infortúnio. No quarto Cântico do Servo em Isaías, assim como no capítulo 7 do segundo Livro dos Macabeus, defrontamos-nos com os justos que sofrem, não por causa de seus pecados, mas pelos pecados do povo. Por fim, no Livro da Sabedoria, é claramente declarado que, ao contrário do que parece, o justo que experimenta a perseguição e a morte não foi abandonado por Deus. Sua experiência é uma provação que o conduzirá a uma vida de intimidade com Deus. O fato de ser abandonado por Deus não significa, pois, necessariamente, que Deus não esteja mais presente para o ser humano, que não esteja mais com ele.
Para entendermos o sentido do grito de derrelição de Jesus na cruz, além de considerar os diversos sentidos do conceito bíblico de abandono por Deus, precisamos também tentar responder à seguinte pergunta: no grito de Jesus “meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”, devemos ouvir apenas o versículo 2 do Salmo 22, ou o Salmo inteiro evocado pela menção de seu primeiro versículo? Conforme optamos por uma possibilidade ou por outra, parece-me que não podemos evitar uma interpretação diferente do abandono por Deus vivenciado por Jesus. De fato, se a citação indica que Jesus recitou todo o Salmo, seu grito significa então que ele se sentiu momentaneamente abandonado por Deus, mas que morreu com os mesmos sentimentos do justo do Salmo 22, louvando a Deus por sua salvação, numa confiança tranquila livre de qualquer angústia. Ao contrário, se a palavra-grito posta nos lábios de Jesus consiste apenas no versículo 2 desse Salmo, então Jesus é tido como aquele que morre vivenciando a experiência do abandono divino.
Alguns pesquisadores, baseando-se em dados veterotestamentários e no uso da Mishnah [1], pensaram que o grito de Jesus em Mc 15:34 eram as primeiras palavras do Salmo, servindo de título para referir-se ao Salmo inteiro. Tal hipótese apresenta, contudo, como assinala a exegeta Lorraine Caza, duas dificuldades que requerem certa reserva. Por um lado, não se dispõe de bases de apoio provenientes da literatura do século primeiro da nossa era e, por outro lado, não é o início, mas o versículo 6 do Salmo 31 que o evangelho de Lucas põe nos lábios de Jesus em agonia.
Observou-se também que, para os antigos leitores judeus ou cristãos, um texto citado evocava o texto inteiro. E como o último terço do Salmo expressa a confiança final do desventurado, pode-se então pensar que Jesus tenha dado a entender que, depois do desamparo, viria a salvação. Porém, de acordo com o exegeta Xavier Léon-Dufour [2], isso não prova que a citação desse Salmo em Mc 15, 34 implique, enquanto tal, o teor de toda a oração. De fato, diferentemente de outra passagem em seu Evangelho (Mc 14, 27), Marcos não diz que Jesus cita o Salmo. Além disso, a expressão em aramaico “Élôï, Élôï, lema sabachthani” não favorece uma citação literal do texto sagrado escrito em hebraico.
Soma-se a esses argumentos outro que me parece determinante: aquele proposto por Aletti [3]. Este ressalta que as súplicas sálmicas são geralmente construídas conforme o seguinte esquema: a descrição da situação difícil do orante ou das razões do apelo dirigido a Deus segue a esse apelo. É justamente o que acontece no Salmo 22. No relato da cruz, em Marcos (mas também em Mateus), é a situação descrita pelo narrador que precede o grito de Jesus endereçado a Deus.
Essa retomada, na narrativa da cruz, do esquema invertido do Salmo 22 leva Aletti a interpretar o grito de Jesus em função da sequência que precede e na qual estão enumeradas as razões que conduzem Jesus a se dirigir ao seu Deus. A organização invertida dos elementos do Salmo 22 na narrativa da crucificação parece excluir o fato de que seu grito seja um simples intitulado, sugerindo a recitação inteira do Salmo que termina com o louvor. Ao contrário do orante do Salmo 22, Jesus, que não foi libertado por Deus da experiência da morte, entrega sua alma levando no coração a seguinte pergunta: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”.
Abandonado por Deus ao poder mortífero daqueles que o condenaram, Jesus expressa também, com o seu “por quê?”, que, no cerne dessa experiência da não intervenção de Deus para libertá-lo, ele se sente no abandono de Deus, deixado por Ele, sem compreender por quê.
Isso não significa que Jesus tenha deixado de depositar toda a sua confiança e esperança em Deus.
Como o orante do Salmo 22, Jesus se dirige a Deus como o único capaz de responder ao seu tormento, apesar do aparente abandono. Em seu coração, ele continua esperando, contra qualquer esperança: Deus permanecerá seu Deus, até mesmo na morte!
Diferentemente do justo do Salmo 22, Jesus não suplica ao Pai que interceda em seu favor. Ele já o fizera no Jardim de Getsêmani: “Abba! (Pai)! Tudo é possível para ti: afasta de mim este cálice”. Mas numa total adesão à vontade do Pai: “Contudo, não seja o que eu quero, e sim o que tu queres” (Mc 14:36). O cálice não foi afastado, e Jesus consentiu em beber, entregando-se ao misterioso desígnio de Deus. Na cruz, então, como poderia ele suplicar a Deus que o libertasse, que encerrasse o silêncio? Sua súplica não é mais um pedido urgente para que tal destino lhe fosse poupado. É, de certa maneira, o ato pelo qual ele expressa a tensão de todo o seu ser na direção Daquele que é o Amor de sua vida, Deus desejado à noite.
Essa tensão de todo o ser de Jesus em direção a Deus adquire um caráter único. Por certo, como seus irmãos e irmãs israelitas, Jesus está visceralmente ligado ao Deus da Aliança. Mas, para ele, essa comunhão com o Deus vivo é de ordem única: ele é o Filho amado (cf. Mc 1:11; 9:7), que pode dizer em seu coração: “Abba! Pai!” (cf. Mc 14:36); é aquele cujo ser e cuja vida identificam-se com o anúncio do Reino de Deus por vir. Nessa perspectiva, ao mesmo tempo em que é solidário com todos os pobres e perseguidos que enviaram a Deus suas súplicas confiantes, o sofrimento vivido por Jesus crucificado em sua relação com Deus se revela muito peculiar: é o sofrimento do Filho.
IHU On-Line - Como Deus se revela no grito de abandono do Filho? Como, a partir do clamor de Jesus na Cruz, podemos ouvir o Deus que está em silêncio e, ainda, qual o significado do silêncio de Deus diante da morte do Filho?
Francine Bigaouette - Na cruz, Jesus foi submetido a uma experiência de obscurecimento da face do Pai, pois o Pai, segundo seu misterioso desígnio, deixou o pecado dos humanos se abater com todo o peso sobre seu Filho, mergulhando-o assim no sofrimento de uma aparente separação definitiva do Pai. No entanto, Jesus não sucumbiu à tentação de pensar que Deus é como parece ser nessa experiência: um Deus que o rejeita, o amaldiçoa, o priva de sua presença e de seu amor; um Deus ausente diante de seu drama. Muito longe de cair nessa tentação, Jesus superou a provação, consentindo em manter, sob o olhar do Pai, a atitude própria do Filho que reconhece e confessa, como demonstra seu grito, que essa situação não lhe confere o direito de se fiar unicamente em suas visões humanas para dizer o que cabe a ele e ao Reino. A soberania do amor pelo Pai pode parecer ter se tornado uma pura quimera sob o efeito obscuro de sua rejeição pelos humanos, mas isso não significa que o seja efetivamente. O amor pelo Pai, que o faz subsistir como Filho o torna impermeável a qualquer declínio de sua confiança e de sua esperança na onipotência desse amor.
Revelação de sua identidade filial, a morte de Jesus, no abandono por Deus, parece também constituir uma teofania. Em sua narrativa, Marcos associa estreitamente o acontecimento da morte de Jesus com o rasgo da cortina do santuário: “Então Jesus lançou um forte grito e expirou. Nesse momento, a cortina do santuário se rasgou de alto a baixo, em duas partes” (15, 37-38). O mesmo Deus cuja face não podemos ver sem morrermos rasgou a cortina e mostrou sua face no ato-ápice em que Jesus, entregando-se ao Pai até a morte, manifestava o que significa para ele ser o Filho. O abandono [entrega] de Jesus a Deus, na própria experiência de seu abandono por Deus, revela-se, então, enquanto última atualização de sua identidade filial, como a manifestação suprema de Deus Pai que dá seu Filho à morte, e à morte na cruz. É então desvelada a face de um Deus que luta contra a hostilidade dos adversários do Filho, mostrando-lhes o que é feito de seu amor quando eles o rejeitam: não a vingança, mas a misericórdia. Em Jesus na cruz como amaldiçoado de Deus, em Jesus em sofrimento por sentir-se definitivamente separado do Pai, Deus vem justo ao lugar em que se encontra aquele que não está ou deixou de estar em relação com Ele e que, por essa razão, deveria ser, segundo a Lei, abandonado e rejeitado por Ele. Deus vem para suscitar nesse lugar a resposta que o ser humano, entregue a si mesmo, é incapaz de lhe dar: a resposta da fé. No clamor de Jesus na cruz, o silêncio de Deus diante da morte de seu Filho se faz ouvir como a palavra-ápice pela qual Ele nos revela a profundeza inaudita de seu respeito e de seu amor por nós.
IHU On-Line - O que significa o conceito de entrega no cristianismo no sentido do Pai que entrega o Filho por nós?
Francine Bigaouette - Não poupando o Filho do destino que seus inimigos pretendiam lhe infligir, Deus foi ao extremo de suas exigências do dom de seu Amado. Quis assim nos conceder a vida nova de seu Reino, engajando-se plenamente na realidade histórica da nossa condição humana, e isso implicava que Ele assumisse, no próprio ato desse dom, a recusa daqueles aos quais Ele enviava seu Filho e as consequências cruéis dessa recusa. “Na ‘entrega’ dolorosa, escreve Bruno Forte, Deus se inclina totalmente para o homem: é o sinal ‘finito’ do despojamento ‘infinito’ de seu amor por nós” [4].
Considerado do ponto de vista de Jesus, esse engajamento do Pai sem arrependimento pode, no entanto, nos deixar um tanto perplexos. Sua ação em favor dos humanos não seria exercida em detrimento de seu Filho? E se assim o fosse, a entrega de Jesus por Deus não manteria certa cumplicidade com o ato de Judas, dos grandes sacerdotes e dos anciãos que rejeitaram Jesus na morte? Para responder a essa pergunta, parece-me importante assinalar, primeiramente, esse dado muito esclarecedor da narrativa evangélica: Jesus aparece aí como só podendo ser realmente entregue por Deus às mãos de seus adversários em virtude de seu discernimento do desígnio de Deus e de seu livre consentimento em seguir o caminho do sofrimento, da rejeição e da morte (cf. Mc 8, 31-35; 9, 30-31; 10, 32-34). Ante a incredulidade e a hostilidade que ele encontra da parte daqueles que ensinam e governam o povo, Jesus compreende que não pode, preocupado em salvar sua vida, furtar-se à sua missão, ou renunciando a ela ou adaptando-a às expectativas e às visões de seus ouvintes. Nele, a vontade salvífica do Pai encontra uma consciência e uma liberdade humanas que lhe são perfeitamente concedidas a partir do interior, pois são as do Filho, cujo Eu é Acolhida do Pai e Entrega de si a esse Pai.
Quando afirmamos que Deus foi ao extremo das exigências do dom sem arrependimento por seu Filho, não lhe poupando o destino que seus adversários queriam lhe infligir, isso não significa de modo algum que esse dom fosse realizado em detrimento de seu Amado. Para o Pai, entregar Jesus nas mãos de seus inimigos é certamente entregá-lo ao poder deles até a morte, e a morte na cruz, mas lhe comunicando, nesse mesmo ato, o amor que o faz subsistir no dom de si mesmo. Da mesma maneira, para Jesus, manter-se fiel à missão recebida do Pai não constitui uma obrigação imposta do exterior, mas uma exigência que brota de seu coração, uma vez que sua missão é interior ao seu próprio ser, ao seu Eu de Filho que vive do próprio amor do Pai. Entregue pelo pai, Jesus só é realmente entregue ao se entregar ele mesmo sob o domínio do amor do Pai, que o faz subsistir no dom de si mesmo.
IHU On-Line - Como compreender o paradoxo do Deus que se rebaixa, se esvazia e se aniquila na condição humana, morrendo solitário na cruz?
Francine Bigaouette - A chave da compreensão desse paradoxo nos é dada por Deus mesmo, ao revelar, pelo seu rebaixamento, quem Ele é. Ele é Amor (1 Jn 4,8), Amor absoluto. O amor Nele não é um simples atributo; é sua própria essência, sua vida divina, comunhão do Pai com o Filho no Espírito. Sendo o Amor absoluto, Deus tem o poder de assumir o que é totalmente distinto Dele, tornando-se um de nós, além do poder de assumir o que lhe é radicalmente contrário: o pecado, assumindo até o fim as consequências de sua encarnação num mundo que lhe é hostil. Sua transcendência absoluta, o caráter insondável de seu mistério manifestam-se, mais além de qualquer concepção e imaginação humanas, em sua capacidade de tornar-se pequeno, pobre, de pôr-se ao nosso alcance e de manifestar-se em todo o seu esplendor no mesmo momento em que a morte parece tê-lo vencido definitivamente.
IHU On-Line - Em que medida o grito de Jesus na cruz é também o nosso diante da condição humana? Como esse grito explica a relação humana com Deus?
Francine Bigaouette - A escuta do grito de Jesus crucificado nos permite vivenciar a perturbadora descoberta de que, quando experimentamos de diversas maneiras o poder do mal e da morte, temos o direito de pensar que somos abandonados por Deus, de nos sentir entregues por Ele e de lhe perguntar por que, sem que isso viole a qualidade de nossa confiança e de nossa esperança Nele. Ao mesmo tempo, porém, descobrimos que as situações existenciais de abandono que vivenciamos não podem mais ser interpretadas como a expressão da ausência de Deus, de sua indiferença, de seu recuo, de seu castigo. Aqui, sem negar a ambiguidade trágica da existência humana em certos momentos, Jesus nos chama para uma conversão radical do nosso juízo sobre Deus e nós mesmos.
Como diz muito bem o teólogo Ghislain Lafont, “a verdade do homem está numa obediência a Deus cujo término não avistamos” [5], mais do que num esforço de autodivinização. Ao consentir em perseverar na adoração filial, no momento em que sofria por se sentir definitivamente separado de Deus e não percebia mais o sentido e a saída dessa experiência, Jesus alcançou em si mesmo essa verdade do ser humano. Foi também dessa maneira que ele deixou transparecer plenamente em sua humanidade a face do Pai.
Representante vivo de Deus na terra, Jesus exerceu seu papel chegando ao extremo dessa atividade suprema de sua paixão e de sua morte, como total entrega de si mesmo, na impotência radical, à onipotente atividade do amor criador do Pai. Representante de Deus na terra, ele o foi enquanto Filho que assume até o fim, na obediência, nossa condição humana, que éramos incapazes de viver como filhos e filhas amados.
Esse juízo positivo sobre Deus realizado por Jesus na provação de sua paixão supõe uma postura interior de ordem ontológica. Esta consiste, ainda de acordo com as palavras de Ghislain Lafont, no reconhecimento de que “Deus, mesmo em seu mistério, é o fundamento e a medida de todas as coisas”. Ora, para Jesus, Deus em seu mistério não é conhecido como desconhecido, e sim como seu próprio Pai, como seu Abba, que o gera no dom de si e que, no mesmo elã desse engendramento, volta-se para aqueles e aquelas a quem deu existência, diante Dele, para lhes participar o eterno nascimento desse Filho.
Esse amor absolutamente gratuito, benevolente e recriador que o Pai tem por todo ser humano em seu Filho Jesus constitui a própria essência de sua soberania divina no mundo. Foi em virtude desse amor que o Pai não poupou seu filho, mas o entregou por todos nós (cf. Rm 8:32), inspirando-lhe a entrega por nós até a morte, e a morte na cruz.
Todavia, mesmo que, para Jesus, conhecer Deus em seu mistério transcendente não signifique conhecê-lo como desconhecido, e sim como seu próprio Pai, a proximidade complacente desse Pai no Calvário, sem que diminuísse ou desaparecesse, é sentida por Jesus como uma aparente e dolorosa separação que o leva à experiência, até então insuspeita, da radical transcendência. Porque essa proximidade não é a de um Pai cuja preocupação com o Filho amado, e, nele, com seus filhos e filhas, os dispensaria de assumir suas responsabilidades neste mundo e a realidade integral, por mais rude que esta seja.
Trata-se antes de uma proximidade que comunica ao ser amado a capacidade do Pai de doar-se sem medida e de transformar os rigores da realidade finita e pecaminosa do mundo em tantas formas de encarnar o amor. O amor gratuito e benevolente do Pai é certamente um amor que salva, recria, dá a vida, mas na medida em que comunica seus próprios costumes àquele que se abre para esse amor e o acolhe. Daí a experiência inexorável a que somos chamados, cedo ou tarde: somente aquele que consente em perder-se se salva (cf. Mc 8:34-35), pois a salvação que Deus nos oferece nada mais é que a participação naquilo que constitui a própria essência de sua vida divina: o dom de si mesmo no amor. Soberanamente preocupado com o ser humano, Deus faz um apelo a este para que siga os passos de seu Filho, que caminha para a cruz por amor.
Assim, mesmo se Jesus, na cruz, continua sendo aquele que conhece Deus como seu Pai, como seu Abba que o gera no amor, esse mistério afirma-se, nesse momento, como nunca na transcendência absoluta, que foge a qualquer representação e crucifica Jesus na experiência vivida. Submetido por nós a tal prova, Jesus deve consentir em morrer em sua experiência anterior do amor do Pai para manter sua comunhão com Ele, bem mais para vivenciar de outra maneira, desnorteante por certo, a paternidade que o gera no dom de si mesmo, um dom de si mesmo cujo caráter excessivo ele não conseguira até então dimensionar em sua própria carne. Nessa perspectiva, a privação do sentimento da presença do Pai pode ser paradoxalmente considerada uma autêntica experiência de sua presença.
A sabedoria que foge a qualquer entendimento humano
A renúncia a que Jesus consente nada tem a ver, portanto, com a adesão a uma sabedoria divina cuja transcendência seria a do arbitrário que ignora o bem do ser humano, pois essa renúncia se dá justamente no seio de uma experiência da sabedoria de Deus como Amor que leva ao dom de si mesmo. Dizer isso, contudo, não diminui em nada o caráter absolutamente transcendente dessa sabedoria que foge a qualquer entendimento humano, uma vez que um amor dessa ordem implica, para Jesus, a experiência da perda de si mesmo na certeza não sentida de que os braços do Pai estão estendidos, abertos para acolhê-lo; bem mais que isso, eles o trazem para Ele, inspirando-lhe a entrega a Ele sem reservas.
Diante da verdadeira transcendência de Deus, aquela do seu amor, o coração humano pode então iniciar um processo de conversão de seu juízo sobre Deus e sobre si mesmo. Habitado pela imagem de um Deus do qual deve se proteger de certa maneira, eis agora o ser humano habilitado, por Jesus e nele, a invocar Deus pelo seu verdadeiro Nome: Abba, Pai! Ele é agora capaz de passar de uma adoração motivada pelo desejo de obter o favor de Deus a uma adoração que é entrega amorosa de si mesmo Àquele que foi o primeiro a se mostrar totalmente a nosso favor, dando-nos seu Filho (cf. Rm 8:31-32).
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Francine Bigaouette - Eu gostaria de terminar chamando a atenção para o fato de que esse mistério do rebaixamento de Cristo a ponto de cair no abismo do abandono por Deus nos é posto à disposição no aqui e agora da nossa existência, graças à Eucaristia, que atualiza o sacrifício pascal de Cristo. Por certo, Cristo não morre mais; por sua ressurreição, ele venceu definitivamente a morte; a morte foi deixada para trás. No entanto, sua morte — do modo como a vivenciou — permanece para sempre marcada nele, enquanto entrega radical de si mesmo a Deus por nós, enquanto ato de amor ao extremo (cf. Jn 13, 1). Em seu corpo ressuscitado, ele não traz as marcas dos pregos e da lança? Jesus está eternamente fixado nesse ato que o levou a se entregar ao Pai, nas profundezas de seu abandono, e foi assim vivificado, glorificado por Ele, na potência do Espírito.
É levado por esse ato que ele não cessa de doar seu corpo e seu sangue à sua Igreja, cada vez que esta se reúne para celebrar sua memória, do modo como o recebeu das mãos de seu Mestre e Senhor, às vésperas de sua paixão. É este mesmo ato que se torna presente, pela Eucaristia, no aqui e agora de nossa existência histórica. Nesse ato, Cristo cativa todos nós, cativa e une em seu sacrifício todos os sofrimentos pelos quais chora nossa humanidade. Ele os purifica e transforma para que se tornem, no ritmo de nossas trajetórias pessoais e coletivas, um meio de nos assemelhar misteriosamente a ele em sua oblação pascal. A Eucaristia é, pois, o momento por excelência não só da oferta, mas também da intercessão por todos aqueles e aquelas que são esmagados pelo sofrimento e que, seguidamente, não conseguem perceber o sentido e o valor disso.
[1] A este respeito, cf. Lorraine Caza. Mon Dieu, pourquoi m’as-tu abandonné? Montréal, Bellarmin, collection "Recherches – Nouvelle Série", 24, 1989, p. 419.
[2] Cf."Le dernier cri de Jésus", dans Études, 348 (1978), p. 672.
[3] Cf. J.- N. Aletti. "Mort de Jésus et théorie du récit". Dans Recherches de science religieuse, 73 (1985), p. 150-151.
[4] Bruno Forte. Jésus de Nazareth: histoire de Dieu, Dieu de l'histoire. Parie, Éd. du Cerf, collection “Cogitatio Fidei”, 122, 1984, p. 254.
[5] Dieu, le temps et l’être. Parie, Éd. du Cerf, collection “Cogitatio Fidei”, 139, 1986, p. 214.