"A renúncia ao governo da Igreja universal parece ser um ato de extraordinária lucidez e responsabilidade. Pode-se discutir se a gestão concreta da inédita função de 'papa emérito' que Ratzinger depois reservou para si mesmo tenha sido coerente com essa decisão", escreve Daniele Menozzi, historiador do cristianismo e professor emérito da Normale di Pisa, em artigo publicado por Settimana News, 31-12-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
A convicção de Joseph Ratzinger era que a dramática crise eclesial em curso poderia ser enfrentada com um enrijecimento das medidas promovidas por seu antecessor do qual teria sido instrumento um fortalecimento do ministério papal.
No que dizia respeito à relação entre a Igreja e o mundo moderno, o papa listava dentro da tradição também concepções teológicas muito recentes, em particular as reelaborações do legado contrarreformista realizado pelo intransigentismo católico oito-novecentista.
Esta atitude emergiu no plano externo com a decisão de trazer de volta indumentárias (o saturno, o camauro), paramentos litúrgicos (o pálio, as mitras e as tradicionais capas), objetos (a férula e o trono de Pio IX) há tempo abandonados nas aparições públicas dos pontífices pós-conciliares.
Em abril de 2005, um rápido conclave, que durou dois dias, levou à eleição para o governo da Igreja universal de Joseph Ratzinger, desde 1981 um dos mais próximos colaboradores de João Paulo II.
Naquele ano, Wojtyla de fato o dispensou da liderança da diocese de Munique, que ocupava desde 1977, após uma longa carreira passada em universidades alemãs como professor de teologia primeiro em Tübingen e depois em Regensburg, colocando-o na direção da Congregação para a Doutrina da Fé.
Apesar de sua idade já avançada (nasceu em 1927), a escolha do conclave parecia bastante previsível. O cardeal havia desempenhado nos últimos tempos papéis cruciais na cúria romana: decano do sagrado colégio desde 2002, de março de 2005 havia conduzido a via Sacra para substituir o pontífice doente; depois havia presidido a missa do seu funeral e finalmente as celebrações litúrgicas pro eligendo romano pontífice.
Nessas ocasiões, e em outras intervenções daqueles dias, como uma famosa conferência realizada em Subiaco sobre a Europa na crise das culturas, seus discursos apresentavam uma tese básica: a dramática crise eclesial em curso poderia ser enfrentada com um enrijecimento das medidas promovidas pelo seu predecessor, de que seria instrumento um fortalecimento do ministério papal.
Pode-se pensar, portanto, que os cardeais eleitores julgaram necessário conferir o governo da Igreja universal a uma personalidade que, encontrando-se no centro dos assuntos eclesiásticos há mais de duas décadas, havia formulado um diagnóstico e proposto uma terapia para enfrentar o difícil legado deixado por João Paulo II.
Não há dúvida de que as medidas promovidas pelo prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé nos anos anteriores haviam suscitado várias perplexidades e críticas na comunidade eclesial.
Basta pensar nas censuras à teologia da libertação, no confinamento da função eclesiológica das conferências episcopais ao plano prático-pastoral, na proclamação da definitividade das proposições expressas pelo magistério em matéria de fé e costumes, na transferência de competências em casos de pedofilia do clero da Congregação do Clero ao ex-Santo Ofício, medida que acabou aumentando o sigilo em torno de acontecimentos sobre os quais explodiu o pedido de transparência.
Mas também é verdade que Ratzinger usufruía de certo prestígio nos círculos progressistas: foi um dos mais destacados peritos do Concílio Vaticano II, onde colaborou com o arcebispo de Colônia, Josef Frings, expoente abalizado da corrente inovadora.
Em especial, ele havia apoiado, com argumentos teológicos precisos, a aprovação da constituição da Igreja Lumen gentium. Apesar do sucessivo embate com Hans Küng, nunca abandonou a convocação para a assembleia ecumênica, embora tenha enfatizado que a correta interpretação de suas deliberações cabia apenas ao magistério.
Em suma, podia ter parecido uma escolha exigida pelas complexas condições do momento confiar ao Cardeal Ratzinger a implementação de uma linha capaz de manter a fundamental instância conciliar – que, em termos gerais, pode ser identificada em uma renovação da Igreja com o objetivo de restituir-lhe eficácia apostólica no mundo contemporâneo –, adaptando-a depois nas suas aplicações concretas à difícil situação eclesial para a qual ele mesmo havia chamado a atenção.
O novo pontífice, que assumiu o nome de Bento XVI não só em homenagem à mensagem de paz que Della Chiesa havia lançado no mundo dilacerado pela Grande Guerra, mas também, e muito significativamente, em memória de São Bento de Núrsia, que havia se empenhado na evangelização do mundo pagão, logo reafirmaria a ancoragem de suas posições ao Vaticano II.
Mas também teria esclarecido que, ao interpretá-lo, o magistério deveria filtrar a exigência da Igreja de se adaptar aos tempos modernos à luz de um princípio supremo: a continuidade da tradição.
Claro, o princípio, em si, constituiu uma pedra angular da doutrina católica; mas, no que dizia respeito à relação entre a Igreja e o mundo moderno, o papa listava na tradição também as concepções teológicas bastante recentes, em particular a reelaboração do legado contrarreformista realizado pelo intransigentismo católico oito-novecentista.
Esta atitude emergiu no plano externo com a decisão de trazer de volta indumentárias (o saturno, o camauro), paramentos litúrgicos (o pálio, as mitras e as tradicionais capas), objetos (a férula e o trono de Pio IX) há tempo abandonados nas aparições públicas dos pontífices pós-conciliares.
Mas encontrou sua expressão mais contundente com o motu proprio Summorum pontificum que, em julho de 2007, reintroduziu a liturgia pré-conciliar, proclamando a singular tese de que, na Igreja Católica de rito latino, conviviam uma modalidade ordinária de oração (aquele introduzida pela reforma litúrgica de Paulo VI) e uma modalidade extraordinária (a sancionada em 1570 pelo chamado missal de São Pio V).
Para além das correções precipitadas, como a nova oração pelos judeus inserida na cerimônia da Sexta-Feira Santa do rito extraordinário para evitar sua inconsistência com os documentos conciliares, sem mexer nas outras partes da liturgia que, no entanto, as contradiziam, a disposição foi acertada no projeto de reabsorver o cisma do tradicionalismo anticonciliar.
Em janeiro de 2009, de fato, a Congregação dos Bispos publicava um decreto revogando a excomunhão infligida por João Paulo II. Os sucessivos encontros entre as duas partes registraram convergências indubitáveis. Mas encalharam em uma questão: as garantias canônicas solicitadas pelos tradicionalistas, para poder colocar em discussão as interpretações das deliberações do Vaticano II dadas pelo magistério. Em suma, Bento XVI não acreditava poder forçar a vontade de reintroduzir a comunidade anticonciliar na comunhão eclesial a ponto de permitir que ela questionasse a autoridade suprema do papado.
A intangibilidade do poder monárquico do pontífice sobre a Igreja constituiu a rocha sobre a qual se quebrou o projeto de Ratzinger para acabar com o cisma tradicionalista. Embora tenha definido a consecução desse objetivo como ponto central de seu programa de governo, é difícil estabelecer um vínculo direto entre essa derrota e a inesperada decisão anunciada na alocução ao consistório de fevereiro de 2013, de renunciar ao ministério petrino. O ato, que não tem precedentes na história da Igreja na era moderna e contemporânea, foi explicado de várias maneiras.
Para alguns, faz parte de uma decisão amadurecida desde os primeiros anos de seu pontificado: isso ficaria demonstrado pela deposição do pálio sobre a tumba de Celestino V, o papa da "grande recusa", durante a visita de Ratzinger à basílica de Collemaggio em L'Aquila em abril de 2009.
Outros sublinharam a dificuldade de orientar a Igreja universal diante das evidentes divisões da cúria romana quanto às medidas a adotar para enfrentar a multiplicação dos escândalos financeiros envolvendo as instituições vaticanas e tomar as medidas adequadas sobre as revelações cada vez mais frequentes relativas à tolerância dos dirigentes eclesiásticos, e até mesmo da Santa Sé, face à denúncia de abusos sexuais cometidos pelo clero, em particular em relação aos casos de pedofilia.
O próprio Ratzinger esclareceu que, diante dos complexos problemas que o governo da Igreja universal coloca hoje, considerou não ter mais forças para tomar as medidas necessárias para sua liderança eficiente. Não há razão para duvidar dessa interpretação. Mas naturalmente o julgamento histórico não pode assumir acriticamente a avaliação expressa por um protagonista dos eventos considerados. De fato, trata-se de compreender bem em que consiste a inadequação pessoal que o pontífice indicou como motivo da sua renúncia.
A esse respeito, é necessário voltar à questão central com a qual, desde o Concílio Vaticano II, a Igreja teve que se medir: como transmitir a mensagem evangélica a um homem moderno que se distancia cada vez mais a Igreja? A linha pastoral praticada por muito tempo, propondo uma sociedade ordenada cristãmente como forma de resolver os problemas que a modernidade colocava e não resolvia, já não parecia capaz de recuperar os “distantes”.
Era necessária uma atualização. A este propósito, a assembleia ecumênica forneceu uma resposta que, muito resumidamente, podemos considerar ter oscilado entre dois polos.
Por um lado, propôs uma linha de abertura ao mundo moderno caracterizada pelo critério de uma releitura do Evangelho à luz dos sinais dos tempos. Segundo este ponto de vista, a Igreja restitui eficácia à sua ação pastoral na medida em que aprende com a história quais elementos da mensagem evangélica são capazes de interceptar as instâncias do presente e as profundas necessidades do homem de hoje.
Por outro lado, apresentou uma perspectiva de atualização da doutrina católica a partir do enquadramento nela de alguns princípios e valores da modernidade. Em particular, é confiada aos fiéis a tarefa de construir uma reta ordem da vida coletiva baseada na conformação do consórcio civil a uma lei natural válida para todos, sempre e em todo lugar, da qual a Igreja é a única autêntica intérprete e depositária, dentro da qual são inseridos os valores modernos como os direitos humanos, a democracia, a liberdade religiosa.
Os papas pós-conciliares, não sem articulações e diferenciações, escolheram esse segundo caminho.
A cultura católica pré-conciliar acreditava poder responder ao afastamento do homem moderno da Igreja com o projeto de retorno a um regime de cristandade, que teria assegurado uma convivência social próspera e feliz em oposição às propostas inadequadas (liberais ou comunistas) que os homens haviam elaborado em seu caminho histórico.
Sem trair o Vaticano II, mas optando por uma linha entre as orientações presentes em seus documentos, os pontífices que tentaram traduzir as deliberações da assembleia ecumênica em uma linha concreta de governo decidiram propor a seus contemporâneos uma neocristandade modernizada que se articulava na lei natural universal garantida pela Igreja. Bento XVI foi o intérprete mais consistente.
Provavelmente estava na origem uma visão cultural introjetada durante um percurso de formação que decorreu antes da virada joanina e conciliar. De fato, em harmonia com as tendências da época, os conhecimentos transmitidos nas instituições educativas da Igreja evitavam qualquer confronto sério com a história, e em particular com a história do cristianismo, com o medo de cair na heresia modernista. O pensamento teológico de Ratzinger, embora refinado, era completamente alheio ao confronto com o desenvolvimento efetivo do homem e da Igreja ao longo do tempo.
Seja como for, o papa respondia à crise determinada pelo afastamento de seus contemporâneos do catolicismo com uma linha que retomava a modernização doutrinária: o retorno à Igreja da tarefa de fixar, nos ordenamentos públicos, aqueles direitos fundamentais que, baseados na lei natural universal, salvaguardavam os próprios fundamentos da civilização humana, teriam assegurado a ela uma presença apostólica eficaz na sociedade contemporânea.
Em particular, a Europa, ao reconhecer formalmente as raízes cristãs do seu projeto político-social, teria saído da sua decadência, voltando a desempenhar um relevante papel histórico e político na relação com outras civilizações e religiões, especialmente a islâmica, que foram avançando, às vezes até de forma agressiva, no cenário de um planeta globalizado.
Embora o incidente tenha sido corrigido no plano diplomático, a atribuição ao Islã de uma tendência estrutural à violência bélica no discurso proferido pelo pontífice em setembro de 2006 em Regensburg se insere nesse quadro.
Essa perspectiva logo revelou toda a sua fragilidade. Não apenas porque colidiu com a tendência irredutível do homem moderno de se emancipar da tutela eclesiástica na estruturação da comunidade política, mas sobretudo porque pareceu descompassada em relação ao perfilar-se da pós-modernidade.
Embora seja árduo dar uma definição compartilhada, podemos considerá-la caracterizada pela reivindicação da faculdade de cada indivíduo autodeterminar as formas de existência não apenas em relação aos arranjos políticos, sociais e culturais da vida coletiva, mas também em relação às estruturas antropológicas mais profundas do sujeito (corpo, nascimento e morte, identidade sexual, etc.).
Nessa situação, a neocristandade modernizada proposta pelo papa parecia completamente obsoleta: a referência à lei natural, longe de restituir a capacidade apostólica da Igreja, acabou levando os homens a se distanciarem ainda mais dela. A crise do paradigma de atualização adotado por Bento XVI pareceu inevitável.
A renúncia foi o reconhecimento de sua inadequação. Não é por acaso que a linha do sucessor gira em torno da recuperação daquela perspectiva de renovação eclesial, centrada na aceitação dos sinais dos tempos emergentes da história, que o papado pós-conciliar havia abandonado.
Deste ponto de vista, a renúncia ao governo da Igreja universal parece ser um ato de extraordinária lucidez e responsabilidade. Pode-se discutir se a gestão concreta da inédita função de "papa emérito" que Ratzinger depois reservou para si mesmo tenha sido coerente com essa decisão.
As intervenções que fez nessa qualidade continuam a revelar aquela surdez à história que é elemento constitutivo da sua personalidade intelectual: a simplista atribuição da pedofilia do clero à revolução sexual de 1968 é uma das provas mais evidentes. Mas essas afirmações certamente não impediram que o modelo eclesial da "cidadela sitiada pelo mundo moderno" fosse agora substituído pelo do "hospital de campanha" dentro da história dos homens.
Naturalmente reconhecer a autonomia do homem de hoje, oferecendo o remédio da misericórdia às feridas que encontra em seu caminho histórico, não garante a superação da crise católica.
Mas a renúncia de Bento XVI revelou que o caminho da modernização percorrido até aquele momento pelo papado pós-conciliar era um beco sem saída.