09 Mai 2022
"O Deus da Torá também mostra a necessidade de renunciar ao seu próprio poder – à sua própria força criadora – dedicando um dia inteiro ao seu repouso. Assim, ele pretende alertar o ser humano sobre a tentação de fazer do trabalho uma espécie de divindade pagã, de transformar a dedicação ao próprio trabalho em uma verdadeira idolatria."
A opinião é de Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das universidades de Pavia e de Verona. O artigo foi publicado por La Stampa, 05-05-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo ele, "Um dos ensinamentos da pandemia que não deveríamos esquecer tão rapidamente é: distinguir o essencial para a nossa vida do não essencial. É um fato que não escapa aos psicanalistas: as vidas imersas na fúria produtivista do nosso tempo se lamentam, todas, de uma perpétua insatisfação e de uma perda vertical do sentido".
"Até a Escola foi atingida por essa má ideologia da hiperatividade: só tem valor o que é produtivo - constata o psicanalista. A hegemonia do modelo 'empresa' deturpou a sua vocação mais profunda. A linguagem empresarial degradou o seu léxico, abalou os seus procedimentos, intoxicou a vida da sua comunidade."
Freud pensava que a tarefa da psicanálise era tornar possível para um ser humano amar e trabalhar. O amor e o trabalho lhe pareciam ser duas faces de uma mesma moeda.
De fato, a vida humana realiza plenamente a própria dignidade no amor e no trabalho. No decurso das mais profundas crises econômicas, não por último aquela ligada à pandemia, o suicídio de empresários e de pessoas que perderam o seu trabalho e se viram sem futuro reflete dramaticamente essa simples verdade.
No entanto, o trabalho foi e ainda é um lugar de exploração do homem pelo homem, dor e cansaço, subtração e humilhação da própria dignidade. Quando isso ocorre? Quando o sacrifício de si exclui toda possível realização pessoal, quando a necessidade da sobrevivência impõe que se suporte um trabalho remunerado sem qualquer equidade. Nesses casos, o trabalho, em vez de dar sentido à vida, despoja-a de todo sentido possível. Não é mais o lugar eletivo da humanização da vida, mas, como já escrevia o jovem Marx, expressão da sua degradação à vida animal, de sua alienação irreversível.
No nosso tempo, ao lado dessa dimensão alienada do trabalho, encontramos, porém, outra transfiguração inquietante. É o que ocorre quando o trabalho se torna uma verdadeira idolatria, quando ele assume as características de uma paixão desordenada, voltada não tanto ao exercício da sua atividade, mas ao lucro que ela permite alcançar.
Trabalhar, em outras palavras, não tem mais um valor em si mesmo, mas apenas por aquilo que permite realizar em termos de lucro. Nesses casos, o trabalho pode assumir a forma de uma paradoxal dependência patológica. De fato, não existe trabalho humano que não implique a necessidade da parada, da pausa, do intervalo.
O Deus da Torá também mostra a necessidade de renunciar ao seu próprio poder – à sua própria força criadora – dedicando um dia inteiro ao seu repouso. Assim, ele pretende alertar o ser humano sobre a tentação de fazer do trabalho uma espécie de divindade pagã, de transformar a dedicação ao próprio trabalho em uma verdadeira idolatria.
Não há dúvida de que essa é uma característica relevante do nosso tempo. Trata-se de uma nova religião. Enquanto historicamente a ética do trabalho encontrava a sua matriz – como indicou Weber – na cultura protestante (ascetismo, renúncia, dedicação, senso de dever, vocação), no nosso tempo essa dimensão ética do trabalho parece ter sofrido uma deformação fundamental.
A paixão pelo trabalho parece estar subordinada à do alcance de um sucesso individual rápido. O rigor protestante do trabalho como vocação cedeu lugar à avidez pulsional do consumo. A tendência à conservação e à retenção – à poupança e à acumulação – se reverteu em um impulso ao gozo imediato.
O hiperativismo contemporâneo intoxica o trabalho, submetendo-o ao estresse de uma disputa perpétua.
Mas, como bem sabemos, a paixão pelo lucro não conhece limites. A arrogância que leva os seres humanos a se tornarem senhores da terra envenena o mundo. É a nossa maior loucura. Não é por acaso que, na sua pregação, Jesus convida os seres humanos a assumirem como seus próprios senhores os pássaros dos céus e os lírios do campo. O que eles nos ensinam? A depor a expectativa em relação ao amanhã, a viver no hoje, no agora, a não perseguir em vão aquilo que nos falta, a amar, como diria Agostinho, aquilo que se tem.
É um dos ensinamentos da pandemia que não deveríamos esquecer tão rapidamente: distinguir o essencial para a nossa vida do não essencial. É um fato que não escapa aos psicanalistas: as vidas imersas na fúria produtivista do nosso tempo se lamentam, todas, de uma perpétua insatisfação e de uma perda vertical do sentido.
Até a Escola foi atingida por essa má ideologia da hiperatividade: só tem valor o que é produtivo. A hegemonia do modelo “empresa” deturpou a sua vocação mais profunda. A linguagem empresarial degradou o seu léxico, abalou os seus procedimentos, intoxicou a vida da sua comunidade.
Torna-se cada vez mais difícil pensar na Escola como a possibilidade de um tempo não colonizado pela necessidade produtiva. Em vez disso, deveria ser precisamente a Escola a preservar a possibilidade de um tempo fecundo a partir da sua improdutividade. Dedicar uma tarde à leitura de uma poesia, considerando-se isso a partir do ponto de vista econômico, parece ser um desperdício de tempo.
É o que um renomado empresário repreende continuamente aos nossos jovens: o estudo absolutamente não é necessário para o trabalho. Mas é precisamente a partir desse uso improdutivo do tempo – do qual a Escola deveria ser a guardiã – que poderíamos tirar uma lição fundamental: a formação não deve ser uma ginástica curvada à lógica do sucesso individual, a uma disputa de todos contra todos, mas um tempo no qual se aprende coletivamente a dar um sentido singular à própria existência.
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Quando o trabalho se transfigura em divindade pagã. Artigo de Massimo Recalcati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU