04 Janeiro 2023
“O funeral de Bento XVI será mais do que um réquiem para um ex-papa. Em vez disso, marcará as exéquias finais de um dos poucos líderes da Igreja que remodelaram o catolicismo no século passado. Para a maioria dos católicos, será o funeral de um líder de sua Igreja. Para muitos outros a de uma figura paterna, não apenas um hierarca, a quem se sentem em dívida espiritual e intelectual. Mas para outros ainda será o funeral de um herói de um certo tipo de cultura católica que se vê nadando contra a maré tanto no mundo quanto na Igreja”, escreve o historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, Filadélfia, EUA, em artigo publicado por La Croix International, 02-01-2023. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
O ex-presidente da Congregação para a Doutrina da Fé e o primeiro papa a renunciar em 600 anos teve uma enorme influência na redefinição da liderança e teologia da Igreja, especialmente nos Estados Unidos. Com a morte de Joseph Ratzinger-Bento XVI, o catolicismo contemporâneo perdeu uma de suas figuras mais icônicas.
O ex-papa, que morreu no último dia de 2022, teve tanta influência que os termos “ratzingerismo” e “ratzingeriano” foram cunhados para identificar uma versão do catolicismo que incorporou sua peculiar conversão de proponente do Concílio Vaticano II durante seus quatro sessões (1962-1965) para se tornar, apenas alguns anos depois, um crítico feroz dos progressistas conciliares.
Sua personalidade intelectual, eclesial e eclesiástica foi fortalecida pela autoridade da teologia acadêmica alemã, na qual ele escolheu um caminho muito diferente de seus principais contemporâneos no firmamento da teologia católica, como Hans Küng. Ratzinger escolheu um caminho menos glamoroso, mas a longo prazo isso lhe deu uma influência muito maior dentro da Igreja.
Essa influência foi muito além de seus livros e ensaios amplamente lidos, além das fronteiras do clero católico e da intelectualidade, e até mesmo além das políticas doutrinárias que ele moldou e impôs por mais de trinta anos – primeiro, como cardeal-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (1981-2005) e depois como Bispo de Roma (2005-2013). Ele se tornou o símbolo da recuperação do controle do Vaticano sobre as energias que o Concílio havia desencadeado. Mas Ratzinger não era apenas um controlador, de maneiras típicas de outros cardeais e altos funcionários da Cúria Romana. Seu alcance se estendia ainda mais do que isso.
Os períodos que se seguem aos concílios ecumênicos normalmente redefinem a liderança da Igreja. Nas décadas após o Concílio de Trento (1545-1563) e seu esforço para livrar a Igreja da corrupção e do caos institucional, um diploma em direito canônico tornou-se obrigatório para os clérigos em posições de autoridade. A era tridentina também inaugurou um processo mais centralizado de nomeações episcopais, onde a máquina eclesiástica em Roma começou a monitorar os bispos mais de perto.
Algo semelhante aconteceu quatro séculos depois no Concílio Vaticano II, onde os bispos ajudaram a definir a agenda e solidificaram seu papel como a espinha dorsal da Igreja Católica. Ao mesmo tempo, porém, aquele Concílio consolidou as aquisições feitas pelo papado no Vaticano I (1869-1870).
O episcopado pós-Vaticano II foi reformulado de forma que, especialmente após a eleição de João Paulo II em 1978, afastou a Igreja das sereias do progressismo e respondeu ao desafio antropológico vindo da biopolítica e da secularização da legislação e da ética. Ratzinger desempenhou um papel fundamental nesse processo, que acabou por produzir um novo modelo de bispos destinado a frear o catolicismo pós-conciliar. Eles foram enviados para dioceses onde acabaram em conflito aberto com suas igrejas locais – e, nos últimos anos, também em oposição declarada ao sucessor de Bento XVI na Cátedra de Pedro, o Papa Francisco.
Uma olhada na atual composição do Colégio dos Cardeais (apenas 34 dos 125 eleitores foram criados por Bento XVI) poderia dar uma estimativa imerecidamente baixa da influência de Ratzinger na Igreja Católica global. Ele foi um importante formulador de políticas por três décadas, já durante o pontificado de João Paulo II. Uma parte crucial do movimento da Igreja em uma direção diferente, a partir de 1978, foi a nomeação de altos funcionários e bispos, que sempre foi a chave para remodelar a identidade do catolicismo.
Veja a Igreja nos Estados Unidos, por exemplo. Pouco depois de 1980, quando o arcebispo Jean Jadot terminou sua missão como delegado apostólico, o Vaticano começou a nomear novos bispos que, de certa forma, visavam desfazer o que o diplomata papal progressista da Bélgica havia feito entre 1973-1980 durante seu mandato em Washington. Esses novos bispos não eram apenas mais conservadores, mas também eram mais jovens. Essa política foi intensificada durante os oito anos de Papa Bento XVI.
Por exemplo, o dom Salvatore Cordileone foi nomeado metropolita de San Francisco em 2012 aos 56 anos, garantindo-lhe vinte anos no cargo. O agora arcebispo emérito Charles Chaput foi nomeado metropolita de Denver em 1997 aos 53 anos, antes de ser promovido a (uma vez) cardeal da Filadélfia em 2011. O cardeal Daniel DiNardo foi nomeado coadjutor de Galveston-Houston (Texas) em 2004 aos 55 anos e ganhou seu chapéu vermelho três anos depois. Dom José Gómez foi nomeado metropolita de San Antonio (Texas) em 2004 aos 53 anos, antes de ser promovido a Los Angeles em 2011.
Estas são apenas uma pequena amostra das elites episcopais que Joseph Ratzinger ajudou a selecionar como prefeito da Doutrina da Fé e depois como papa. Quase uma década depois de sua renúncia ao papado em 2013, a maioria dos bispos dos EUA ainda são aqueles que ele nomeou, tanto que seus confrades mais próximos do Papa Francisco regularmente não conseguem ser eleitos para os cargos-chave na conferência episcopal.
Mas o caso dos Estados Unidos é importante para entender o legado de Joseph Ratzinger além dessa influente política de nomeação de bispos. No início, mesmo antes de ser eleito papa, seus escritos sobre o Vaticano II e questões teológicas contemporâneas expressavam pontos de vista contrários à corrente principal do período pós-conciliar. Publicados amplamente em inglês, em particular pela Ignatius Press, esses escritos começaram a atrair católicos estadunidenses conservadores nos Estados Unidos na década de 1980. Inicialmente crítico de certos aspectos da implementação do Vaticano II, esse tipo de catolicismo conservador dos EUA mais tarde mirou no Concílio como tal.
Muito antes de se tornar Bento XVI, o teólogo bávaro já era o herói daqueles que viram a recepção do Concílio Vaticano II ser levada muito longe do que pensavam ser a real intenção dos Padres Conciliares. Isso foi reconhecido pela frequente e intensa relação de Ratzinger com instituições da academia católica nos Estados Unidos, que lhe conferiram títulos honoríficos.
Após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, suas visões politicamente incorretas sobre a compatibilidade entre o Islã e a civilização ocidental moldada pelo cristianismo (articuladas em ensaios e livros, mesmo antes da polêmica palestra proferida na Universidade de Regensburg em setembro de 2006) impulsionaram ainda mais sua popularidade entre os teólogos conservadores, bem como entre os políticos de direita dos EUA.
Bento XVI fez uma de suas viagens mais importantes ao exterior em abril de 2008, quando visitou os Estados Unidos. George W. Bush era o presidente na época e a viagem papal solidificou os seguidores de Bento XVI nas fileiras dos fiéis militantes. Encorajou vocações para um sacerdócio e uma vida religiosa mais tradicionais, provocou conversões ao catolicismo e acompanhou a remodelação da cultura católica estadunidense no nível institucional. Isso foi especialmente verdadeiro entre as elites clericais e episcopais, de maneiras que estavam claramente em oposição à virada liberal-progressista assumida pelas elites acadêmicas na teologia católica, mas também em certas ordens religiosas, como os jesuítas.
O pontificado de Bento XVI iniciou duas investigações separadas (em 2008 e 2009) sobre a adesão doutrinária ao magistério por ordens religiosas de mulheres progressistas e a Conferência de Liderança das Religiosas (LCWR) nos Estados Unidos. Isso fazia parte de um plano maior para disciplinar os teólogos católicos dos Estados Unidos, especialmente importantes pensadoras como Elizabeth Johnson (em 2011). A relação especial que Joseph Ratzinger-Bento XVI teve com certos grupos e indivíduos nos Estados Unidos esteve na vanguarda das “guerras culturais”. Isso ficou bem visível quando os bispos dos Estados Unidos fizeram suas visitas ad limina a Roma em 2011 e 2012.
Joseph Ratzinger foi um dos líderes mais influentes da história da Igreja pós-Vaticano II ao cimentar nas camadas institucionais do catolicismo contemporâneo um certo tipo de liderança eclesiástica e intelectual que foi inspirada por ele, muitas vezes por pessoas que não tem suas qualidades intelectuais. Nesse sentido, “ratzingeriano” pode significar coisas muito diferentes para pessoas diferentes.
Muitas vezes, envolveu réplicas insípidas do homem provocador que não temia a impopularidade, alguém que conhecia a tradição teológica católica e soube como recuperá-la silenciando as novas vozes que surgiram no tumultuoso período pós-conciliar. Não apenas bispos, mas também outros tipos de líderes em uma Igreja que desde então se tornou menos clerical, ou diferentemente clerical, do que pensamos.
Ratzinger encarnou um manifesto teológico e cultural que lançou o alarme sobre a necessidade de corrigir as trajetórias da Igreja, e esse alarme foi recebido e acionado por outros atores além dos bispos: teólogos acadêmicos, intelectuais públicos, doadores e filantropos. Vimos tudo isso em ação em oposição ao Papa Francisco desde as primeiras semanas após o conclave de 2013.
Os principais exemplos da influência de Ratzinger são os livros sobre o Vaticano II que foram publicados nos últimos dois anos por dois grandes influenciadores do catolicismo de língua inglesa. Uma do bispo Robert Barron, a outra de George Weigel, essas obras apresentam a teologia do Concílio Vaticano II como um Concílio legítimo somente se lida de acordo com as interpretações de João Paulo II e Bento XVI. Como tal, eles são uma crítica apenas ligeiramente velada a Francisco.
Agora, quase uma década após a eleição do papa jesuíta, as duas identidades teológicas representadas por Bento e Francisco ainda lutam para coexistir pacificamente. A parte da Igreja que se identifica com Ratzinger é minoritária, mas militante, e não muito pequena quando se olha para a cultura do jovem clero.
Na verdade, isso tem pouco a ver com o que Bento XVI fez após sua renúncia. Pelo contrário, tem muito mais a ver com o que ele fez como papa e mesmo antes como cardeal. Seu best-seller “Relatório Sobre a Fé” (de 1985, uma entrevista concedida a Vittorio Messori publicada em forma de livro), por exemplo, tornou-se o manifesto – ou melhor, o anúncio – para uma era de reversões políticas. Isso culminou com o Summorum pontificum, seu motu proprio de 2007 para liberalizar o uso da liturgia pré-Vaticana. Provocou um florescimento do catolicismo tradicionalista em áreas onde o ratzingerismo já havia se enraizado silenciosamente, muitas vezes ignorado ou desdenhado pelos teólogos acadêmicos progressistas.
O funeral de Bento XVI será mais do que um réquiem para um ex-papa. Em vez disso, marcará as exéquias finais de um dos poucos líderes da Igreja que remodelaram o catolicismo no século passado. Para a maioria dos católicos, será o funeral de um líder de sua Igreja. Para muitos outros a de uma figura paterna, não apenas um hierarca, a quem se sentem em dívida espiritual e intelectual.
Mas para outros ainda será o funeral de um herói de um certo tipo de cultura católica que se vê nadando contra a maré tanto no mundo quanto na Igreja. Estes últimos tentaram, por vezes, mostrar-se herdeiros do legado de Joseph Ratzinger de forma que constrangem aqueles que, embora não concordando com toda a sua teologia, reconhecem o ex-papa como tendo desempenhado um papel importante na tradição intelectual católica do século passado.
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Ratzinger e a remodelação do catolicismo pós-Vaticano II. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU