25 Fevereiro 2023
De acordo com o Relatório de Riscos Globais 2023, do Fórum Econômico Mundial, “os riscos planetários mais importantes são todos ambientais, tanto no curto prazo como na próxima década. Esses alertas alimentam uma discussão nessa elite empresarial e política sobre a necessidade de reformar o desenvolvimento, pois os encadeamentos de crises ecológicas terão consequências sociais e econômicas que levariam a uma crise que impediria qualquer tipo de desenvolvimento. Por outro lado, na América Latina, a maioria dos políticos, empresários e acadêmicos raciocina e age ignorando esses fatos, voltados para posições tão conservadoras que até as advertências que partem de alguns dos mais ricos e poderosos lhes parecem radicais”. A reflexão é de Eduardo Gudynas, publicada por Cartas en Ecología Política. A tradução é do Cepat.
Eduardo Gudynas é pesquisador do Centro Latino-Americano de Ecologia Social (CLAES).
De um lado do planeta, em pleno inverno, em Davos reuniu-se a elite empresarial e política no Fórum Econômico Mundial (FEM). Simultaneamente, do outro lado do globo, no verão, vários países do extremo sul da América Latina sofrem uma estiagem muito severa. Esses distúrbios climáticos, assim como outros problemas, não deveriam ter chamado a atenção de quem estava em Davos se tivesse lido o Relatório de Riscos Globais 2023 que ali foi apresentado?
Segundo este relatório, os riscos planetários mais importantes são todos ambientais, tanto no curto prazo como na próxima década. Esses alertas alimentam uma discussão nessa elite empresarial e política sobre a necessidade de reformar o desenvolvimento, pois os encadeamentos de crises ecológicas terão consequências sociais e econômicas que levariam a uma crise que impediria qualquer tipo de desenvolvimento. Por outro lado, na América Latina, a maioria dos políticos, empresários e acadêmicos raciocina e age ignorando esses fatos, voltados para posições tão conservadoras que até as advertências que partem de alguns dos mais ricos e poderosos lhes parecem radicais.
No Relatório de Riscos Globais 2023, ao abordar o futuro imediato, referente aos anos de 2023 e 2024, entre os dez riscos mais graves, metade é ambiental (1). Em primeiro lugar está o custo de vida, mas é seguido por desastres naturais e eventos climáticos extremos. Outros riscos ambientais referem-se à mudança climática, aos incidentes provocados por danos ambientais e à crise de recursos naturais. Outros tipos de riscos se intercalam além do custo de vida, como a erosão da coesão social e a polarização social e a migração em massa.
Sempre se deve ter presente a forma como o Fórum Econômico Mundial (FEM) avalia os riscos em escala planetária. Baseia-se em entrevistas com mais de 1.200 pessoas, e quase uma centena de especialistas e acadêmicos, com especial atenção para os executivos de empresas, ministros de finanças, políticos ou analistas, muitos deles associados ao poder. O relatório atual é o 18º em uma série que tem muitos anos, e seus alertas ambientais não são novidade, uma vez que em relatórios anteriores fazem alertas semelhantes. Na edição de 2022, entre os dez maiores riscos, cinco eram ambientais; os três primeiros falharam em evitar as mudanças climáticas, clima extremo e perda de biodiversidade. O relatório atual aumenta a preocupação com as condições ecológicas no futuro imediato.
Considerando os próximos dez anos, a lista dos riscos mais graves também é dominada pelas questões ambientais; passam a ser seis, e quatro deles estão localizados sucessivamente nas primeiras posições. O quinto e o sétimo riscos são sociais, um é tecnológico e outro é geopolítico. Mais uma vez, nem os conflitos econômicos nem os bélicos aparecem. Vários dos riscos apontados para 2023-24 se repetem, como é o caso de todos os riscos ambientais, enquanto a avaliação decenal indica um agravamento.
Deixando de lado, neste caso, uma revisão crítica dos sentidos que o FEM de Davos dá à ideia de “risco”, já que para os fins desta análise basta seguir com os entendimentos mais usuais, fica evidente que na América Latina todos eles estão presentes. Riscos severos como o aumento do custo de vida, e especialmente o risco associado à inflação e aos preços dos alimentos, afetam praticamente todos os países (2). Estão acontecendo diversas crises ambientais; a mais recente é a estiagem no Cone Sul (Argentina, Uruguai e sul do Brasil). O fracasso das medidas de mitigação das alterações climáticas é evidente e o mesmo acontece com os programas e apoios de adaptação às suas consequências.
O que o FEM chama de erosão da coesão social e polarização social está diante dos nossos olhos em casos como o do Peru, onde há grandes mobilizações cidadãs e dura repressão policial, ou na tentativa de golpe de Estado dos bolsonaristas no Brasil. O desempenho econômico será muito modesto, as condições comerciais serão restritivas, e isso faz com que os níveis de pobreza aumentem ou persistam, alimentando as instabilidades políticas.
Os riscos ambientais estão conectados, como é o caso da estreita associação entre mudanças climáticas, perda de biodiversidade e crises de recursos naturais, e a partir daí vários setores são afetados. Se tomarmos a agricultura como exemplo, circunstâncias como as inundações ou as estiagens afetam a produção de alimentos. Isso é transmitido às cadeias de comercialização agrícola, levando a limitações na oferta de alimentos ou ao aumento de seu custo. Muitos países do Sul Global não têm dinheiro para amortecer esses impactos, como financiar a irrigação, comprar fertilizantes mais caros ou subsidiar os alimentos. A alto do custo de vida torna-se inevitável, o que aumenta o descontentamento dos cidadãos, multiplica os protestos e afeta a coesão social.
Este exemplo esquemático mostra que os distúrbios ecológicos transmitem seus efeitos para diferentes áreas. Eles não podem ser analisados separadamente um do outro. Produzem-se crises interligadas que se retroalimentam.
Considerando os alertas deste relatório, como em anos anteriores, fica claro que ações urgentes são necessárias para, por exemplo, prevenir as mudanças climáticas ou resolver os desequilíbrios econômicos. Aparecem justificativas adicionais para reformar o desenvolvimento capitalista, e isso é precisamente o que foi levantado pelo FEM. Em 2020, seu presidente, Klaus Schwab, apresentou sua alternativa ao “Grande Reinício” (ou Great Reset), com medidas como os impostos para os mais ricos, o fomento da economia participativa ou o abandono dos combustíveis fósseis (3). Schwab faz uma diferença entre três capitalismos: um corporativo, outro estatal (como na China), e sua alternativa, o capitalismo das partes interessadas.
Isso faz parte dos confrontos que ocorrem entre essas elites empresariais e políticas. De um lado estão aqueles que entendem que o desenvolvimento capitalista predominante tornou-se insustentável, que causaria uma crise em escala planetária e, portanto, são necessárias reformas como as que acabamos de mencionar. Os que discordam destas políticas rejeitam qualquer correção de rota do capitalismo, insistindo em blindar estratégias convencionais (4).
O que muitas vezes é interpretado a partir da América Latina como um bloco homogêneo que defende o desenvolvimento, na verdade abriga diferentes estratégias que estão em forte discussão. No debate mais recente, as palavras e os conceitos usados são reveladores. Agora usa-se explicitamente a palavra capitalismo, e seus autores reconhecem que a situação é grave e propõem algumas reformas. Entre elas estão as mencionadas acima e outras que implicam intervenções nos mercados, retomando a presença do Estado em setores como educação e saúde, e uma mudança na gestão ambiental, a começar pelo cumprimento dos acordos sobre mudanças climáticas.
Entre esses reformadores, além do FEM, estão vários bilionários e empresas de setores como comércio e serviços. Muitos deles participam não por serem ambientalistas, mas por entenderem que cada grau de aumento da temperatura global coloca seus negócios em risco. Há também economistas que hoje são mais conhecidos na América Latina por apoiar alguns progressismos. São os casos de Joseph Stiglitz (em relação ao governo de Alberto Fernández na Argentina) ou, mais recentemente, Mariana Mazzucato (que é invocada pelo presidente colombiano Gustavo Petro).
O outro grupo rejeita as propostas de mudança. Querem preservar os mercados liberalizados sem a intervenção do Estado, renunciam aos impostos, negam ou minimizam as mudanças climáticas, ainda se apegam aos combustíveis fósseis e gostariam de manter serviços públicos como educação e saúde privatizados. Agendas moderadamente reformistas, como a de Schwab, são classificadas como típicas de um "comunismo". Nessas trincheiras estão economistas e políticos conservadores ou neoliberais e corporações de setores como mineração, petróleo ou agronegócio, todos com forte presença na América Latina.
Este tipo de discussão, as diferentes formas de diagnosticar os problemas e as alternativas propostas não são comuns na América Latina. Na nossa região, a agenda política dominante, e também boa parte da acadêmica, é tão conservadora que predomina o continuísmo do desenvolvimento capitalista convencional enquanto os reformistas são minoria. Pequenos ajustes, como a reforma tributária proposta na Colômbia, que se poderia dizer mais modesta do que as traçadas pelos reformistas em Davos, era, aos olhos dos setores conservadores colombianos, de uma radicalidade de extrema esquerda. Entre as elites empresariais e políticas latino-americanas há poucos reformistas, e na maioria não sabem ou não entendem o que propõem no Norte alguns dos que são mais ricos e têm mais poder do que eles.
Essa desconexão é perfeitamente ilustrada pelos resultados da consulta realizada no Brasil pelo FEM para a elaboração do relatório de riscos globais. Sob o olhar dos políticos e analistas brasileiros consultados, nos cinco primeiros lugares predominam os riscos econômicos (inflação, economia ilícita e choques de preços de matérias-primas), e nenhum é ambiental. É como se essa elite local brasileira vivesse em um planeta diferente do que se avalia de outros continentes.
Até agora, o único que parece estar ciente desse problema é o presidente colombiano Gustavo Petro. Em seu discurso em Davos, atacou o capitalismo como incapaz de resolver os problemas que produziu, e advertiu que "o capitalismo acabará com a humanidade". Acrescentou que os “empresários de Davos deveriam pensar em outro capitalismo”, e a partir daí levantou sua alternativa de um “capitalismo descarbonizado” (5). Assim, Petro foi imediatamente colocado entre os reformadores do desenvolvimento capitalista. Petro não é contra o capitalismo, e já disse isso várias vezes, mas quer retificá-lo. Em sua reivindicação em Davos, parece que ele ignorou ou se esquivou do fato de que seu “capitalismo descarbonizado” não é muito diferente do capitalismo dos stakeholders do Grande Reinício discutido nesse fórum.
Mas, ao mesmo tempo, deve-se reconhecer que Petro é o único presidente que pelo menos tenta uma reforma do capitalismo que enfrente seus problemas mais agudos e, por exemplo, nos afaste do vício em combustíveis fósseis. Inclusive aqueles chefes de Estado ideologicamente mais próximos, como Manuel López Obrador (México) e Lula da Silva (Brasil), rejeitaram as propostas de Petro de despetrolizar suas economias.
Seja como for, não se pode perder de vista que os reformadores, seja o Grande Reinício, Stiglitz, Petro ou outros, em nenhum caso se propõem a abandonar o capitalismo, nem rompem com concepções básicas. Todos querem crescer economicamente e veem que a exploração da Natureza é uma forma incontornável de conseguir esse objetivo. O que eles postulam são regulações diferentes do mercado e o fortalecimento do Estado, invocando objetivos como melhorar a equidade, reduzir a pobreza ou evitar eclosões sociais. Suas medidas amenizam as arestas mais negativas, e que por sinal seriam bem-vindas em muitos países. Mas mesmo esse reformismo é insuficiente para enfrentar as emergências ambientais.
A própria análise de risco do Fórum Econômico de Davos fornece evidências que mostram que os ajustes do capitalismo não nos salvarão de uma crise múltipla. Nem a crise da biodiversidade nem a crise das mudanças climáticas estão se dissipando. As soluções necessárias envolveriam transformações simultâneas em várias frentes, como abandonar as energias fósseis e se voltar para a agroecologia, mudar padrões de consumo e aceitar estilos de vida mais austeros. Essas e outras são mudanças radicais que nenhum tipo de capitalismo assumirá.
Analisar os riscos e discutir o desenvolvimento, seja ele capitalista ou de qualquer outra natureza, é um primeiro passo para desenhar alternativas às crises sociais e ambientais.
É inaceitável que os elencos partidários não o façam porque continuam a enfrentar as situações com as mentalidades do século passado, sem compreender as urgências do século XXI. Também não faz sentido retrucar que considerar a reforma ou o colapso do capitalismo expressa vocabulários e ideias ultrapassadas.
Essas são discussões que devemos começar em nossos próprios termos. Isso é necessário porque, como vimos acima, os riscos globais graves já são observados na América Latina e, ao mesmo tempo, somos tão subservientes aos contextos internacionais que um desastre externo nos arrastará imediatamente. Também não podemos esquecer que nossos países dependem da terra e da água, do subsolo e do clima, o que significa que nossas economias são ecologicamente condicionadas. Devemos fazer nossas próprias avaliações de risco e não podemos mais confiar naquelas que são feitas em Davos ou em outro lugar.
Estas reflexões devem ser incentivadas por políticos, empresários, sindicalistas, acadêmicos, ativistas sociais, entre outros, até envolverem a grande maioria dos cidadãos. Enfrentamos questões prementes: quais são os riscos que enfrentamos? Quais são as reformas necessárias? As correções do capitalismo são suficientes para enfrentar esses riscos? Outros já estão respondendo a perguntas como essas e não podemos ficar para trás.
1. WORLD ECONOMIC FORUM. The Global Risks Report 2023. 18th edition. Insight report., Genebra, 2023.
2. Segundo a CEPAL, a inflação em 2022 atingiu um pico de 8,4% no meio do ano, para depois diminuir; espera-se que caia para 4,8% em 2023. CEPAL. Balance preliminar de las economías de América Latina y el Caribe 2022, Santiago, 2022.
3. SCHWAB, K.; MALLERET, T. Covid-19: The great reset. World Economic Forum, Genebra, 2020.
4. As várias alternativas focadas no desenvolvimento são discutidas em GUDYNAS, E. Tan cerca y tan lejos de las alternativas al desarrollo. Planes, programas y pactos en tiempos de pandemia. RedGE y Cooperacción, Lima, 2020.
5. Veja, por exemplo, El mundo necessita un “capitalismo descarbonizado”: el mesaje de Petro em Davos. El Espectador, Bogotá, 19 de janeiro de 2023; TORRADO, S. El Petro mas ecologista se despide de su primer Davos. El País, Madri, 21 de janeiro de 2023.
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Riscos globais, crises ambientais e reformas do desenvolvimento. Artigo de Eduardo Gudynas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU