“O Papa Francisco está muito doente”: a fake news da direita católica para desacreditar Bergoglio

(Foto: Reprodução | Vatican News)

20 Mai 2022

 

Todas as desculpas são boas quando existem preconceitos. Mas por que eles existem? Porque, diz-se, o Papa Francisco é progressista demais, é “aperturista” na teologia e na moral (especialmente em relação ao matrimônio e à família).

 

O comentário é de Fabrizio Mastrofini, jornalista e ensaísta especializado em questões éticas, políticas, religiosas. Ele vive e trabalha em Roma. Entre outros, publicou “Geopolitica della Chiesa cattolica” [Geopolítica da Igreja Católica] (Laterza, 2006), “Ratzinger per non credenti” [Ratzinger para não crentes] (Laterza, 2007), “Preti sul lettino” [Padres no divã] (Giunti, 2010), “Sette regole per una parrocchia felice” [Sete regras para uma paróquia feliz] (Edb, 2016).

 

O texto foi publicado em Il Riformista, 19-05-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

E lá vamos nós mais uma vez com os rumores sobre o Papa Francisco: ele está muito doente, está doente demais. Acima de tudo, a acusação é de que ele tem a intenção de convocar em breve um consistório para nomear cardeais e pilotar “remotamente” a eleição do seu sucessor. Tudo balela. É possível dizer que é tudo balela, bobagem?

 

Enquanto isso, enquanto circulam as notícias sobre a sua saúde enferma, o Vaticano anunciou a viagem ao Canadá no fim de julho, um trajeto que não é exatamente leve para um pontífice de 85 anos. Mas as desmentidas trazidas pelos fatos não servem para nada diante da manipulação dos próprios fatos.

 

Há até um grupo (não cito nomes para não fazer propaganda) que inventou uma revista dedicada aos cardeais. Porque – dizem – os cardeais não se conhecem entre si e, portanto, como poderão escolher o próximo papa? Então, surge uma revista em diversas línguas, que pode ser folheada no site construído especialmente para isso.

 

A ideia em si é até interessante. Uma pena que o segundo número, o último a ser publicado, traz na capa uma entrevista com ninguém menos do que o cardeal Camillo Ruini, de 91 anos. Que, afinal, todos conhecem. E, nas páginas internas, outra entrevista com o cardeal Brandmüller, conhecido por pertencer ao grupo que assinou os dubia, isto é, as perguntas sobre a ortodoxia da exortação apostólica Amoris laetitia de 2016 sobre o matrimônio e a família.

 

Em suma, a revista é uma operação antipapal muito evidente, que tem margens de manobra, porque o Papa Francisco não lida com os seus críticos. Mas talvez ele esteja equivocado em relação a isso...

 

É preciso analisar, entre todas, a curiosa acusação contra o papa de nomear cardeais demais e de querer pilotar o próximo conclave. Aqui se entende a falta de fundamento e o preconceito em relação ao Papa Francisco. Se ele nomeia cardeais, está pilotando o próximo conclave; se não os nomeia, o que acontece?

 

Além disso, os cardeais envelhecem e, depois dos 80 anos, saem do grupo dos eleitores. Não devem ser substituídos? Deveriam ser 120 os eleitores, mas João Paulo II em alguns momentos nomeou muitos mais. Naquele caso estava tudo bem?

 

Todas as desculpas são boas quando existem preconceitos. Mas por que eles existem? Porque, diz-se, o Papa Francisco é progressista demais, é “aperturista” na teologia e na moral (especialmente em relação ao matrimônio e à família).

 

E aqui é possível captar a falta de fundamento das críticas. Um cardeal progressista é uma contradição em termos: no caso específico de Jorge Mario Bergoglio, estamos falando de um padre de uma geração que se formou antes do Concílio Vaticano II. Para outros cardeais mais jovens (mas sempre com mais de 60 anos...), estamos falando de uma geração que viveu depois do Concílio. Não se trata de ideias revolucionárias, mas de um Concílio que terminou em 1965, que deu início a uma reforma dos estudos e das modalidades para se tornar padre apenas a partir dos anos 1970 e 1980.

 

O Papa Francisco não diz nada particularmente novo em teologia, na realidade. Nova, no máximo, é a modalidade com a qual ele enfrenta os problemas. Na verdade, não é nova, mas diferente do habitual.

 

No documento Veritatis gaudium em que define as diretrizes de ensino das universidades e faculdades católicas, ele se expressa a favor de um tipo de estudo que seja conscientemente “interdisciplinar” e “transdisciplinar”. Uma abordagem inteligente, dada a necessidade de acabar com a superespecialização dos saberes e de pôr a teologia em diálogo com todas as disciplinas.

 

O que há de revolucionário? No máximo, a Igreja deve recuperar um certo atraso. Na exortação apostólica Evangelii gaudium, de 2013, indica as linhas mestras do pontificado que depois seriam desdobradas nos discursos, nas homilias, nas viagens, na abordagem pastoral e de governo. As palavras-chave: “Igreja em saída”, para indicar a nova evangelização e as características que ela deve ter para ser eficaz, inclusiva, respondente às necessidades das pessoas; as indicações de uma Igreja pobre para os pobres; uma lista dos riscos e das tentações a serem evitados para não transformar a atividade eclesial em um apoio para os poderes do mundo.

 

O papa delineia as características do anúncio evangélico e do envolvimento com os pobres, com a enucleação de alguns princípios: o tempo é superior ao espaço, a unidade prevalece sobre o conflito, a realidade é mais importante do que a ideia, o todo é superior à parte.

 

São temas que as ciências humanas vêm mastigando há décadas, enquanto a Igreja se assoma agora à reflexão inter e transdisciplinar, porque, diante dos problemas, é necessária uma atitude nova. Aqui, com efeito, está o verdadeiro ponto de fusão.

 

A pergunta certa é: por que a teologia está atrasada em relação à compreensão do mundo e às respostas a serem dadas à necessidade de sentido das pessoas? Porque, com João Paulo II como papa e com o cardeal Joseph Ratzinger como prefeito da Doutrina da Fé, prevaleceu uma abordagem de fechamento.

 

O prefeito condenou e silenciou os melhores teólogos dos anos 1980 e 1990, empenhados em um diálogo e uma reflexão de fronteira com as culturas e as religiões. O papa, que apoiava plenamente o cardeal, publicou, entre outras, uma encíclica intitulada Fides et ratio e outra intitulada Veritatis splendor para argumentar uma ideia precisa: a teologia deve seguir o Magistério. Matando, de fato, a liberdade de pesquisa em teologia, introduzindo a “missio”, isto é, a aprovação do bispo para os teólogos docentes nas faculdades e universidades católicas.

 

Adeus, liberdade de pesquisa, se as suas teses e as suas pesquisas puderem lhe valer a expulsão do ensino ou a excomunhão, como no caso de um teólogo cingalês pioneiro no diálogo com o mundo do Oriente. A crise da teologia do século XX nasce a partir daqui. Do fato de ter sido forçada a se livrar dos temas candentes da contemporaneidade. E reconectar-se é difícil, apesar da força motriz do Papa Francisco.

 

No entanto, algo está acontecendo. Embora com grande lentidão e com diversas contradições (episcopados que ficam parados e não seguem o papa, falta de verdadeiras sinergias e discussões livres que levem a alguns resultados), vemos algumas frestas.

 

Por exemplo, a encíclica Fratelli tutti moveu um grupo de teólogos coordenados pela Pontifícia Academia para a Vida, que produziram um apelo para levar a sério a fraternidade universal e renovar a teologia. Aqui também quem não grita o escândalo faz de tudo para colocar o silenciador em iniciativas válidas, fingindo não ver que o mundo já mudou dramaticamente com a “terceira guerra mundial em pedaços”, com a pandemia, com o conflito na Europa.

 

Algumas frestas também se abrem nos Estados Unidos, onde algumas teólogas e teólogos trabalham para colocar no centro da reflexão a ética (que no mundo católico é chamada de teologia moral), cruzando-a com a doutrina social da Igreja, na consciência de que aqui estão os temas pregnantes do futuro.

 

E mesmo quando o Papa Francisco enfatiza a importância de uma abordagem que se chama Bioética Global (uma única vida para viver, um único planeta e, portanto, respeito absoluto pelo ambiente e a possibilidade de crescimento econômico, social e cultural para todos os seres humanos, contra toda visão utilitarista, soberanista, liberalista...), na realidade, ele introduz no debate católico temas já presentes há algum tempo no mundo secular, na tentativa de religar os fios do diálogo entre Igreja e sociedade.

 

Então, tudo bem? O novo avança, ainda que com dificuldade? Não exatamente, falta uma peça importante. Se o Papa Francisco diz que para ele é crucial “iniciar processos” de mudança, seria útil ter “procedimentos” de implementação e um verdadeiro diálogo, para criar consenso e participação em torno dos “processos de mudança”.

 

É um aspecto que está faltando e poderia derrubar todas as expectativas em torno de um pontificado denso de estímulos e impulsos de reflexão.

 

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