25 Junho 2021
"Uma fria análise política leva a apenas um resultado. A insistência por parte dos promotores da lei na intransigência em formulações controversas e totalmente inúteis aos fins de combater a homofobia e a transfobia terá um único resultado: empurrar partes do mundo católico para os braços de Salvini e Meloni. Não acho que seja disso que a Itália precisa", escreve Marco Politi, jornalista, ensaísta italiano e vaticanista, em artigo publicado por Il Fatto Quotidiano, 24-06-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Mario Draghi delineou o perímetro formal, a liberdade do Parlamento, a laicidade do estado, mas os nós essenciais do caso continuam existindo. Que ninguém pense em comparar o pastiche criado em torno do projeto de lei Zan com as grandes batalhas pelos direitos civis da década de 1970. Naquela época, a linha de limite era clara entre aqueles que queriam defender as leis sobre divórcio e aborto e aqueles que queriam eliminá-las. Então, o melhor da cultura leiga e católica marchavam lado a lado lutando contra a frente clerical-fascista. Na época, uma grande massa de pessoas se opôs à tentativa do Vaticano e da CEI de impor sua própria visão conservadora e repressiva da religião à sociedade italiana.
Hoje o quadro é diferente. O projeto de lei Zan atolou e provocou a desagradável intervenção do Vaticano por motivos de fragilidade interna. Pela sobreposição do objetivo muito correto de atingir a homofobia e a transfobia com a tentativa de impor uma doutrina - a chamada teoria de gênero - como uma ideologia de Estado.
Os programas de entrevistas nesta temporada não ajudam a esclarecer nada. Eles repropõem de forma monótona quem é totalmente a favor e quem é totalmente contra o projeto. Nunca se dá espaço a outro componente do pensamento, que também tem suas raízes no secularismo e na reflexão sobre o feminismo e a homossexualidade. Por que personalidades como Cristina Gramolini, Cristina Comencini, Aurelio Mancuso são deixadas na sombra?
O projeto de lei Zan não pode se tornar um fetiche. Não está claro por que é censurada a posição de quem quer uma lei que combata a violência e o incitamento à violência contra homossexuais e transexuais, mas pede uma formulação diferente do texto legislativo. Votamos aos milhões para impedir que a vida familiar e a procriação fossem submetidas à ditadura de uma doutrina religiosa e não o fizemos para nos submeter a uma ideologia de Estado.
Na minha opinião, não se trata apenas de proteger inequivocamente a liberdade de expressão. O cerne do emaranhado político que se criou para mim consiste na formulação do artigo 1, onde afirma que "... por identidade de gênero entende-se a identificação percebida e manifestada de si em relação ao gênero, mesmo que não corresponda ao sexo, independentemente de ter completado um percurso de transição". Este é o ponto em discussão. A pretensão do projeto de lei de estabelecer que a identidade de gênero - para além de seu conteúdo social e biológico - seja totalmente confiada a uma manifestação subjetiva. De forma que, a complexa relação entre o corpo e a psique de uma pessoa e seu sexo é deixada para a pura arbitrariedade do indivíduo e para a relativização do momento.
Não somente. Essa "identificação percebida" traz consigo uma obsessiva categorização das identidades e das tutelas. A livre escolha de sua forma de vivenciar a sexualidade não é exaltada - como deseja transversalmente uma grande massa de cidadãos - mas se aplica um código de barras a cada um. Gay, lésbica, trans, queer, transgênero, cisgênero. E as “categorias” não param de crescer, listando quem não se interessa por sexo ou quem passa de uma identidade para outra.
Num lúcido artigo da revista MicroMega Cinzia Sciuto exclamava com razão “Cisgender é você!”, explicando que uma coisa é dizer que o gênero é também uma construção sociocultural, outra coisa é dizer que seja um fato totalmente irrelevante. Mais ainda. Se é estereotipado o conceito tradicional de que homens ou mulheres se comportam de determinada maneira por causa de seu sexo, ainda mais estereotipada arisca-se a ser a categorização das “percepções” de gênero. Esta é a razão pela qual uma parte do feminismo rejeita algumas passagens do projeto de lei Zan. E é por isso que, sem entrar no vespeiro de argumentações sociais, psicológicas, culturais, filosóficas, seria melhor se a lei da homofobia e da transfobia acertasse simplesmente todo ataque à "livre orientação sexual".
Há uma segunda observação a fazer, em minha opinião. Totalmente política. Nos anos das grandes batalhas pelos direitos civis, o Vaticano e o episcopado estavam de um lado, o sentimento laico da sociedade italiana estava do outro. Hoje a situação é completamente diferente. Francisco é o primeiro pontífice que claramente tomou o partido do pleno respeito pela orientação sexual do indivíduo. "Quem sou eu para julgar um homossexual ...?", exclamou ele desde o início. Francisco recebeu publicamente casais homossexuais. Recebeu no Vaticano um trans espanhol com sua noiva e seu bispo para enfatizar a sua dignidade. Declarou explicitamente que as pessoas homossexuais têm o direito de viver em uma família.
A CEI, por sua vez, com o cardeal Bassetti, declarou que compartilhava a exigência de proteger da violência e das agressões as pessoas homossexuais e trans. Bassetti pediu unicamente uma remodulação do texto nos pontos mais controversos.
Como deixar de notar que isso foi - em comparação com as oposições frontais dos anos 1970 - um avanço histórico? Sabe-se que por essa atitude o presidente da CEI foi acusado nos bastidores pelos falcões conservadores de ser "brando demais".
Uma fria análise política leva a apenas um resultado. A insistência por parte dos promotores da lei na intransigência em formulações controversas e totalmente inúteis aos fins de combater a homofobia e a transfobia terá um único resultado: empurrar partes do mundo católico para os braços de Salvini e Meloni. Não acho que seja disso que a Itália precisa.
No dia 21 de julho de 2021, às 10h, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU realiza a conferência A Inclusão eclesial de casais do mesmo sexo. Reflexões em diálogo com experiências contemporâneas, a ser ministrada pelo MS Francis DeBernardo, da New Ways Ministry – EUA. A atividade integra o evento A Igreja e a união de pessoas do mesmo sexo. O Responsum em debate.
A Inclusão eclesial de casais do mesmo sexo. Reflexões em diálogo com experiências contemporâneas
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Itália, Vaticano e o Projeto de Lei Zan. “Para mim o ponto crucial consiste na sua formulação”. Artigo de Marco Politi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU