02 Janeiro 2023
Do metaverso à metacidade, ou seja, como usar a conceito de metaverso para melhorar a sustentabilidade: essa foi a reflexão de Derrick de Kerckhove na 14ª edição do evento “Nostalgia di Futuro”, que neste ano foi realizada em Milão, Itália, sediada pela Fundação Eni Enrico Mattei.
De Kerckhove propõe a visão do metaverso como destino digital. De 1992 até hoje, simulação e geminação são os princípios-chave da transformação digital, e o metaverso com suas tecnologias imersivas simula o espaço. São três as palavras-chave: imersão, presença, partilha.
O artigo foi publicado em Media2000, 06-12-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Desde 1992, ano em que o termo foi inventado por Neal Stephenson, o metaverso, depois de diversos falsos começos como o Active Worlds ou o Second Life, passou por diversas iterações para chegar à atual explosão nos mercados mundiais.
Embora ainda seja uma surpresa, dado a morna acolhida anterior, a duplicação de um espaço imersivo, para não dizer “vivo”, estava no canteiro de obras desde o início da transformação digital. Junto com a incorporação da inteligência artificial em toda atividade humana, incluindo o sono: o metaverso é a ponta de diamante e o fulcro dos desenvolvimentos tecnológicos e de mercado.
O metaverso torna evidente algo que experimentamos sem nos dar conta: ocupamos uma novo espaço, entramos em uma nova civilização e ampliamos desmedidamente os nossos poderes individuais. O espaço não é mais exclusivamente geográfico nem ontológico. É virtual, sim, mas, agora que é tecnicamente estável, tornou-se habitável no modo em que habitamos o espaço físico. É isso que chamamos de “imersivo”.
Além dessa propriedade, o metaverso é um ambiente de “partilha” assim como o físico, onde assumimos como evidente o fato de nos encontrarmos no mesmo espaço com a pessoas que encontramos. Mark Zuckerberg também entendeu isso: “A qualidade que define o metaverso será a sensação de presença, como se eu estivesse realmente ali com outra pessoa ou em outro lugar. Esse é o sonho último da tecnologia social”.
De acordo com Matthew Ball (especialista digital), “o metaverso é uma rede massivamente escalável e interoperável de mundos virtuais 3D renderizados em tempo real, que podem ser vividos de forma síncrona e persistente por um número efetivamente ilimitado de usuários e persistente a partir de dados como identidade, história, direitos, objetos, comunicações e pagamentos”.
Todas as palavras são importantes, mas, além do feito de que falta a palavra “imersivo”, a mais significativa talvez seja a palavra “persistente”. Porque é a que corresponde à realidade e permite comparações interessantes entre mundo físico, sonho, ficção, cinema e metaverso. Para mim, as quatro palavras-chave, além de virtual, são, quanto ao espaço real, presença, imersão, persistência e partilha.
Temos duas funções do metaverso: o entretenimento e o serviço público. O entretenimento guia a tecnologia e o mercado. No passado, eram a literatura e o cinema que forneciam vários experimentos de vida.
O conceito de metacidade sugere a possibilidade do serviço público, segundo Cosimo Accoto, escritor e analista da era digital.
No entanto, o que foi dito não significa que o metaverso deve ou queira permanecer circunscrito ao entretenimento e focado no lucro, nem que deva se limitar a copiar a realidade. A versão lúdica do metaverso também faz parte de sua função heurística.
Assim como a alfabetização, que foi útil tanto para a narrativa quanto para a ciência, o metaverso pode ser um estímulo para a economia do entretenimento e também para o serviço público. A partir dessa reflexão nasce conceito de “metacidade”, gêmea da cidade.
Assim como o metaverso, a metacidade é uma simulação de espaço imersivo, interativo e participativo, mas simula espaços físicos existentes, de modo que as pessoas possam agir sobre eles virtualmente e aplicar as decisões pertinentes em consequência.
Podemos prever vantagens para os cidadãos conectados às autoridades e capazes de negociar com eles a fim de melhorar a cidade (mas não só). Mas uma coisa que um ambiente virtual como uma metacidade pode fazer e que a cidade real não pode fazer é coletar e integrar todos os dados, todos os sensores e todo o tráfego em tempo real e prever consequências ou melhorias.
Segundo Cosimo Accoto, “os ambientes povoados hoje principalmente por avatares esteticamente coloridos e divertidos, certamente, mas ainda não habitados por cidadãos digitais política e socialmente consciente e responsabilizados (...) serão o verdadeiro desafio do metaverso”.
O conceito de “metacidade” revela a verdadeira vantagem da atual tendência à inovação, ou seja, a duplicação da realidade, não só em nível urbano, mas também, como prevê a União Europeia, em escala regional, nacional, continental e, finalmente, global. O mapeamento da realidade na sua dimensão imersiva pode se tornar a saída dos iminentes desastres ecológicos e sociais. A União Europeia, em sua sabedoria, iniciou a projeto “Geminação Digital da Europa” como um serviço para melhorar a gestão da economia e combater as mudanças climáticas.
E chegamos à sustentabilidade, porque nem a metacidade nem o metaverso são ecológicos. O ponto é que ambos são necessários para a maturação e a difusão da tecnologia.
Como vimos até agora nos tépidos resultados das várias reuniões da COP, do Rio a Sharm el-Sheikh, nada convencerá os governos, a indústria e o público em geral a levar a sério a sustentabilidade. Por si só, em particular nas aplicações visíveis hoje, nem o metaverso nem a metacidade estão destinados a defender o ambiente, longe disso.
Suas aplicações lúdicas e comerciais ou práticas ameaçam aumentar, em vez de reduzir, o já considerável consumo de energia e de materiais em ciclos de inovação, obsolescência, renovação e consumismo generalizado. A título de comparação, do início do anos 1960 a 2011, demorou quase cinco décadas de persuasão publicar para reduzir a população mundial de fumantes a 20%.
Este é o ponto de chegada: o metaverso como tecnologia de ponta da “economia da experiência” que leva à ecologia da experiência. Experimentamos uma mudança semelhante quando externalizamos a experiência, e a alfabetização se contrapôs à screenology. Avancemos por pontos.
Externalizamos o ego sob a forma de um avatar, mas há uma diferença crítica entre o metaverso e a metacidade, porque o metaverso é a extensão das mídias tradicionais, enquanto a metacidade é extensão da realidade. A tecnoecologia depende de simulação quântica, como diz Cosimo Accoto.
O mercado não esperou o renascimento das tecnologias imersivas 3D para promover a “economia da experiência”. Mas a metaverso torna-se uma ponto de referência para compreender todas as implicações do termo. A criação de experiências começou cedo em todas as culturas alfabetizadas com a narrativa e o teatro. Mas, com a narrativa, a experiência era interna ao usuário. O cinema a externalizou de novo, como o teatro havia feito, e depois entrou a televisão, que forneceu ao espectador um substituto completo da imaginação.
Hoje, o processo de externalização é compartilhado entre a mente do usuário e a tela, mas cada vez mais sob o controle desta última. A externalização completa ocorre com o metaverso, porque não só externaliza três das cinco experiências sensoriais, mas também porque exterioriza o ego sob a forma de um avatar. Eis, portanto, a diferença crítica entre o metaverso e a metacidade.
O valor lúdico e de entretenimento do metaverso, além de convidar à criação de um novo tipo de serviço comercial, embora convencional, é uma extensão de outras mercadorias midiáticas desde a invenção do teatro e do romance. Em comparação, o conceito de metacidade se ocupa da realidade e de como utilizá-la.
A simulação imersiva se dirige a prever e a melhorar as condições de vida real, e, como podemos prever a partir dos desenvolvimentos atuais, considera-se que a tendência já vai além da cidade, para ambientes regionais e, enfim, globais.
Desse modo, a tecnologia imersiva poderia nos ajudar a viver melhor graças à simulação de ambientes completos baseados em dados provenientes de sensores e análises preditivas em tempo real a fim de identificar os potenciais perigos e suas causas, protegendo assim o planeta com seus habitantes em sua totalidade. Daí o convite a começar a pensar na ecologia da experiência além da economia da experiência.
A diferença só poderá ocorrer quando for disponibilizada uma síntese imersiva, completa e integrada de todos os dados provenientes de todos os sensores sobre todos os fatores-chave que ameaçam a sobrevivência humana. E isso só poderá ocorrer graças aos rápidos progressos da computação quântica.
“De um ponto de vista técnico, a perspectiva nos leva a olhar para o metaverso tanto como uma lente interpretativa através da qual é possível começar a ler o ambiente quanto como a arquitetura propriamente dita que deverá ser desenvolvida ao longo do tempo para que essa visão se torne realidade. Não se trata, portanto, de um simples videogame ou de uma simples realidade virtual, embora muitos usem essas semelhanças para justificá-la, mas de uma nova tecnoecologia dentro da qual viverão seres humanos, objetos, dados” (Cosimo Accoto).
E eu acrescento “animais e plantas”, para completar a visão de uma ecologia verdadeiramente abrangente.
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Do metaverso à metacidade: a ecologia da sustentabilidade. Artigo de Derrick de Kerckhove - Instituto Humanitas Unisinos - IHU