15 Junho 2022
"As novas gerações não tiveram dúvidas nem sobre as vacinas nem sobre o crime cometido por Putin contra o povo ucraniano. Caso contrário, em vez de se perguntar por que os países na fronteira da Rússia gradualmente se distanciaram livremente após o colapso do Pacto de Varsóvia, nossos críticos inflexíveis da democracia europeia compartilham plenamente a ideia do Ocidente corrupto em seus alicerces. Mas que paz, mas que liberdade? Essas são as mesmas palavras que encontramos tanto na boca do Patriarca Kirill como em muitos italianos pró-Rússia. Têm o mesmo sabor medieval de uma condenação religiosa", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado por La Repubblica, 14-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
A dobradinha foi terrível: primeiro o trauma da pandemia, depois o da guerra no coração da Europa. Primeiro a angústia da infecção que poderia trazer doença e morte às nossas casas, depois a angústia diante da crueldade da agressão russa e da potencial escalada do conflito bélico com desfechos imprevisíveis, mas já suficientes para envolver e desestabilizar a nossa vida coletiva. O sentimento generalizado de desorientação causado por esse duplo pesadelo não diz respeito apenas ao tempo presente, mas também afeta fortemente o nosso futuro.
De fato, no momento mais agudo da pandemia era precisamente o futuro enquanto tal que estava sendo posto em jogo da forma mais extrema: "Ainda existirá, ainda haverá futuro? O mundo ainda existirá como o conhecemos e amamos?" A dimensão apocalíptica dessas perguntas perpassou com mais ou menos força nossas vidas submetidas à virulência do Covid. No entanto, ao lado de uma experiência coletiva de impotência e desamparo, vivemos também uma experiência de resistência ao mal. As instituições tão vilipendiadas pela ideologia populista nos salvaram: a família, os hospitais, a escola, a ciência, o exército, a ação dos governos que geriram a emergência.
Cada um, é claro, pode ter sua própria opinião sobre essa gestão (eficiente, precária, improvisada, contraditória etc.), mas não há dúvida de que sem a vida das instituições a nossa própria vida se teria perdido.
Uma grande lição que minou da forma mais radical possível o postulado em que se alicerçou a ideologia populista nesta última temporada política: as instituições são antagônicas à vida. O que vimos, por outro lado, é exatamente o oposto: as instituições não são de modo algum inimigas da vida porque a vida sem instituições é vida morta. Mas assim que saiu de foco o Covid, atualmente, como declara desanimadamente um meu paciente, “não se pode pensar em nada além da guerra”. Com a invasão russa da Ucrânia, um pesado manto de incertezas mais uma vez desceu sobre nossas vidas.
No entanto, enquanto com a pandemia o objeto que arriscávamos perder era o mundo inteiro como tal (viajar, conhecer, abraçar, compartilhar espaços, trabalho, etc.), hoje o que parece estar em risco de se perder é a paz.
Desde o pós-guerra até hoje, construímos com muito esforço a Europa como um lugar precioso onde o conflito político pôde se manifestar entre Estados e dentro dos Estados sem nunca recorrer à brutalidade da guerra. Essa ideia de paz como conquista segura, como habitat civil dado como certo, hoje foi traumaticamente rompida. “Não se pode pensar em nada além da guerra”, como diz meu paciente, significa que o que está acontecendo hoje na Ucrânia nos afeta diretamente. No sentido de que com a agressão da Ucrânia também foi agredida a nossa laboriosa construção da paz.
No entanto, o Ocidente visto pelo regime de Putin e seus ideólogos - entre eles o Patriarca Kirill - não é um lugar de paz, mas de perdição. Parece como uma comunidade desossada, desprovida de valores éticos, profundamente corrompida no espírito: a nossa liberdade é, portanto, tão falsa quanto nossa paz é falsa. Este é o juízo severo que é expresso por Kirill e pelos outros ideólogos do regime de Putin.
O que chama a atenção é que justamente este julgamento encontra em nosso país numerosos acólitos tanto de extrema-esquerda quanto de extrema-direita, como se sinalizasse que nossa efetiva internalização da cultura democrática nunca ocorreu de forma completa. É por isso que permanece um sombrio fascínio rossobruno (posição política contrária ao liberalismo/capitalismo com viés nacionalista/soberanista, ndt) pela figura de Putin. Mas que paz, mas que liberdade? Não era exatamente essa a dúvida avançada pelos nossos próprios ideólogos No Vax e No Covid no momento mais dramático da pandemia? E não é esta a mesma dúvida defendida por muitos dos que apoiam as razões russas no conflito na Ucrânia? Na base de ambas as posições há, na realidade, um ódio político larvar pelas democracias e um juízo moral sobre a decadência irrefreável do Ocidente. Sua visão permanece nostálgica.
Não é por acaso que os principais expoentes políticos e intelectuais desses grupos pertencem às gerações mais antigas. As novas gerações não tiveram dúvidas nem sobre as vacinas nem sobre o crime cometido por Putin contra o povo ucraniano. Caso contrário, em vez de se perguntar por que os países na fronteira da Rússia gradualmente se distanciaram livremente após o colapso do Pacto de Varsóvia, nossos críticos inflexíveis da democracia europeia compartilham plenamente a ideia do Ocidente corrupto em seus alicerces. Mas que paz, mas que liberdade? Essas são as mesmas palavras que encontramos tanto na boca do Patriarca Kirill como em muitos italianos pró-Rússia.
Têm o mesmo sabor medieval de uma condenação religiosa.
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Um duplo trauma. Artigo de Massimo Recalcati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU