A psicologia do ditador. Artigo de Massimo Recalcati

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26 Abril 2022

 

"Enquanto nos sistemas democráticos a Verdade dá origem a infinitas disputas interpretativas, nos regimes ditatoriais a Verdade é sempre e apenas uma: aquela imposta pela propaganda do regime". 

 

A análise é de Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado por La Repubblica, 25-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

 

Eis o artigo. 

 

Todo ditador observa a história de cima; mesmo o cenário hediondo da guerra é sempre percebido à distância. Os pontinhos anônimos que sinalizam a morte de crianças e civis indefesos, como os de combatentes, aparecem para ele apenas como elementos secundários do quadro. Às vezes, um claro distúrbio à própria imagem. Então a máquina de propaganda é mobilizada para obscurecer a verdade. O olhar de todo ditador perpassa as vidas humanas como se estas não contassem nada.

 

De fato, o culto da personalidade nunca é lateral às ditaduras, mas revela sua essência mais própria.

 

Todo ditador é prisioneiro do espelho: a única imagem que importa é a sua. O poder militar ou econômico podem prolongar essa autoimagem onipotente de si. A dúvida, a incerteza, a crítica não pertencem ao léxico do ditador. A autocracia da própria enunciação exige que sua palavra esteja sempre certa. Daí a extrema intolerância à dimensão plural e necessariamente democrática da palavra. Por isso, quando o ditador se dirige aos seus colaboradores, nunca o faz para estabelecer um diálogo, mas apenas para impor seu ponto de vista. Sua palavra não estabelece uma dialética, mas um comando. A destruição sistemática do dissenso reflete essa lógica: o ditador não pretende representar a Lei porque ele é a Lei.

 

É o caráter profundamente religioso de qualquer regime totalitário. É o que anima o consenso popular em relação às ditaduras. A divinização do líder oferece, de fato, ao seu povo uma proteção e uma identidade irretocáveis. Por isso, a democracia é julgada como um sistema político corrupto em seus fundamentos, porque entrega o povo ao estrago de um enfraquecimento, com consequências sempre incertas e ameaçadoras, da Verdade. A democracia que se institui estruturalmente no princípio da instabilidade - permutação, pluralismo, negociação, articulação institucional - é, aos olhos do ditador, a encarnação de uma doença mortal. Sua corrupção é o câncer contra o qual o regime deve se imunizar. No caso de Putin, essa imunização, não por acaso, encontra um de seus aliados mais poderosos no poder religioso da Igreja Ortodoxa de Moscou.

 

A rejeição da democracia coincide assim com a rejeição da degeneração moral que o Ocidente inevitavelmente comporta. Por esta razão, o impulso para a conservação define toda ditadura como tal. Mas a conservação é em primeiro lugar a conservação do próprio poder. A única coisa que importa é o cumprimento da missão para a qual todo ditador se sente votado pela história. No caso específico de Putin, a afirmação da Rússia como potência imperial.

 

Esta ideia domina todas as outras realidades, incluindo, é claro, aquela da atrocidade da guerra. Sua fantasia de celebrar o aniversário de 9 de maio na cidade mártir de Mariupol revela plenamente a mitologia pessoal de cada ditador. A cidade arrasada será habilmente ocultada pelos cenógrafos do regime ou será alardeada propagandisticamente como um exemplo da violência terrorista nazista do batalhão Azov finalmente neutralizado pelas tropas de libertação russas? A guerra de todo ditador deve ser concebida por seu povo como uma guerra justa. E a vitória deve ser oferecida ao povo como a vitória da Verdade sobre a mentira. De fato, enquanto nos sistemas democráticos a Verdade dá origem a infinitas disputas interpretativas, nos regimes ditatoriais a Verdade é sempre e apenas uma: aquela imposta pela propaganda do regime.

 

Essa versão unívoca da Verdade é a metafísica implícita que acompanha toda ditadura. Ela extrai sua força de uma vocação profundamente paranoica: o sentimento de cerco e de ameaça pairando sobre a vida e o sistema de poder é prerrogativa de todo ditador.

 

A necessidade de preservar o próprio poder comporta o desejo de ler o perigo de ser destronado em todo lugar. Ser diretor e ator principal ao mesmo tempo implica que nas fileiras dos figurantes, como naquela dos múltiplos inimigos, sempre possa se esconder um traidor pronto a querer a morte de seu mestre.

 

Por essa razão, sua violência tende a assumir as formas ideológicas de uma atitude defensiva. O verme da democracia, se não for extirpado a tempo, pode de fato gerar o apodrecimento do sistema.

 

O que o ditador teme mais do que qualquer outra coisa é que a apreensão da palavra e da Verdade possa ter um fim.

 

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