25 Abril 2023
"Para tornar o ambiente digital amigo da liberdade e da democracia, é preciso, sim, investir na inteligência humana. O que significa trabalhar para povoar tudo aquilo que, “estando no meio” entre ChatGPT e metaverso, tem condições de manter viva e plural a relação entre intelecto e espírito, exatamente o que corremos o risco de perder", escreve o sociólogo e economista italiano Mauro Magatti, professor da Universidade Católica de Milão, em artigo publicado por Corriere della Sera, 21-04-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O legado inesperado da Covid é uma aceleração tecnológica que nos leva ao limiar de uma nova fase destinada a mudar profundamente as nossas vidas pessoais e coletivas. De um lado, a chegada do ChatGPT. Chegou ao mercado com alguns anos de antecipação em relação às expectativas, essa nova ferramenta avançada de processamento da linguagem natural utiliza de maneira poderosa e versátil algoritmos de aprendizado automática (machine learnig) capazes não apenas de gerar respostas similares àquelas humanas dentro de um discurso, mas também de interpretar imagens e desenvolver autonomamente novas formas de raciocínio. Um salto de nível no longo caminho iniciado na segunda metade do século XX, que atribui um papel cada vez mais central ao processamento algorítmico nos processos cognitivos e de tomada de decisão que estão na base de nossas vidas cotidianas.
Do outro lado, o metaverso anunciado por Zuckerberg. Um ciberespaço imersivo que é acessado usando óculos de realidade virtual ou tecnologias de realidade aumentada. Mesmo que ainda não tenha invadido o mercado, já sabemos que nos próximos anos o seu impacto está destinado a revolucionar a nossa relação com a realidade e a produção e aproveitamento do imaginário. Também neste caso, um salto de nível no percurso empreendido com o cinema e a televisão. E enquanto os promotores falam de uma nova condição na qual finalmente poderemos nos libertar do vínculo do relacionamento com o real, os críticos temem a criação de dependências e formas psicóticas ainda mais graves daquelas que já conhecemos.
Para compreender o futuro que se avizinha, é necessário observar esses dois desenvolvimentos na sua relação: como um todo, a tecnologia digital está interferindo de maneira cada vez mais radical naquilo que os gregos chamam de nous, isto é, a faculdade humana de pensar, faculdade que é individual e coletiva. Os antigos gregos reconheciam e distinguiam os dois componentes do nous: intelecto e espírito. Duas dimensões que - como reconheceram Jurgen Habermas e Joseph Ratzinger – no curso da modernidade se transformaram desconectando-se uma da outra. O intelecto identificando-se cada vez mais estritamente com a razão instrumental primeiro e de cálculo depois; e o espírito evoluindo em direção da livre criatividade do imaginário subjetivo.
Essa separação - que está na origem das transformações da cultura ocidental na segunda metade de 1900 - agora se torna uma divergência ainda mais radical. O ponto é que, enquanto resultam ainda mais ampliadas pelas inovações tecnológicas mencionadas acima, as capacidades de cálculos, elaboração e circulação do imaginário são progressivamente delegadas à máquina, dentro de sistemas e aparatos técnicos cada vez mais complexos e interdependentes.
Desta forma tais capacidades são desencarnadas (exossomatização) e ordenadas às necessidades da organização social. Concretamente, dos seus interesses econômicos e/ou políticos. A recomposição entre intelecto e espírito por parte das pessoas e das livres associações humanas (famílias, empresas, partidos políticos, igrejas, movimentos etc.) obviamente continua a se expressar. Mas torna-se mais frágil e, no limite, menos autônoma, ou seja, menos capaz de determinar os processos de conhecimento e de decisão.
Não se trata de ser a favor ou contra a tecnologia. O homem é técnico desde a origem e as gerações futuras ainda terão que viver no novo ambiente que está tomando forma. Ao contrário, trata-se de fazer o que tem sido necessário em todas as épocas: discernir as oportunidades dos riscos como duas faces da mesma moeda. Adotando todas as contramedidas para possibilitar uma adaptação sensata à nova condição em que a vida social está destinada a se desenvolver.
Numa sociedade vocacionada para a inovação, a capacidade regulamentadora das instituições políticas tende a ser fraca, até porque está sempre atrasada (“Estado”, justamente, é o particípio passado do verbo estar). Como mostrou Shoshana Zuboff, ao analisar a vantagem que o Google desfrutou por pelo menos uma década graças à sua capacidade de se mover na fronteira tecnológica, para além de qualquer regulamentação institucional.
Apesar dessa dificuldade, a política não pode deixar de desempenhar o papel que lhe cabe. A partir de um correto dimensionamento da envergadura do problema. Qual é o verdadeiro significado que está por trás do apelo para parar lançado há alguns dias pelo Future Life Institute. O único precedente ao qual podemos nos reportar é a bomba atômica – a que, aliás, o próprio Sam Altam, fundador da OpenAI, recentemente comparou (não de todo inapropriadamente) a sua própria inovação. Mas há muitas dúvidas de que algo assim possa ser aplicado à inteligência artificial, que já tem mil aplicações em todos os campos e é difundida em nível internacional.
Num plano diferente, um papel importante será desempenhado pelas empresas, pelas finanças e por grupos profissionais - especialmente cientistas e tecnólogos - pesquisadores, intelectuais, mídia, escolas e todas as agências de formação (a começar pela universidade). Para tornar o ambiente digital amigo da liberdade e da democracia, é preciso, sim, investir na inteligência humana. O que significa trabalhar para povoar tudo aquilo que, “estando no meio” entre ChatGPT e metaverso, tem condições de manter viva e plural a relação entre intelecto e espírito, exatamente o que corremos o risco de perder.
Sabendo que se não o fizermos com a força e a presteza necessárias, as grandes oportunidades digitais transformar-se-ão em desastrosos fatores de destruição.
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Pensamento, tecnologia e o papel da política. Artigo de Mauro Magatti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU