"A Lei de Moisés pretende inscrever-se não só nas tábuas de pedra, mas, sobretudo, no coração do homem, na sua carne. Na psicanálise, essa Lei - a Lei da palavra - é especificada como a Lei simbólica da castração. O humano é obrigado a ser exilado da Coisa materna, a viver a experiência da separação e do abandono, a experimentar a impossibilidade de usufruir diretamente do gozo de Deus. A violência, o engano, o ódio, a rejeição, a queda na insensatez da vida, o apego narcísico ao próprio Eu são todas tentações secundárias daquela tentação primária que é o desejo de ser Deus", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado por La Stampa, 16-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Massimo Recalcati, autor de vários livros, acaba de publicar “La Legge della parola. Radici bibliche della psicoanalisi” (A Lei da palavra. Raízes bíblicas da psicanálise, em tradução livre), pela editora Einaudi de Turim, 2022.
Antecipação. O ensaio “La Legge della parola” [A Lei da palavra] demonstra a estreita relação entre o logos bíblico e a psicanálise. Os temas da Bíblia abordados na obra de Freud e Lacan, partindo do caráter do ódio e do amor.
As teses de Freud sobre a religião e a antropologia do homem religioso aparecem desprovidas de nuances: a religião é uma "neurose da humanidade", ou mesmo um seu "delírio". É uma "ilusão" destinada fatalmente a desaparecer com o progresso da ciência; o homem religioso é produto de uma regressão, seu Deus nada mais seria do que o prolongamento da idealização infantil do pai que não quer se superada. A crença em um "mundo por trás do mundo", como diria Nietzsche, constitui o foco metafísico de toda religião que queira proteger o homem de sua inevitável exposição às feridas narcísicas da doença e da morte. Trata-se, portanto, de um remédio ilusório para nossa insuperável finitude.
A crença religiosa serve para suportar esta vida e sua dor prometendo outra - uma vida eterna - finalmente liberta do sofrimento e da falta que nos aflige. Se no plano da Criação é excluído - como coloca Freud - o programa da felicidade, o homem religioso imagina outra vida – uma vida transcendente - que deveria consolar e retribuir a precariedade e os sofrimentos desta vida.
O homem religioso é, portanto, um homem em fuga, incapaz de assumir responsavelmente o caráter irrevogavelmente finito e precário de sua existência. A psicanálise - filha do iluminismo materialista e do positivismo oitocentista - reconduz a ilusão da religião à sua verdadeira natureza, a de ser a criação de uma nova realidade fictícia, destinada a compensar a irredutível dureza da existência, quando não existe nenhum abrigo contra o destino mortal da vida e das suas turbulências.
Diante dessas teses que destroem o fundamento de toda crença religiosa, a hipótese de que existem raízes bíblicas na psicanálise só pode parecer desconcertante ou simplesmente infundada. Mas minha leitura da Bíblia absolutamente não tem a intenção de ser uma leitura "religiosa". Não só porque não teria as competências linguísticas - não sei hebraico, aramaico, grego – nem teológicas - minha formação é psicanalítica - mas sobretudo porque a crença em Deus não é nem o pressuposto nem o centro da minha reflexão.
Meu encontro com a Bíblia foi inspirado por algo que me tocou profundamente desde minhas primeiras leituras: existe uma Lei que não esteja a serviço da morte - do castigo, da punição - mas da vida? Existe uma Lei que supere o plano sancionador do juízo moral? Uma Lei capaz de animar a força geradora do desejo? Esta Lei - na Torá - é a Lei da palavra que, como tal, precede aquela reunida nos códigos e nas normas escritas do Direito. Esta Lei exige que o homem renuncie a tornar-se Deus como condição para humanizar sua existência.
A Lei da palavra é o nome de uma Lei que não só não pode ser reduzida a um cânone jurídico, mas nem mesmo a um poder irracional que devasta a vida dos homens. Pelo contrário, trata-se de uma Lei que favorece o tornar-se humano do humano, graças à sua libertação de todo ideal de domínio e de toda visão sacrificial da Lei. O Eu não é senhor nem mesmo em sua própria casa, repete biblicamente Freud: o ideal antropocêntrico é atingido no coração onde a Torá repetidamente mostra a impossibilidade do ser humano de se tornar a causa de si mesmo, de tornar-se ser, de alcançar uma totalização sem restos, representando sua existência como uma errância, um contínuo caminhar no deserto.
Não se trata, portanto, de psicanalisar o texto bíblico, mas sim, o contrário; trata-se de ler as Escrituras para compreender melhor a psicanálise. Através da leitura de algumas cenas capitais do texto bíblico, são atados os fios de dois discursos (o da Torá e o da psicanálise) considerados historicamente heterogêneos e radicalmente alternativos. Para isso foi necessário voltar a pensar o fundamento da experiência da palavra: o Deus hebreu é, de fato, um Deus que dirige incessantemente sua palavra ao homem e, por sua vez, a prática da psicanálise é uma prática estabelecida no fundamento da palavra. Mas a palavra tanto na Escritura como na psicanálise não pode ser reduzida a mero instrumento de comunicação.
Em vez disso, tende a assumir a forma de uma Lei, a forma mais radical da Lei das Leis. Na Torá, a Lei da palavra institui a vida humana como imensamente sagrada - "imagem" e "semelhança" de Deus - mas também radicalmente finita: pó destinado a retornar ao pó; falta que não pode ser erradicada; desejo destinado à errância. A forma humana de vida não pode prescindir dessa divisão que a atravessa.
A mesma que Freud pensa como tensão não resolvida entre pulsão de vida e pulsão de morte e que Lacan retoma como atrito permanente e instável entre desejo e gozo.
Trata-se de atar esses dois fios sem ignorar sua diferença. Impulso para a morte e impulso para a vida constituem o próprio ritmo da existência: abertura e fechamento, diástole e sístole, imanência e transcendência, finito e infinito, queda e ressurreição, repetição e diferença. Para a capa do livro escolhemos um detalhe de uma famosa obra de Caravaggio dedicada ao "sacrifício de Isaac". Três mãos aparecem no primeiro plano. Primeiro, aquela de Abraão, o pai: uma segura a faca, enquanto a outra segura o pescoço do filho, pronto para matá-lo. Depois, há uma terceira mão que intervém para impedir aquela do pai que segura a arma. É uma outra mão, uma mão que interrompe a sequência inevitável do sacrifício. Uma mão inesperada, fora de jogo, impensável, desvia o destino inelutável do sacrifício. É aquela de Deus? Aquela de um anjo? Esta mão anuncia a irrupção de algo inaudito na cena. Sua ação desvia a faca de sua trajetória inexorável. Um carneiro, escondido por um arbusto, assim é morto no lugar de Isaac.
La Legge della parola. Radici bibliche della psicoanalisi
Nem o filho, nem o coração já partido de seu pai.
A terceira mão é aquela da Lei da palavra: suspende a tragédia da Lei para anular a loucura do sacrifício libertando, num só instante, Isaac de seus laços e o pai do seu dever insensato. É uma subversão da Lei que se apresenta várias vezes na Torá e que, em minha opinião, encontrará seu cumprimento mais radical na pregação de Jesus: a Lei de Deus não exige a morte, o suplício, a retaliação. O Deus bíblico não é um Deus exterminador, não desfruta sadicamente do exercício de seu poder, não age semeando a morte e a destruição. Nesse sentido, a Lei de Deus coincide com a Lei da palavra. Esta Lei alicerça-se, em primeiro lugar, na experiência do impossível.
Para a forma de vida humana exclui-se a possibilidade da totalidade, de tornar-se causa de si mesmo, de fazer e ser Um com o Outro, de um gozo absoluto que exclui a experiência da falta. Nisso ela não pode ser separada do luto - tão traumático quanto necessário - de qualquer forma de totalidade. Mais precisamente, como o leitor terá a oportunidade de ver neste livro, a Lei da palavra institui o luto da Coisa ao introduzir no coração humano a dimensão do impossível: a experiência do luto da Origem e a Lei da palavra aparecem como dois lados da mesma moeda.
É a raiz do que Freud e Lacan definiram como a Lei simbólica da castração: a possibilidade geradora do desejo depende do reconhecimento da impossibilidade de ser ou fazer Um. O humano não é senhor de seu fundamento, não pode constituir-se como um “todo”. Por essa razão, a Torá isola no desejo do homem de querer ser Deus a sua maior loucura. Se é verdade que a versão deuteronômica da Lei parece multiplicar interdições e prescrições, fomentando o impulso para a sua transgressão e mortificando a vida, também é verdade que a única tentação capaz de desviar o homem de seu ser "imagem" e "semelhança" de Deus não é esta transgressão, mas o desejo de querer ser como Deus, de adquirir plenamente o seu poder.
Por isso a Lei de Moisés pretende inscrever-se não só nas tábuas de pedra, mas, sobretudo, no coração do homem, na sua carne. Na psicanálise, essa Lei - a Lei da palavra - é especificada como a Lei simbólica da castração. O humano é obrigado a ser exilado da Coisa materna, a viver a experiência da separação e do abandono, a experimentar a impossibilidade de usufruir diretamente do gozo de Deus. A violência, o engano, o ódio, a rejeição, a queda na insensatez da vida, o apego narcísico ao próprio Eu são todas tentações secundárias daquela tentação primária que é o desejo de ser Deus.
A ferida da castração, porém, não é uma maldição que deve ser evitada, mas a condição para tornar a própria vida geradora. É bem mostrado por Jacó que em sua luta com o estrangeiro traz o sinal de uma lesão em seu corpo que não se limita a mutilá-lo, mas lhe confere um novo nome. Esta lesão é o sinal da castração não como simples privação da vida, mas como condição para sua conversão radical. Esse é um tema que encontramos no centro da experiência psicanalítica: somente a experiência singular da castração pode ser fundacional para a experiência da liberdade.