10 Setembro 2021
Quando os terroristas devastaram os Estados Unidos no dia 11 de setembro de 2001, isso alterou para sempre os assuntos globais – incluindo, inadvertidamente, a pavimentação do caminho para que um cardeal argentino relativamente desconhecido se tornasse papa.
O comentário é de Christopher White, publicado em National Catholic Reporter, 09-09-2021. A tradução é de Anne Ledur Machado.
Vinte anos atrás, após os trágicos eventos do 11 de setembro, o cardeal Edward Egan teve a tarefa de cuidar de uma cidade e de um rebanho enlutados na cidade de Nova York, o epicentro dos atentados. Ele também havia sido encarregado de atuar como relator-geral do Sínodo dos Bispos de 2001 em Roma, marcado para começar no dia 30 de setembro.
Nessa qualidade, ele seria responsável por delinear os temas do Sínodo, organizando e comunicando-se com os Padres sinodais e resumindo as discussões sinodais antes que as propostas finais fossem revisadas pelo papa.
Joseph Zwilling, porta-voz da Arquidiocese de Nova York, disse ao NCR que Egan solicitou ao Papa João Paulo II, por meio do então secretário de Estado vaticano, cardeal Angelo Sodano, que lhe fosse permitido apresentar o relatório de abertura no Sínodo e depois tivesse a permissão para voltar para Nova York.
“Segundo o que o cardeal Sodano transmitiu ao cardeal Egan, o Santo Padre pediu que ele ficasse, o que ele fez, com relutância, mas obedientemente”, lembrou Zwilling.
Mas uma cidade em luto atraiu Egan de volta para casa, e, na metade do Sínodo que durou um mês, ele recebeu a permissão para retornar a Nova York para um rito de oração pelas vítimas do 11 de setembro, retornando depois para Roma para uma curta estadia, antes de finalmente receber a permissão para retornar definitivamente para os Estados Unidos.
É aqui que entra Jorge Mario Bergoglio, o então cardeal arcebispo de Buenos Aires, Argentina, que era o relator-adjunto do Sínodo, atuando como o número dois de Egan.
Durante a reunião de um mês dos bispos do mundo inteiro, enquanto a diocese de Egan mantinha seu foco em outro lugar, o cardeal argentino assumiu responsabilidades maiores, tanto públicas quanto privadas, fazendo com que ele fosse notado em todo o Vaticano e além.
“O papel de Bergoglio naquele Sínodo de 2001 foi muito importante e crucial para a sua eleição posterior. De fato, ele trabalhou tão bem como relator, substituindo Egan, que passou a ser conhecido e notado em Roma como um papável”, ou seja, como um possível candidato a próximo papa, disse a jornalista argentina Elisabetta Piqué.
“A partir de então, ele permaneceu no radar de muitos cardeais – não apenas progressistas – que estavam em busca de um sucessor para João Paulo II”, disse ela ao NCR.
À medida que Bergoglio assumia as exigências do seu novo cargo no Sínodo de 2001, os jornalistas que cobriam o encontro muitas vezes comentavam que, embora o cardeal argentino se esquivasse dos holofotes, ele provava ser um comunicador muito capaz quando necessário.
“A comunicação de Bergoglio se destaca nas conversas um a um. Mas quando é preciso ele também sabe fazer muito bem em público”, escreveu o veterano jornalista vaticano Sandro Magister, na revista L’Espresso, referindo-se ao papel de Bergoglio na sucessão de Egan no Sínodo. “Bergoglio desempenhou seu papel com tamanha maestria que, no momento de nomear os 12 membros do conselho da secretaria, no fim do Sínodo, ele foi eleito com o maior número de votos possível”.
John Allen, cobrindo o Sínodo para o NCR na época, disse que “os votos são observados de perto em busca de indicações de quais prelados impressionaram seus pares”, acrescentando que “os resultados reforçaram a reputação desses homens como papáveis”.
Após o Sínodo, Magister relatou que o nome de Bergoglio foi cogitado como uma possibilidade para chefiar um importante dicastério vaticano.
“‘Por favor, na Cúria eu morro’, implorou ele [Bergoglio]”, escreveu Magister.
“Desde então, o pensamento de fazê-lo voltar para Roma como sucessor de Pedro começou a se propagar com intensidade crescente”, continuou Magister. “Os cardeais latino-americanos estão cada vez mais orientados a ele, assim como o cardeal Joseph Ratzinger.”
Piqué, a jornalista argentina autora de “Papa Francisco: vida e revolução” (Ed. Loyola, 2014), disse ao NCR que os participantes do Sínodo ficaram impressionados com a sua habilidade em sintetizar e expressar as opiniões dos bispos, “e é por isso que, no conclave de 2005, ele surgiu como o verdadeiro desafiante de Bento XVI”.
Quatro anos depois, após a morte do Papa João Paulo II em 2005, Bergoglio era amplamente conhecido como o principal concorrente do cardeal Joseph Ratzinger, que foi eleito Papa Bento XVI.
No entanto, como a história mostrou, Bergoglio não foi esquecido.
“Nesse sentido – observou Piqué – é interessante pensar o que teria acontecido na história da Igreja se o 11 de setembro não tivesse acontecido.”
Em muitos aspectos, os temas do Sínodo de 2001, que se focou no tema “O bispo: servo do Evangelho de Jesus Cristo para a esperança do mundo”, prenunciaram muitas das mesmas pedras de toque e tensões do papado de Francisco.
O biógrafo papal e colaborador do NCR Austen Ivereigh disse que, historicamente, uma questão persistente nos Sínodos tem sido a “autoridade do próprio Colégio dos Bispos e o seu papel no governo universal da Igreja” e como navegar “o equilíbrio certo entre colegialidade e primado”.
“O Sínodo de 2001 foi um momento-chave para trazer à tona esse chamado à colegialidade, porque havia uma sensação de que a era de João Paulo II estava no fim e que um governo centralista havia se tornado um grande obstáculo para a missão da Igreja”, disse Ivereigh.
Ele apontou para o consistório de 2001 – quando o Papa João Paulo II criou vários cardeais, incluindo Bergoglio, da América Latina – como um ponto de virada.
“Como aquele consistório foi composto por muitos cardeais latino-americanos, havia a sensação de que os principais centros católicos – a Europa e a América Latina – estavam pressionando por uma colegialidade que estava sofrendo resistência por parte de Roma”, disse Ivereigh. “Bergoglio viu tudo isso e tomou nota.”
Durante o Sínodo de 2001, a questão emergiu novamente, e um em cada cinco discursos dos Padres sinodais levantaram o tema da colegialidade, de acordo com Ivereigh. Em contraste, a colegialidade foi mencionada apenas duas vezes no documento de trabalho do Sínodo, e o cardeal Jan Pieter Schotte a retirou do relatório final.
“Em sua primeira entrevista coletiva como relator após o retorno de Egan a Nova York, Bergoglio foi questionado sobre a colegialidade”, lembrou Ivereigh. “Sentado ao lado de Schotte, ele disse que uma discussão apropriada desse tema ‘excedia os limites específicos deste Sínodo’ e precisava ser tratada em outro lugar e com uma preparação adequada.”
“Olhando para trás, ele estava claramente sinalizando que a colegialidade só poderia ser introduzida por meio de uma reforma completa do próprio Sínodo, para torná-lo um instrumento de governo colegial e de discernimento eclesial”, disse ele.
Piqué ofereceu uma avaliação semelhante, dizendo ao NCR que a experiência de Bergoglio no Sínodo de 2001 foi “essencial também para que ele entendesse melhor a necessidade de uma consulta real, com discussões na Igreja, porque ele viu que esse tipo de reuniões já vinha pré-fabricado”.
“Tudo era cuidadosamente administrado por Roma”, acrescentou ela. “Os bispos não eram realmente livres para discutir sobre qualquer assunto e expressar as suas opiniões. Eles sabiam que, se expressassem uma opinião que Roma não gostava, sua futura carreira seria bloqueada.”
E, depois de ser eleito papa, o próprio Francisco não mediu palavras sobre o que ele aprendeu no processo sinodal e sobre a sua crença de que a reforma era necessária.
“Eu fui o relator do Sínodo de 2001, e havia um cardeal que nos dizia o que deveria ser discutido e o que não deveria”, disse ele ao La Nación em 2014. “Isso não vai acontecer agora.”
Como os católicos acreditam (ou pelo menos esperam) que a ação do Espírito Santo guia o processo sinodal, pode não ser exatamente justo descrever os sínodos como uma audiência, na qual as lideranças da Igreja de todo o mundo demonstram seus próprios talentos, preferências e prioridades.
No entanto, é uma parte inegável dessa experiência.
“Os sínodos sempre foram um meio para os bispos terem uma noção da Igreja universal, para pensar globalmente, contra uma tela muito maior do que a sua própria diocese e país. Eles também são experiências poderosas daquela misteriosa coisa católica chamada de ‘comunhão’”, disse Ivereigh.
“Os sínodos unem os bispos uns aos outros e a Roma, tornando-os cientes de que eles são membros de um collegium encarregado de governar toda a Igreja com e sob o papa.”
“Pode-se dizer que nos sínodos muitos bispos crescem e se tornam lideranças da Igreja universal”, acrescentou.
Olhando a lista de participantes do Sínodo de 2001, pode-se ter um vislumbre do elenco de personagens que assumiriam papéis decisivos na era Francisco e os responsáveis por realizá-la.
Vários membros do chamado “grupo de Sankt Gallen”, uma associação informal de cardeais que se reuniam e elaboravam estratégias sobre o futuro do papado e da Igreja, estavam entre os participantes do Sínodo de 2001, incluindo os cardeais Godfried Danneels (Bélgica), Walter Kasper (Alemanha), Carlo Maria Martini (Itália), Cormac Murphy-O’Connor (Inglaterra) e José da Cruz Policarpo (Portugal).
Além disso, o Sínodo de 2001 foi uma ocasião para Bergoglio reconhecer outros líderes em potencial, homens que ele tornaria cardeais após a sua eleição como papa. Entre eles: os cardeais Charles Bo (Myanmar), Gregorio Rosa Chávez (El Salvador), Wilton Gregory (Estados Unidos), Carlos Aguiar Retes (México) e Joseph Tobin (Estados Unidos).
Ivereigh observou que muitos dos cardeais que participaram do Sínodo de 2001 ficaram impressionados com as qualidades de liderança de Bergoglio, mas no conclave de 2005 nem Bergoglio nem a Igreja estavam prontos para que ele se tornasse papa.
Isso começaria a mudar na reunião de 2007 da Igreja latino-americana em Aparecida, que “foi o ‘Pentecostes’ continental que mostrou que a América Latina era agora a ‘fonte’ da Igreja universal”.
“No conclave de 2013, a crise de governança havia chegado ao ponto em que os cardeais estavam dispostos a abraçar a necessidade de uma mudança de rumo”, continuou ele. “Foi quando os europeus e latino-americanos que o conheciam sugeriram Bergoglio ao restante do Colégio dos Cardeais que mal sabiam dele”.
Após a eleição-surpresa de Bergoglio em março de 2013, Egan – então aposentado – refletiu sobre o papel que o então cardeal argentino assumiu em 2001.
“Ele começou a trabalhar conosco todos os dias. Ele respondeu com generosidade, gentileza e com muita competência”, disse Egan ao Catholic New York em 2013. “Ele era simplesmente maravilhoso. Tornei-me um grande admirador dele.”
“Ele é um bispo e padre tão bom quanto qualquer um poderia esperar”, acrescentou.
O cardeal de Nova York acrescentou que, poucos dias antes do conclave de 2013 que o elegeu Papa Francisco, Egan pôde se encontrar com Bergoglio, quando ele o lembrou de um convite que lhe fizera em 2001 e que ele havia aceito: de visitar Nova York um dia.
Embora Egan tenha morrido em março de 2015, apenas alguns meses depois, Bergoglio cumpriu essa promessa em setembro de 2015, finalmente fazendo sua primeira visita aos Estados Unidos e, especificamente, a Nova York, onde – como papa – ele rezou no memorial pelas vítimas dos atentados do 11 de setembro.
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Como o 11 de setembro abriu caminho para a futura eleição de Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU