16 Março 2022
"O autor aborda temas delicados e espinhosos, como os escândalos vividos pela Igreja durante o papado de Bento XVI e os motivos que o fizeram renunciar", escreve Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul e mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), ao comentar o livro Bento XVI: a vida, de Peter Seewald (Paulus, 2021, 1476 p.).
“A história julgará a importância que será atribuída a Bento XVI e à sua obra no futuro. Certamente ele não fez tudo certo, mas admitiu os erros, mesmo aqueles, como no escândalo Williamson, que ele não pôde evitar. Ao revivificar a doutrina, o pontífice alemão é um renovador da fé que construiu a ponte para a vinda do novo – não importa que aparência tenha. ‘Seu espírito’, disso já está convencido seu sucessor no múnus de São Pedro, aparecerá sempre maior e mais poderoso de geração em geração” (p. 1445). Com esta apreciação e com este balanço o jornalista e escritor alemão Peter Seewald entende como o biografado entrará para a história.
O referido autor é conterrâneo de Ratzinger e um profundo conhecedor da vida e da obra de Bento XVI. Acompanhou Ratzinger por longa data. Ao longo de sua carreira, consolidou-se como um dos escritores mais próximos ao Papa Bento XVI, entrevistando-o por horas incontáveis. Seewald conta que seu primeiro encontro com Joseph Ratzinger se deu em novembro de 1991 e “no decurso dos anos subsequentes, provavelmente fiz cerca de duas mil perguntas, talvez mais, ao cardeal, ao papa, ao emérito” (p. 17). Portanto, ao “longo de mais de 25 anos de proximidade, o autor estabeleceu relações próximas com Bento XVI” (p. 10).
Essas entrevistas deram origem a quatro livros, o primeiro dos quais foi publicado em 1996, sob o título de O sal da terra. Este traz “elementos biográficos do purpurado alemão” (p. 10). Em 2000, veio a lume Deus e o mundo – “mais propriamente teológico; nele são tratadas as virtudes teólogas, além da visão de Deus e de Jesus, do homem e do mundo, e, é claro, da Igreja” (p. 10); em 2010, Luz do mundo – “contendo uma análise dos desafios mais prementes no período do seu ministério petrino. Articula-se em três grandes blocos temáticos: o futuro da Igreja – os caminhos vislumbrados pelo papa alemão para sua renovação -, o próprio pontificado e a consumação da história, como o retorno de Jesus Cristo” (p. 10), em 2016, O último testamento, no qual o Papa emérito faz um balanço de seu pontificado e aborda temas como sua renúncia e o pontificado de seu sucessor, “revisitando mais uma vez a vida daquele que o Senhor quis como sucessor de Pedro, profundamente marcada pelos caminhos da teologia do século XX” (p. 10).
Agora, lança a volumosa e detalhada obra: Bento XVI: a vida (Paulus, 2021, 1476 p.). Trata-se de uma biografia completa e atualizada do primeiro papa do terceiro milênio, divididas em dois volumes: o primeiro volume (p. 1-880) trata da juventude na Alemanha nazista ao ensino universitário; por sua vez, o segundo volume (p. 881-1476) aborda a sua atuação como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé a papa emérito.
Capa do box dos livros (Foto: Divulgação)
A obra que trata da vida de Bento XVI e não de sua teologia está estruturada em seis partes com setenta e quatro capítulos. Mais especificamente, o primeiro volume:
1) a primeira parte intitulada O jovem (p. 25-194) é composta onze capítulos: 1) Sábado Santo (p. 27-35), 2) O impedimento (p. 37-46), 3) A terra dos sonhos (p. 47-60), 4) 1933, “Ano Santo” (p. 61-71), 5) Os “cristãos alemães” (p. 73-85), 6) Com ardente preocupação (p. 87-105), 7) A calmaria antes da tempestade (p. 107-120), 8) O Seminário (p. 121-142), 9) Guerra (p. 143-157), 10) Resistência (p. 159-175), 11) O fim (p. 177-194);
2) a segunda parte tem como título: O Mestrado (p. 195-439), e, comporta os capítulos 12 a 24: 12) Hora zero (p. 197-212), 13) O monte dos eruditos (p. 213-228), 14) Culpa e expiação (p. 229-240), 15) Revolução do Pensamento (p. 241-261), 16) O jogo das contas de vidro (p. 263-278), 17) Santo Agostinho (p. 279-296), 18) Impetuosidade (p. 297-323), 19) A leitura-chave (p. 325-346), 20) As Ordens Maiores (p. 347-360), 21) O Capelão (p. 361-379), 22) O exame (p. 381-400), 23) À beira do abismo (p. 401-421), 24) Os novos pagãos e a Igreja (p. 423-439).
3) a terceira parte - Concílio (p. 441-657) agrupa os capítulos 25 a 36: 25) Nasce uma estrela (p. 443-460), 26) Rede de comunicação (p. 461-476), 27) Concílio (p. 447-490), 28) Começa a luta (p. 491-507), 29) O Discurso de Gênova (p. 509-526), 30) O Assessor (p. 527-542), 31) Mundo prestes a ruir (p. 543-556), 32) Sete dias que mudaram a Igreja católica para sempre (p. 557-577), 33) Onda alemã (p. 579-599), 34) Fontes de vigor (p. 601-617), 35) Na escola do Espírito Santo (p. 619-635), 36) O legado (p. 637-657).
4) a quarta parte – O Professor (p. 659-868), congrega os capítulos 37 a 49: 37) Tubinga (p. 661-673), 380 Profundamente chocados (p. 675-688), 39) 1968 e a lenda da guinada (p. 689-705), 40) A crise católica (p. 707-722), 41) Recomeço (p. 723-735), 42) Tensões (p. 737-750), 43) A visão da Igreja do futuro (p. 751-766), 44) Reconquista (p. 767-782), 45) A Doutrina da vida eterna (p. 783-799), 46) O ministério (p. 801-817), 47) O ano dos três papas (p. 819-833), 48) O caso Küng (p. 835-849), 49) O legado de Munique (p. 851-868).
O segundo volume agrupa a quinta e a sexta parte, a saber:
5) a quinta parte – Roma (p. 879-1076), traz os capítulos 50 a 59: 50) O Prefeito (p. 881-896), 51) O relatório de Ratzinger (p. 897- 914), 52) Luta em torno da Teologia da Libertação (p. 915-930), 53) Trabalho em equipe (p. 931-946), 54) O colapso (p. 947-969), 55) O longo sofrimento de Karol Wojtyla (p. 971-989), 56) Millennium (p. 991-1011), 57) Agonia (p. 1013-1036), 58) Conclave (p. 1037-1057), 59) Habemus Papum (p. 1059-1076).
6) a sexta parte – Pontífice (p. 1077-1426), é composta dos capítulos 60 a 74: 60) O primeiro Papa do Terceiro Milênio (p. 1079-1096), 61) No lugar do pescador (p. 1097-1117), 62) A febre de Bento (p. 1119-1136), 63) O discurso de Ratisbona (p. 1137-1160), 64) Deus Caritas Est (p. 1161-1176), 65) Sal da Terra, luz do mundo (p. 1177-1200), 66) A ruptura (p. 1201-1235), 67) A crise do preservativo (p. 1237-1258), 68) O escândalo dos abusos (p. 1259-1284), 69) O Pastor (p. 1285-1300), 70) A ecologia do ser humano (p. 1301-1316), 71) Desmundanização (p. 1317-1337), 72) A traição (p. 1339-1362), 73) A renúncia (p. 1363-1358), 74) O começo de uma nova era (p. 1387-1426).
Esta segunda parte traz nas partes finais: O Epílogo (p. 1427 a 1445 ) – Papa Emeritus e as últimas perguntas ao papa emérito (p. 1447-1456). Neste último quesito Seewald observa que “grande parte das respostas, porém, o papa emérito ficou a dever. Com efeito, 'o que o senhor pergunta naturalmente levaria muito longe dentro da situação atual da Igreja', explicou ele em uma carta de acompanhamento do dia 12 de novembro de 2018. A resposta 'inevitavelmente representaria uma intromissão na obra do papa atual. Tudo o que fosse nessa direção, tive de evitar e quero continuar assim'" (p. 1447).
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Que é esse homem, realmente? É valida a tese de Seewald quando diz que “o mundo fica profundamente dividido quando se trata de compreender e classificar Bento XVI. Considerado um dos pensadores mais perspicazes de nossa época, permaneceu, ao mesmo tempo, uma figura controversa” (p. 18). No entanto, “o emérito Bento XVI jamais se tornou um papa das sombras, um papa paralelo ou um antipapa. Ao contrário, estava meticulosamente atento para não se tornar, em parte alguma, um obstáculo a seu sucessor. Ademais, nunca fez voto de silêncio. Suas últimas palavras como pontífice em exercício enfatizaram: ‘a partir das oito horas, já não sou papa, não sou mais o pastor supremo da Igreja católica... No entanto, gostaria de continuar trabalhando com meu coração, meu amor, minha oração, meu pensamento, com todas as minhas forças espirituais para o bem comum, para o bem da Igreja e da humanidade’” (p. 17).
De Ratzinger a Bento XVI... Não há como desligar a figura e a atuação de Bento XVI do Cardeal Joseph Ratzinger como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. O nível de detalhamento impressiona: “à objetividade com que Seewald expõe o resultado de sua pesquisa, ele acrescenta qualidade narrativa envolvente” (p. 11). Detalhes que permitirão ao leitor mergulhar no universo cultural, familiar e eclesial de Ratzinger, revelando uma pessoa mansa e perspicaz por trás da celebridade eclesiástica. Em suma, estas páginas apresentam o papa emérito Bento XVI como um menino bávaro, tímido, intensamente católico, amante de gatos e de música, crescido na Alemanha nazista, que se tornou um pensador acadêmico de primeira classe e, então, contra sua própria, sucessivamente arcebispo de Munique, defensor da doutrina da Igreja no Vaticano e, finalmente, Papa, que renunciou em 2013, bem como a sua rotina atualmente, como Papa emérito: “o relato dos anos de infância do futuro pontífice, o período de formação, de ensino universitário, de colaboração no Concílio Vaticano II, é enriquecido com informações de difícil acesso. Informações pessoais de difícil acesso. Informações pessoais sobre momentos de grande importância, como o da eleição pontifícia e da renúncia ao exercício do pontificado, não seriam acessíveis de outro modo” (p. 11).
Ratzinger/Bento XVI nem sempre teve uma boa reputação e nenhum outro líder católico foi tão exposto a ataques hostis como Ratzinger. Seu pontificado sofreu com a cobertura jornalística agressiva... Para além dos julgamentos: “Grande Inquisitor” e “incorrigível cardeal blindado”, um “ditador”, uma “quássia”, uma “árvore amarga, seca e fria”, Seewald mostra nesta biografia porque Ratzinger/Bento XVI é um pensador moderno e o pensamento moderno é a sua marca registrada, declaração esta que para muitos pode parecer uma provocação.
Seewald salienta que Ratzinger, ao contrário de muitos outros teólogos, sempre trabalhou com base nos ensinamentos da Igreja, que não queria reconstruir ou descartar, mas desenvolver no bom sentido; por isso, com sua teologia, abriu novas portas. Será por isso lembrado como alguém incômodo, mas também como alguém cujas afirmações correspondem fielmente à doutrina católica. Suas análises não dependiam da corrente majoritária, mas surgiram do pensamento crítico, mesmo ao custo de sua popularidade. Ele sempre se manteve fiel ao pensamento orientado pela razão e moldado pelos ensinamentos da Igreja: “como papa de uma época de transição, Bento XVI é tanto o final do antigo quanto o começo de algo novo, um construtor de pontes entre os mundos. Ele mostra que a religião e a razão não são antagônicas. Que justamente a razão é responsável por evitar que a religião resvale para loucas fantasias e fanatismos. Ele cativa com seu jeito nobre, seu elevado espírito, a honestidade da análise e a profundidade e a beleza de suas palavras. Junto dele, todo mundo sabe que o que ele anuncia talvez seja incômodo, mas corresponde fidedignamente ao ensinamento do Evangelho, à continuidade com os Padres da Igreja e às reformas do Concílio Vaticano II – aliado ao conselho de não apenas de entreter-se com exterioridades, mas de conceder-se o olhar mais profundo sobre a natureza das coisas, sobre o essencial da vida e da fé” (p. 20). 889988
Frente a isso, “não é preciso concordar com todos os seus posicionamentos. Contudo, indubitavelmente, pode-se dizer que Joseph Ratzinger é não apenas um importante estudioso, presumivelmente o maior de todos os teólogos que alguma vez sentou na cátedra de Pedro, mas também um mestre espiritual que convence por sua sinceridade e autenticidade. Suas orientações em nada perderam em atualidade, muito pelo contrário. ‘Um grande papa’, assim o avalia seu sucessor, ‘grande por causa do vigor e da capacidade de penetração de sua inteligência; grande por causa de seu amor pela Igreja e pela humanidade’. E, não menos importante, ‘grande por causa de suas virtudes e de sua fé’” (p. 21).
Competente no campo da teologia com uma sólida reflexão teológica/rigoroso nas análises, mas com grandes dificuldades e incertezas na condução estratégica de seu pontificado? Intransigente na defesa da fé e doutrina, mas hesitante na lida eclesial interna e no campo dialogal mais amplo? Crise de credibilidade e projeto restauracionista da Igreja... Conflitos com a Teologia da Libertação e relacionamento com os bispos lefebvristas/ lefebvrianos: não ao acordo como Vaticano... a Comunhão na Igreja e Dominus Iesu... Discurso em Resensburg... Caso Williamson... Caso Wagner na Áustria... Vatileaks... Casos de abusos na Igreja... Complô contra Bento XVI...
O autor aborda temas delicados e espinhosos, como os escândalos vividos pela Igreja durante o papado de Bento XVI e os motivos que o fizeram renunciar. Seewald ressalta que Bento XVI sempre esteve disposto a mudar as coisas que ninguém se atreveu a fazer antes, e isso é demonstrado, sobretudo pela sua renúncia, em 2013, ao cargo “por razões de idade”, com a qual revolucionou o papado. Sua renúncia foi resultado de seu pensamento racional e da tomada de decisões feita em oração: “acontecimentos mais significativos recebem atenção especial. Além da busca pela objetividade da informação, o autor exprime também sua opinião. E ela nem sempre é laudatória. Por exemplo, sua opinião sobre a capacidade de governo do biografado e sobre sua dificuldade no enfrentamento de conflitos é exposta sem rodeios” (p. 11).
“Jamais uma única pessoa mudou tanto o papado de um dia para o outro como ele” (p. 18). Assim sendo, a história tem que fazer este julgamento. Talvez se possa limpar sua imagem das muitas distorções que, publicamente, o pintaram como um partidário linha-dura, o que na realidade nunca foi, tendo-se em conta que “só se conhece uma figura como Ratzinger mergulhando no entremeado de fios humanos, teológicos, eclesiais que compõem a tessiturada vida de um homem que tanto marcou o século XX. Mas a conclusão de Seewald, a partir de seus diálogos com o purpurado alemão, é ainda mais bela: ‘pode ser mais vantajoso contemplar os vitrais de uma igreja do lado de dentro, pois assim estão iluminados’. Igualmente, há mais luz na vida de Ratzinger/Bento XVI quando vista de dentro, sem simplificações ou enquadramentos pré-estabelecidos” (p. 12).
A amplíssima biografia de Bento XVI escrita por Seewald “oferece uma imagem viva de Bento XVI”, contribuindo para “honrar a história de grandes personagens” (p. 9), favorecendo, ainda, um “conhecimento de Bento XVI que supera clichês tão propositalmente criados quanto tão frequentemente alimentados” (p. 12), “o desenrolar da história permite conhecer melhor seus atores, confere perspectiva para destacar o que importa, separando-o de percepções e interpretações demasiado condicionadas pelo imediato” (p. 9). “Uma biografia que se pode considerar, sob vários aspectos, definitiva” (p. 11) e “seu espírito (...) aparecerá sempre maior e mais poderoso de geração em geração” (p. 1445).
Daí a relevância desta obra. Cumpre a tarefa de “servir ao conhecimento objetivo deste homem, dados os postos que ele ocupou no serviço à Igreja” (p. 12). E, ainda mais, é um serviço “ao conhecimento da história recente da própria Igreja” (p. 12). A leitura desta obra será de grande ajuda neste sentido e mesmo para um leitor não familiarizado com Ratzinger/Bento XVI a leitura se mostra interessante.
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Bento XVI: a vida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU