Por: João Vitor Santos e Patricia Fachin | Tradução: Ramiro Mincato | 29 Março 2018
Quando a humanidade, numa perspectiva histórica, ingressa no chamado Renascimento Moderno, os conceitos passam a ser realinhados. Deixa-se de tomar verdades teológicas como definitivas e tudo passa a ser suscetível à experimentação. Afinal, começa-se a desenvolver um pensamento cientificista em que só é possível se crer naquilo que é testável, experimentável pelo humano. “É a nova astronomia, juntamente com a cosmologia e a astrofísica, que nos obrigam a repensar – em vista de uma mudança – nossas coordenadas religiosas, a partir do conceito de Deus, do significado do tempo, do após morte e, por isso, da ressurreição”, acrescenta o teólogo italiano Ferdinando Sudati. Mas, nesse sentido, como pensar a ressurreição do Cristo? Em que medida a busca por dados históricos inebria a perspectiva mítica da fé? “No início do século XX, a Sagrada Congregação do Santo Ofício obrigava os católicos a acreditar que os onze primeiros capítulos do Gênesis se referiam a fatos históricos. Com Pio XII, em meados do século XX, o evolucionismo era visto com desconfiança e o poligenismo completamente banido”, recorda Sudati.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o italiano parte da reflexão de outros dois teólogos, John Shelby Spong e Roger Lenaers, para refletir sobre os desafios de se repensar a ressurreição no nosso tempo. “Certamente, não devemos cultivar uma ideia ingênua da modernidade, que não é asséptica, e nem mesmo boa, inocente e compreensiva por tendência espontânea. A modernidade é a mudança epocal em que nos encontramos hoje, e da qual devemos nos tornar conscientes”, destaca. Para ele, talvez, não se trata de tomar apenas uma posição de modo a negar a outra. “À luz do novo conhecimento, a vida mostra-se muito mais conectada e interconectada do que pensávamos, tanto a humana no planeta Terra, quanto a do inteiro cosmo. As fronteiras entre matéria e energia tornaram-se confusas, existe – ou haverá – lugar para uma nova visão do ‘espírito’”, sugere Sudati.
Ferdinando Sudati é padre italiano, teólogo, presbítero diocesano na paróquia S. Giorgio Martire, que pertence à Diocese de Lodi, na Lombardia, Itália. Ferndinando Sudati é o editor e responsável pela introdução da obra La nascita di Gesù tra miti e ipotesi, publicada na Itália pela Editora Massari, 2018, de autoria de John Shelby Spong, teólogo e bispo emérito da Igreja Episcopal. Ele igualmente escreve o prefácio do livro Gesù di Nazaret. Uomo come noi? (Jesus de Nazaré. Homem como nós?), publicado pela Gabrielli Editori, 2018, cujo autor é Roger Lenaers, padre jesuíta, belga radicado em Insbruck, na Áustria.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Você escreveu o prefácio dos livros La nascita di Gesù tra miti e ipotesi [1], de John Shelby Spong [2], e Gesù di Nazaret: Uomo come noi? [3], de Roger Lenaers [4]. Que abordagens cristológicas eles propõem apresentar?
Ferdinando Sudati – Há uma diferença na visão de Jesus de Spong e na de Lenaers: elas não coincidem, mas ao mesmo tempo não estão longe uma da outra. Poderíamos dizer que Lenaers, no livro em questão, não se decide, como Spong, a reinterpretar radicalmente a divindade de Jesus. O pensamento de Spong está claramente definido na segunda das suas "Doze teses", em que reassume as sugestões para uma nova reforma: "Como Deus não pode ser concebido em termos teístas, não faz sentido tentar entender Jesus como ‘a encarnação de uma divindade teísta’. Os conceitos tradicionais da cristologia, portanto, acabaram falindo".
Lenaers pretende salvar a personalidade transcendente de Jesus, afirmando que "a confissão de que Jesus é ‘Deus de Deus, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro’ ... é agora insustentável". No final do seu livro, define-se por uma superioridade de Jesus em relação a nós, e não apenas pela sua exemplaridade. Pouco antes do lançamento do livro, em uma entrevista a Claudia Fanti, publicada no MicroMega [5], é definitivamente mais explícito: "fui criticado por simplificar, porque não falo de Jesus como ‘Deus’, porque mantenho silêncio sobre esse tema. Mas se o cristianismo é impensável sem a figura de Jesus, certamente o é sem sua divinização, como se evidencia no período que vai dos anos 40 a 100 do primeiro século. E quando Jesus foi finalmente deificado, complicações sem fim apareceram, com novos Concílios e condenações. Por mais de 50 anos depois da sua morte, pois, os fiéis o veneraram como plenamente cheio Deus, como expressão da proximidade de Deus, como sublime revelação de Deus, mas não como Deus. Somos chamados a fazer a mesma coisa. Ou será que pensamos que ao defini-lo ‘Deus’ estaríamos mais próximos dele, que seriamos melhores cristãos? "(p. 147).
Obviamente, isso é muito pouco para a ortodoxia tradicional, e em algum lugar o acusam de possuir uma cristologia insuficiente, enquanto os mais benevolentes estão dispostos a admitir que ele não está fora da doutrina da fé. Deve-se acrescentar que Lenaers ainda não recebeu nenhuma admoestação oficial ou censura, nem das Cúrias, nem de sua Congregação, os jesuítas.
Gostaria de deixar claro, a tese cristológica de Spong é uma consequência direta da primeira das suas teses: "O teísmo, como modo de definir Deus, está morto. Não podemos mais compreender Deus, de maneira crível, como um ser de poder sobrenatural, que vive no mais alto dos céus e pronto para intervir periodicamente na história humana, para que se cumpra sua divina vontade. Por isso, hoje, a maior parte das coisas que se diz sobre Deus não faz sentido. É preciso uma nova maneira de conceituar Deus e de falar sobre isso".
Um Jesus, Deus teísta, reproposto nos termos mencionados por Spong, que são os usados para se falar de Deus nas Igrejas cristãs até hoje, deixará as mulheres e os homens de nosso tempo cada vez mais indiferentes. Se tivermos consciência que o Deus teísta terminou, será espontâneo renunciar a esse conceito de divindade, aplicado a Jesus no quarto e quinto séculos da era cristã. A quem ainda interessa esse conceito? Jesus continuaria a fazer parte do Deus tapa-buracos, há algum tempo já, insustentável, mas do qual não conseguimos abrir mão. Poderíamos recuperar o conceito de "divindade" de Jesus, se quisermos manter esta palavra como boa, sobre o pano de fundo do panenteísmo [6], interpretado de forma moderna, mas certamente não seria mais aquela de antes, estabelecida em Niceia [7] e Calcedônia [8], e nem mesmo aquela dos documentos do Vaticano, como na Declaração Dominus Iesus (2000) [9] e, ainda mais perto de nós, da carta aos bispos Placuit Deo (2018) [10].
IHU On-Line – Qual é a contribuição fundamental dessas duas obras para compreender, acima de tudo, a ressurreição?
Ferdinando Sudati – O trabalho de Lenaers, apesar da brevidade que o distingue, dedica um capítulo, o sexto, ao tema da ressurreição, e dois parágrafos no capítulo seguinte, enquanto na obra de Spong, cujo objeto é o nascimento de Jesus, há apenas indícios fugazes. Spong dedicou um livro inteiro à ressurreição, em 1994: Resurrection: Myth or Reality? A Bishop’s Search of the Origin’s of Christianity [11]. Há também a versão em espanhol, embora esgotada. Nessa obra, analisa o tema, além disso, ele volta ao tema em capítulos inteiros, ou pelo menos em páginas, em quase todas as suas obras. Certamente podemos dizer que os evangelhos da infância e aqueles da ressurreição estão bem próximos como gênero literário, ambos fortemente marcados pela presença de elementos simbólicos, parabólicos e mitológicos: o que Spong diz a respeito dos primeiros é aplicável, metodologicamente, também aos segundos.
A palavra mito, aqui, não tem conotação pejorativa, mas apenas indica que, quando se trata de mitos, não estamos diante de acontecimentos reais ou históricos, mas de uma elaboração imaginativa, nascida nos tempos antigos, em culturas muito distantes da nossa, como tentativa de explicar os grandes mistérios do mundo e da vida humana. Os mitos são para nós um convite - e até mesmo um desafio - a descobrir o possível significado profundo existente por trás deles.
É decisivo, a propósito de Jesus, o que Lenaers escreve no início de seu livro: "Hoje, em particular, é essencial libertar Jesus do casulo mitológico em que a Igreja o colocou amorosamente no passado. E por que hoje? Porque até o advento da modernidade não havia a menor necessidade de fazê-lo. Todo pensamento pré-moderno era impregnado de ideias mitológicas. A figura de Jesus só podia beneficiar-se, com posição de relevo, em um contexto como aquele. [...] Mas, no quadro de uma cultura moderna, a mensagem sobre Jesus e o significado de libertação e renovação que têm para a humanidade, não encontrariam mais nenhuma aderência, se expressos de forma pré-moderna. A mensagem tornou-se agora incompreensível, e a principal razão é porque a modernidade deixou definitivamente para trás o pensamento mitológico" (p. 22-23). O que Lenaers escreveu aplica-se, em particular, aos relatos evangélicos da infância de Jesus e aos da ressurreição.
Para Lenaers, o túmulo vazio, a história dos dois discípulos de Emaús [12] e das aparições do ressuscitado geralmente pertencem à linguagem simbólico-mitológica, que respondia ao seu propósito, mas agora é necessária uma reinterpretação que consinta novamente colher seu significado: "Que o túmulo, no terceiro dia, tenha sido encontrado vazio, significa que os infernos não puderam parar Jesus, que provou ser mais forte do que a morte e do que o túmulo. Ele está vivo, apesar da morte" (p. 122).
IHU On-Line – Como entender a ressurreição a partir das narrativas do Evangelho? Qual é o significado do túmulo vazio e o que significa dizer que Jesus ressuscitou?
Ferdinando Sudati – No Novo Testamento, temos cinco testemunhos ou narrativas em favor da ressurreição: a de São Paulo e as dos quatro Evangelhos. Se acrescentarmos o capítulo inicial dos Atos dos Apóstolos, teremos seis. Nenhum dos autores, exceto Paulo, mas de uma forma menos verossímil (por razões que mencionarei mais adiante), foi testemunha ocular das aparições, embora isso não anule o valor dos seus relatos.
O primeiro evangelho a ser escrito, o de Marcos, não sugeriu aparições ou visões do ressuscitado. Estas se tornaram parte de seu evangelho somente mais tarde, no que é considerado pelos estudiosos como um acréscimo editorial tardio. De fato, pode-se notar que os versos 9 a 20, do último capítulo de Marcos, são uma coleção de frases tiradas de Jo, Mt, Lc e Atos. Estes são dados objetivos para serem mantidos na mente, se quisermos fazer uma leitura dos evangelhos respeitosa dos métodos de pesquisa mais comprovados do ponto de vista histórico-crítico: é tarefa dos especialistas, em primeiro lugar, mas suas aquisições devem, também, passar para a base dos crentes, para todos nós.
Falando da ressurreição e, imediatamente antes, da sepultura de Jesus, o primeiro dado que se destaca são as evidentes divergências, as incongruências e até as contradições presentes nos relatos evangélicos. Além das poucas coisas em que concordam, ou seja, que o evento da Páscoa ocorreu no primeiro dia da semana, e que foi uma experiência que lhes deu uma nova compreensão de Jesus, tudo o mais é descrito com absoluta liberdade de adições e omissões.
Paulo, por exemplo, não relata sobre a sepultura ou a presença de José de Arimateia, personagem que será introduzido por Marcos. Se Marcos o chama de "um membro influente do sinédrio", Mateus descreve-o como "rico", Lucas, como "homem bom e justo" e João, como "um discípulo de Jesus, embora oculto", e o põe ao lado de Nicodemos, nas operações de sepultamento.
Paulo não tem ninguém para visitar o túmulo e encontrá-lo vazio, enquanto os evangelistas têm um pelotão de mulheres como visitantes, exceto que suas identidades nunca coincidem. O único nome em comum é o de Maria Madalena.
Marcos e Lucas não dizem que as mulheres viram o ressuscitado na manhã da Páscoa, enquanto Mateus e João afirmam isso, embora de maneira diferente. Sobre os mensageiros da ressurreição, sobre o lugar, sobre os tempos e sobre as circunstâncias em que "eles se encontravam" ou "viram" o ressuscitado, não reina concordância. Ela varia de Jerusalém à Galileia, de um dia a quarenta dias. Apenas Lucas tem Jesus que, em uma aparição, pede comida (como prova de sua realidade "física"?). E somente ele, mas em Atos, se dermos por certo que ele é o autor, fala de quarenta dias como um período de visibilidade do ressuscitado.
Isso é suficiente para demonstrar a impossibilidade de harmonizar essas histórias. O túmulo vazio e as aparições, como Lenaers também enfatiza, pertencem à interpretação mitológica, não são crônicas, mas criações que fazem uso de certos códigos literários, de acordo com a cultura da época, para transmitir uma mensagem. Eles possuem um alto valor simbólico que precisa, no entanto, ser liberado das superestruturas e explicitado. Cada época, se não cada geração, deve fazê-lo a partir de seu próprio desenvolvimento cultural, e de suas próprias necessidades espirituais, pessoais e comunitárias.
IHU On-Line – Em seu novo livro, Gesù di Nazaret: Uomo come noi?, o padre Roger Lenaers diz que a ressurreição se tornou inacessível para o homem e a mulher modernos. Você concorda com esse diagnóstico? Por quê?
Ferdinando Sudati – Eu concordo. Na entrevista ao MicroMega, já mencionada, ele afirma que "para o homem e a mulher modernos, a expressão ‘ressuscitado’ não tem mais sentido. Por isso, é melhor abandonar esta fórmula, porque o corpo de Jesus não voltou à vida e porque esta fórmula nada diz sobre a intuição contida nela. Precisamos encontrar uma fórmula que a expresse melhor. A Bíblia propõe fórmulas como ‘subiu ao céu’, ‘sentado à direita do Pai’, ‘glorificado’. E todas as histórias das aparições de Jesus, depois da ‘ressurreição’ pertencem às ‘fórmulas’ do passado. Tais fórmulas, no entanto, querem expressar a experiência de um Jesus vivo e criativo. Negar sua historicidade não significa negar a intuição escondida neles "(p. 146).
IHU On-Line – O progresso e o desenvolvimento do pensamento científico nos impõem uma nova maneira de entender a ressurreição em nossos dias? Por quê?
Ferdinando Sudati – É a nova astronomia, juntamente com a cosmologia e a astrofísica, que nos obrigam a repensar – em vista de uma mudança – nossas coordenadas religiosas, a partir do conceito de Deus, do significado do tempo, do após morte e, por isso, da ressurreição. Para se ter uma ideia de como as novas descobertas astronômicas e cosmológicas nos forçam a mudar nossa perspectiva religiosa, considere-se que, mesmo no século XVII, para alguns teólogos do alto escalão (também bispos), a Terra tinha sido criada por Deus, há cerca de cinco mil anos. Hoje conhecemos essa data, foi pelo menos quatro bilhões e meio de anos atrás, em um universo cuja existência é calculada em mais de quatorze bilhões de anos, e que é composta de bilhões de galáxias, com bilhões de estrelas em cada uma.
No início do século XX, a Sagrada Congregação do Santo Ofício [13] obrigava os católicos a acreditar que os onze primeiros capítulos do Gênesis se referiam a fatos históricos. Com Pio XII [14], em meados do século XX, o evolucionismo era visto com desconfiança e o poligenismo completamente banido, já que Adão e Eva eram considerados sujeitos reais dos quais a humanidade veio. O próprio Deus foi concebido nas dimensões limitadas dessa cultura, por mais que abundassem superlativos a seu respeito: ele era de fato um grandíssimo Ser entre outros seres (cf. Anselmo d'Aosta).
À luz do novo conhecimento, a vida mostra-se muito mais conectada e interconectada do que pensávamos, tanto a humana no planeta Terra, quanto a do inteiro cosmo. As fronteiras entre matéria e energia tornaram-se confusas, existe – ou haverá – lugar para uma nova visão do "espírito". Ao alargar os horizontes para todo o universo, tornamo-nos menos antropocêntricos, menos "provinciais", até parecerem ridículas certas pretensões, como a de sermos os únicos seres com alma, ou com o direito inato de viver eternamente. Podemos aspirar a isso, é um desejo legítimo, mas sem a alegação de que Alguém deve necessariamente nos ressuscitar, e da maneira como imaginamos e queremos. Até mesmo no mal fomos pretensiosos, do momento em que chegamos há poucos segundos – na escala cósmica – à existência, mas estamos convencidos de termos tido o poder, com nosso "pecado", de degradar toda a humanidade, e até mesmo toda a criação.
Outro ponto chave da mitologia cristã aparece aqui: o pecado original e a salvação, através de uma vítima sacrificial, que, obviamente, não podia ser menos que Deus. Estou enfatizando os termos da questão – não é minha intenção caricaturá-los –, para entendermos melhor o problema e a urgência em lidar com ele com ferramentas culturais apropriadas, em vez de repetir antigos estereótipos.
IHU On-Line – No prefácio ao livro de Spong, você sugere que o conhecimento globalizado e partilhado, pela primeira vez na história do mundo, impõe uma mudança para um novo modelo epistemológico, o que nos obriga a repensar toda a herança do passado, também e sobretudo, a religiosa. Pode nos explicar essa ideia? O que isso significa à luz da história do cristianismo?
Ferdinando Sudati – Entremos, apenas para uma dica, no problema à origem de tudo: a crise da linguagem religiosa, da teológica em geral e daquela com a qual expressamos nossa fé. Na mudança epocal em que vivemos, é preciso acostumar-se a usar um novo paradigma ou esquema de interpretação da realidade, que provisoriamente e convencionalmente chamamos de paradigma moderno ou pós-moderno e, religiosamente falando, também pós-teístico. Caso contrário, aquela espécie de incomunicabilidade e de incompreensão que começamos a sentir, devido ao fato de usarmos linguagens diferentes, porque usamos paradigmas diferentes, é destinada a aumentar. É como estar em dois andares distintos de um edifício ou em duas épocas distantes no tempo e no espaço, e isso explica por que não conseguimos mais nos entender dentro das Igrejas e religiões, e ainda menos no mundo secularizado.
É possível colocar a experiência de Jesus Cristo em palavras que ainda fazem sentido hoje?, pergunta-se Spong (cf. tese 2). Podemos fazê-lo, desde que mudemos nosso registro expressivo e reformulemos nosso credo. A tarefa está ainda no início, embora muito atrasada, e é obstaculizada por aqueles que veem seu reconfortante mundo religioso implodir.
IHU On-Line – Como entender a ressurreição à luz da modernidade? Quais são as consequências e implicações teológicas de uma nova compreensão da ressurreição à luz da modernidade?
Ferdinando Sudati – O ponto nodal é perguntar-se onde nasce o conceito de ressurreição. Admite-se, geralmente, uma experiência particular na fundação do anúncio de que Jesus ressuscitou. A dificuldade consiste em esclarecer que tipo de experiência é esta. A partir dos textos do Novo Testamento, avançam-se pelo menos três hipóteses para justificar o surgimento da convicção da ressurreição de Jesus: a primeira faz recurso à forma milagrosa, enquanto as outras duas a excluem. Vamos vê-las brevemente:
1. A ressurreição é consequência de um encontro real com a pessoa de Jesus, que voltou à vida, com seu corpo físico, mas dotado de propriedades especiais; ou com um corpo semifísico quase completamente livre das leis da natureza; ou com um corpo espiritualizado, do qual se pode verificar a consistência, tocá-lo, que goza de propriedades milagrosas e que, em virtude de sinais contínuos, pode estar presente e visível aqui e ali, a indivíduos ou a grupos de pessoas, e superar barreiras físicas como paredes e portas.
2. A ressurreição é explicada como fato psíquico, uma espécie de alucinação, projeção mental de uma convicção interior e de um desejo muito forte, produzido nas mentes de alguns dos primeiros discípulos (incluindo discípulas) de Jesus, em consequência do trauma sofrido pela infeliz morte do rabino de Nazaré, que provocara neles enorme escândalo em relação à fé, fazendo-os cair em um desespero abismal. A forte experiência de luto e derrota que vivenciaram levou alguns deles a senti-lo e a "vê-lo" ainda vivo e presente, e comunicá-lo aos outros, e, dessa forma, tornou-se uma convicção compartilhada. Assim, superaram aquele momento triste com fé em Deus, que deve ter dado uma nova vida a Jesus. Visões de tipo místico, ou experiências de "estados modificados de consciência", estão documentadas em todas as culturas.
3. A ressurreição originou-se a partir de uma experiência de fé, dentro de momentos de oração e comunicação dos próprios sentimentos internos, em busca de conforto espiritual, através da releitura de textos bíblicos familiares anticotestamentários (a Bíblia Hebraica), em que se falava de Deus que não abandonaria no sepulcro e na sombra da morte o inocente injustamente perseguido e morto. Outros falavam que Deus levava a sério a causa dos justos, que era o reivindicador de seus direitos pisoteados pelos malfeitores. No contexto da fé, e com o apoio das páginas bíblicas através das quais interpretavam a história de Jesus e as liam como profecias do que acontecera a Jesus, surgiu lentamente a convicção de que Deus o tinha ressuscitado dos mortos, acompanhados pela sensação de que de alguma forma ainda estava presente entre eles.
Claro, a primeira e terceira forma, assim como a segunda e terceira, podem coexistir e se combinar para explicar a experiência da ressurreição vivida pelos primeiros discípulos de Jesus. Mas é a terceira hipótese – descartada a milagrosa tradicional e a psicológica – que ganha mais e mais terreno.
IHU On-Line – A ressurreição deve ser vista como histórica? Por quê?
Ferdinando Sudati – Não deve ser vista como história. Voltando ao pensamento predominante nos teólogos de hoje e no próprio Lenaers, devemos dizer que a ressurreição, enquanto tal, não pertence à história, no sentido de que não é historicamente e empiricamente verificável. Pode-se, ao invés, voltar à experiência que deu origem à crença na ressurreição, e até mesmo à fé no Cristo vivo. É exatamente essa experiência que se coloca no plano factual ou histórico, mas a passagem à fé está além do plano histórico, subtrai-se às verificações que a história exige. Aqui se entra no âmbito das escolhas da consciência que todos podem ou devem fazer em liberdade, então, com base em sua avaliação: para um pode ter luz, isto é, razões suficientes para crer, para outro permanece demasiada obscuridade e, por isso, a passagem à fé fica impedida.
Qualquer que tenha sido a ressurreição ou o evento da Páscoa, só podemos constatar seus efeitos na vida das pessoas: estas são reais, e documentos foram transmitidos. Novamente, cabe ao historiador avaliar que tipo de documentação tem diante de si, e o grau de confiabilidade que pode ter.
IHU On-Line – São Paulo, em 1 Coríntios 15, diz que a ressurreição é o núcleo central do cristianismo, com a proposição: "Mas se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa pregação e vã é também a vossa fé". Em que medida a ideia de ressurreição, considerando a lógica da modernidade, se opõe a essa perspectiva?
Ferdinando Sudati – O raciocínio de Paulo, de estilo rabínico, é inatacável. O problema diz respeito ao modo de entender a ressurreição. Acho que para nós é, ou poderia ser, algo diferente de como ele a concebeu, no horizonte cultural de dois mil anos atrás, com uma formação judaico-helenista. Certamente ele a entendia de modo milagroso, embora não confiasse em sepulcros vazios, que nem menciona. Permito-me lembrar a São Paulo que os patriarcas tinham fé em Deus, sem qualquer perspectiva de vida eterna, no sentido depois entendido pela dogmática eclesiástica. Mas ninguém diz que sua fé tenha sido em vão.
Um ponto em que gostaria de despender algumas palavras diz respeito à personalidade de Paulo. São coisas já destacadas por vários estudiosos, a saber, que o apóstolo era um visionário, não isento de alguma patologia. Apenas nos últimos tempos se começou a afirmar claramente, e a teoria recebe cada vez mais consenso. Não se pretende negar seus méritos ou sua sinceridade pessoal, mas isso não deve ocorrer em detrimento de uma interpretação mais realista de sua personalidade, favorecida pelo maior conhecimento sobre os aspectos médicos, psicológicos e até sociológicos de que dispõe nossa época.
A visão da ressurreição em São Paulo, que ele não hesita em colocar no mesmo nível que a dos outros apóstolos, poderia fazer parte da segunda modalidade mencionada acima, a do tipo psicológico-alucinatório. Na reivindicação da parte de Paulo sobre a paridade da "visão" do ressuscitado em relação aos apóstolos, poder-se-ia facilmente dar-lhe razão, mesmo que ele não concordasse com a interpretação psicológica que estamos dando ao fato.
É inegável, em todo caso, que Paulo tinha uma estrutura mental propensa à "visão". De fato, a de Jesus ressuscitado não é a única que ele "experimentou", já que em suas cartas aparecem acenos a raptos aos céus e comunicações diretas com Deus.
IHU On-Line – Quais são os desafios do cristianismo para se adaptar à modernidade e até que ponto ele precisa se submeter à lógica que opera na modernidade e, mais ainda, na ciência? E mais: o cristianismo precisa adaptar-se à modernidade para tornar a Boa Nova compreensível, ou é a modernidade que não compreende a mensagem cristã, dada sua nova maneira de entender a realidade?
Ferdinando Sudati – Certamente, não devemos cultivar uma ideia ingênua da modernidade, que não é asséptica, e nem mesmo boa, inocente e compreensiva por tendência espontânea. A modernidade é a mudança epocal em que nos encontramos hoje, e da qual devemos nos tornar conscientes. O que define a modernidade não é alguma coisa flutuante e sem força de vontade, mas o que de mais sólido e confiável hoje dispõem os seres humanos sobre a terra, ou seja, um conhecimento científico, extremamente avançado em áreas como astronomia, cosmologia, paleoantropologia, ao que devemos acrescentar pelo menos a psicologia e a pesquisa filosófica: é isso que nos obriga a repensar nossa visão religiosa e até mesmo a reformular nosso credo.
Embora por sua natureza também o saber científico esteja constantemente em mudança, ele realmente não regride, mas se corrige, se implementa e avança, e é o único capaz de sugerir – não diretamente, não sendo sua tarefa – como recidiva de suas descobertas, possíveis alterações ao nosso sistema de religião, especialmente à nossa concepção de Deus. Afinal, sempre foi assim, e isso consentiu de corrigir coisas indecentes que dissemos de Deus ou a ele atribuímos em diferentes épocas. A história cultural da humanidade ensina que "nenhum conceito agonizante de Deus jamais ressuscitou", diz abruptamente Spong.
Certamente tanto Spong quanto Lenaers estão muito preocupados com a sobrevivência do cristianismo, e em como apresentar a pessoa e a mensagem de Jesus em palavras que fazem sentido para o homem de hoje. É óbvio que não apenas para oferecer algo para os outros, uma vez que a primeira exigência é de compreender novamente Jesus para si mesmo, e, mais geralmente, para refundar a própria fé nas coordenadas da modernidade e da pós-modernidade.
Notas:
[1] Massari Editore, 2017. (Nota da IHU On-Line)
[2] John Shelby "Jack" Spong (1931): é um bispo emérito da Igreja Episcopal. Vive nos Estados Unidos e de 1979 a 2000, foi bispo de Newark (baseado em Newark , Nova Jersey ). Considerado teólogo cristão liberal, com seus escritos e reflexões tenciona que se repense fundamentalmente a crença cristã, afastando-se do teísmo e das doutrinas tradicionais. (Nota da IHU On-Line)
[3] Gabrielli Editori, 2017. (Nota da IHU On-Line)
[4] Roger Charles Lenaers (1925): padre jesuíta na diocese de Innsbruck, no oeste da Áustria. Ingressou na Companhia de Jesus em 1942 e seguiu os cursos regulares na Escola Jesuíta de Filosofia e Teologia. Em 2000 e 2002 ganhou destaque pelas suas reflexões sobre o choque entre a modernidade e as convicções religiosas modernas. Ao reinterpretar a essência, ele tentou reconciliar a mensagem teológica com a modernidade. Desde 1995, Roger Lenaers é pároco em Vorder - e Hinterhornbach (Lechtal, Tirol, Áustria). Em 2013, concedeu uma entrevista à IHU On-Line, intitulada A despedida da religião e a dedicação ao amor que sustenta tudo e todas as coisas (Revista IHU On-Line, número 424, de 24-6-2013, disponível em http://bit.ly/2G9XkJZ. (Nota da IHU On-Line)
[5] Nº 8 / Dezembro de 2017. (Nota do entrevistado)
[6] Panenteísmo: sistema filosófico e teológico que diz que o Universo está contido em Deus (ou nos deuses), mas Deus (ou os deuses) é maior do que o universo. É diferente do panteísmo, que diz que Deus e o universo coincidem perfeitamente (ou seja, são o mesmo). No panenteísmo, todas as coisas estão na divindade, são abarcadas por ela, identificam-se (ponto em comum com o panteísmo), mas a divindade é, além disso, algo além de todas as coisas, transcendente a elas, sem necessariamente perder sua unidade, ou seja, a mesma divindade é todas as coisas e algo a mais. (Nota da IHU On-Line)
[7] Concílios de Niceia: o I Concílio de Niceia é o primeiro Concílio Ecumênico do Cristianismo, que aconteceu em 325, para discutir questões cristológicas. O II Concílio de Niceia, o sétimo ecumênico, foi realizado em 787, reconheceu a veneração, e não adoração, dos ícones religiosos. (Nota da IHU On-Line)
[8] Concílio de Calcedônia: concílio ecumênico realizado entre 8 de outubro e 1º de novembro de 451 na Calcedônia, cidade da Bitínia, na Ásia Menor. Foi o quarto dos primeiros sete Concílios da história do Cristianismo, onde foi repudiada a doutrina de Eutiques do monofisismo e declarada a dualidade humana e divina de Jesus, a segunda pessoa da Santíssima Trindade. Por não ter sido aceito por alguns movimentos cristãos ortodoxos, o Concílio deu origem à Igreja Copta e outras Igrejas nacionais. (Nota da IHU On-Line)
[9] Dominus Iesus (ou "Senhor Jesus"): é um documento sobre a unicidade e a universalidade salvífica de Jesus Cristo e a doutrina da Igreja. Foi emitido pela Congregação para a Doutrina da Fé, no dia 6 de agosto de 2000, assinado pelo então prefeito da Congregação, o Cardeal Joseph Ratzinger, que se o tornou Papa Bento XVI. (Nota da IHU On-Line)
[10] O Instituto Humanitas Unisinos – IHU, na seção Notícias do Dia, em seu sítio, publicou diversas análises sobre a carta. Entre elas Placuit Deo e o magistério de Francisco: a salvação integral como dom e tarefa; e Ladaria: ''Carta 'Placuit Deo'? Alinhada com a 'Dominus Iesus' contra as novas heresias''. (Nota da IHU On-Line)
[11] HarperOne, 1994. (Nota da IHU On-Line)
[12] Lucas 24:13. (Nota da IHU On-Line)
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O túmulo vazio significa que Jesus é mais forte do que a morte. Entrevista especial com Ferdinando Sudati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU