18 Junho 2021
O filósofo Gastón Soublette (Antofagasta, 1927) e candidato a Prêmio Nacional de Humanidades e Ciências Sociais 2021, em entrevista, fez uma avaliação da explosão social e do processo constituinte [chileno] como parte de uma mudança cultural mundial.
A reportagem-entrevista é de Marco Fajardo, publicada por El Mostrador, 17-06-2021. A tradução é do Cepat.
“É um tema no qual trabalhei há muito tempo. Esta é uma mudança cultural, em nível mundial. O que estamos vendo é essa mudança, mas dentro do território chileno. Mas é uma mudança que está atingindo o mundo todo”, expressou.
Para Soublette, essa mudança cultural é de longo alcance e está relacionada a um questionamento à civilização industrial, nascida no século XVIII. Nesse sentido, critica tanto o capitalismo como o comunismo como regimes autoritários e verticais, que prometeram o paraíso na terra, mas geraram sociedades onde se multiplica o mal-estar e na qual a maioria é infeliz. Um assunto que abordou em seu livro Manifiesto (2020).
O professor da Pontifícia Universidade Católica do Chile também abordou os quatro temas que – em sua avaliação – devem ser incluídos na nova Constituição: meio ambiente, patrimônio, educação e aposentadorias.
Soublette argumenta que a mudança cultural efetivada “torna a sociedade mais justa e igualitária”.
“Há uma rejeição ao antigo culto ao gênio e ao superdotado. Passamos muitos séculos prestando culto aos gênios. O homem comum de hoje já não se anima muito com isso. Anima-se mais com a justiça, com as relações humanas harmônicas, e está menos inclinado a admirar alguém que se destaca na sociedade por ser um gênio”, destaca.
O professor apresenta como exemplo Albert Einstein, que em seu momento foi considerado “o homem mais inteligente do século XX. Hoje, há uma visão muito crítica a Albert Einstein por ter sido o autor intelectual da bomba atômica”.
Uma figura central em sua visão é o líder indiano Mahatma Gandhi. “Eu diria que ele deu o impulso à mudança cultural do mundo, porque os valores que ele representa, de justiça, de harmonia social, de sociedade igualitária e participativa, até esse momento praticamente não existiam no mundo”.
“Nós tolerávamos uma democracia extremamente deficitária. Nós votávamos e saiam eleitos nossas autoridades e elas tinham planos pessoais de como governar o país, sem consultar e informar ninguém. Tudo isso mudou, eu diria que a partir da independência da Índia (1947)”, expõe.
“Como a Índia conquistou sua independência? Superando o domínio de um antigo império que hoje em dia não poderia mais ser tolerado, mas que foi tolerado por muito tempo, pois considerávamos que os ingleses tinham o direito de dirigir um país caótico, como pretendiam que era. Esse prestígio da Inglaterra hoje é intolerável. Naquela época, era um fato. Por isso, dizíamos que nós, chilenos, éramos os ingleses da América do Sul, dizendo que o inglês é um modelo insuperável de qualidade humana. Hoje, isso está no chão”, defende.
Para Soublette, por aí se nota como os valores foram mudando, a partir desse fato que foi exemplar na história do mundo: como este líder espiritual libertou seu povo de um domínio absoluto injusto, inexplicável, injustificável, mediante uma luta não violenta, respeitando as pessoas.
“Isso nunca tinha sido visto. Só aconteceu nas antigas comunidades cristãs depois de Jesus Cristo. Aí se notou a mesma atitude de amar os inimigos, de orar pelos inimigos, não considerar que o inimigo é um homem perverso, mas um irmão que se equivoca, e que nosso dever é fazê-lo ver onde erra. Tudo isso foi encarnado por Mahatma Gandhi. Ele inseriu esse vírus benéfico em todas as sociedades, em todos os países”.
Nesse sentido, em nível chileno, uma pessoa fundamental foi, em suas palavras, o padre Alberto Hurtado, sobretudo com o seu livro Es Chile un país católico?, ao questionar “a sociedade injusta em que vivemos, inclusive até hoje”.
Para Soublette, de fato, a explosão social do ano de 2019 é um momento em que são reconsiderados “todos esses valores que eram representados por pessoas como o padre Alberto Hurtado, no Chile, ou Gandhi, na Índia, mas que ainda não se faziam carne, não se encarnavam”.
“Foi um momento – pela insensibilidade, o autoritarismo sucessivo de governos chilenos, sejam de direita ou esquerda – em que houve a impressão de que não se toleraria mais essa forma de governar”, reflete.
E menciona a desigualdade e os problemas das famílias chilenas para chegar ao fim do mês.
“Uma das sociedades mais injustas na distribuição da renda nacional é o Chile. O Chile é um dos países mais injustos do mundo. Há desigualdades realmente vergonhosas. Quando dizem ‘diminuiu a pobreza’, de acordo com os parâmetros com que eles medem, pode ser que os números mudem, mas nos fatos acredito que mais de 80% da população do Chile tem muita dificuldade para viver. Não chegam ao fim do mês. Vivem uma vida de cachorro. Vivem atarefados, neuróticos, pensando no que farão amanhã, o que colocarão na panela. Vivem uma vida muito difícil, então, isso de repente explodiu. E explodiu pela juventude. Na juventude universitária, foi sendo criada o que se chama de consciência crítica”.
Nesse sentido, a universidade foi crucial para o que aconteceu no dia 18 de outubro de 2019, de acordo com Soublette.
“A universidade prepara as pessoas para serem inseridas em um mercado de trabalho e colaborar no desenvolvimento do país, mas fazendo isso, a universidade também perde uma de suas dimensões mais importantes que é ser a consciência crítica da sociedade. Isso a juventude recuperou, e provocou a explosão de nossa sociedade, porque ocorreu em todas as cidades do país”, afirma.
Soublette também considera que o modelo inicial foi a revolução de maio de 1968, em Paris, “ainda que tenha a impressão de que essa revolução fracassou”.
“Foi como o protesto de tipo cultural, um pouco anarquista, mais do que da esquerda tradicional, mas lá estavam as sementes do que viria depois. Lá o pensamento de esquerda tradicional ficou um pouco superado. As visões anarquistas de maio de 68 abriram um espaço. No imediato, fracassou como movimento revolucionário, mas abriu muitos horizontes para futuras rebeliões contra o modelo de civilização industrial em que vivemos”, destaca.
No entanto, Soublette vai além de questionar ao modelo neoliberal ou inclusive capitalista. Para ele, trata-se da civilização industrial, que tem pelo menos dois séculos.
“Eu rejeito dizer que é só o capitalismo o culpado. Dou uma dimensão mais ampla para isto. É o modelo dado pela civilização industrial, que inclui o capitalismo e o comunismo, que acaba sendo tão autoritário como o capitalismo. Tudo o que esteja imerso nos valores ou cosmovisão desta civilização industrial, no fundo acaba no mesmo: uma sociedade dominadora, autoritária, seja de esquerda ou direita. Aí está o problema. No fundo, contra o que as pessoas estão reivindicando? Contra um modelo de civilização que está destruindo o mundo, criando uma sociedade injusta como nunca existiu. Estamos nos rebelando contra isso”.
Além disso, expõe que nunca houve uma rebelião desta dimensão no Chile.
“É uma rebelião a partir das próprias bases. Quando começaram a gritar ‘novo pacto social’, notou-se. Ou seja, vamos começar do início novamente. Como foi gerada, segundo Rousseau, esta sociedade humana? Por meio de um pacto social. ‘Comecemos novamente, pois tudo falhou’. A civilização industrial não conseguiu o bem-estar da humanidade. Criou um mal-estar profundo a longo prazo. A vida não é feliz para as grandes massas urbanas, muito pelo contrário. A vida é um problema muito difícil de resolver. Foi para isso que este modelo de civilização industrial levou. Contra isso, é difícil vivermos”, enfatiza.
“Vivemos em uma sociedade muito desigual. Nossas aposentadorias são miseráveis. Vivemos estressados, neuróticos, dominados pelo tempo útil. Essa não é a meta para a qual nos convidaram. A civilização industrial foi criada para o bem-estar do homem, e percebam no que acabamos. Acabamos em um mundo onde ninguém é feliz, onde todos estão descontentes, onde um mínimo de nove ou dez milhões de pessoas detêm toda a riqueza do mundo, contra bilhões que mal conseguem chegar ao fim do mês, e quantos morrem por desnutrição, sobretudo crianças. Os números da FAO são espantosos. Esta civilização industrial traiu todas as nossas esperanças, desde a Revolução Francesa. A Revolução Francesa foi feita em nome do povo, e a sociedade industrial, que nasceu da Revolução Francesa, explorou o povo de uma forma ainda mais injusta do que nos tempos da monarquia. Então, onde vamos parar com isto?”, questiona.
“Estamos à beira do colapso completo de todos os ecossistemas do mundo, e continuam poluindo”, conclui.
Nesse contexto, para o filósofo o resultado da eleição constituinte foi “um repúdio ao continuísmo destes regimes autoritários, onde são inventados planos de governo entre quatro paredes, sem informar ou consultar ninguém”.
“É um repúdio a essa maneira de governar, ao status quo em que uma elite de poderosos empreendedores detém praticamente toda a riqueza nacional, faz o que quer com o território, destrói o nosso patrimônio urbano para dar livre curso ao negócio imobiliário. Nos municípios, nunca se informa, nem há consulta cidadã para mudar a aparência das cidades. Destrói-se o nosso patrimônio. Até quando? Isso não pode continuar”.
Acrescenta que o resultado eleitoral, tão adverso ao Governo atual, é muito convincente, no sentido de que “não queremos isso, não queremos a continuidade disso”. Embora admita que “não sei como vamos terminar”.
O filósofo também aprofunda os quatro temas que – em sua opinião – são cruciais no processo constituinte.
“ O primeiro é o meio ambiente, altamente prejudicado pelas más políticas. Para nós, aparentemente, o artigo 19 garante aos cidadãos o cuidado de nosso patrimônio natural, tudo o que diz respeito ao meio ambiente. Mas não é cumprido. Como evitar que continuem desertificando, depredando, nosso patrimônio natural? Que isso fique de uma maneira mais firme na articulação, porque está se transformando no tema central de todos os países, neste momento, porque caminhamos para um colapso apocalíptico”, alerta.
O segundo tema é “o patrimônio”.
“Continuam destruindo sistematicamente o nosso patrimônio urbano, com planos reguladores que estão obsoletos há muitas décadas, e nada é feito para a aprovação de novos planos reguladores que nos garantam uma defesa. Os municípios dão curso livre às imobiliárias para que façam o que quiserem, em qualquer parte da cidade. Também há falta de consciência dos cidadãos, que não são informados, primeiro, devendo por lei informar os moradores e consultá-los, a consulta cidadã. Isso não é cumprido. As imobiliárias fazem o que querem, destroem nossos monumentos, qualquer bairro que poderia ser declarado patrimônio. Como parar esta depredação sistemática de nosso patrimônio urbano?”, questiona.
Sua terceira preocupação é a educação.
Hoje, “é concebida para que a juventude, tanto no ensino médio como universitário, se insira no mercado de trabalho a serviço do crescimento, a economia e o crescimento de nossas indústrias, do desenvolvimento de nosso país. Agora, nisso há um tremendo vazio na parte formativa da juventude”.
“O aluno sente isso, e cada vez mais forte. Fui educador durante 50 anos e conheço muito a juventude chilena, e sempre ouvi a reivindicação: ‘Ensinaram-me uma profissão para entrar no mercado de trabalho, mas quem me ensina a ser pessoa, a me conhecer? Quem me orienta sobre quais são as minhas verdadeiras aptidões e a tirar partido delas da melhor maneira possível? Como alcançar qualidade ética na relação com o meu próximo? Como aprender a me superar psicologicamente? Nada disso existe na educação chilena”.
Também critica às tentativas de rebaixar “as disciplinas humanísticas mais reflexivas, como a história e a filosofia”.
“Um país que tem dignidade não faz isso. É uma vergonha que se tenha tentado fazer algo assim. Um país sem memória histórica perdeu a sua dignidade. A filosofia ensina a desenvolver a mente e a consciência, e isso é o que precisamos. Todas as disciplinas que são dadas no ensino médio e universitário formam o que se chama a cultura de uma nação. E a cultura o que deve formar? Para que a cultura contribui? Contribui para formar pessoas com discernimento. Para isso, recomendo cursos universitários e também disciplinas no ensino médio em que se estude a nossa tradição oral de sabedoria, especialmente o nosso provérbio sapiencial, nossa narrativa popular, os contos, aos quais deve se somar o conhecimento dos povos originários, especialmente os mapuche. Tudo isso tem um conteúdo formativo que contribui para reforçar nossa identidade como nação latino-americana”, ressalta.
Em relação às aposentadorias, é enfático em sua rejeição ao lucro.
“Eu não quero que ninguém monte um negócio para lucrar com o meu fundo previdenciário, para retirar dele mais proveito do que minha mísera mensalidade. Todos os meus companheiros de trabalho na UC [Pontifícia Universidade Católica do Chile] mudaram para o sistema das AFP [Administradoras de Fundos de Pensões], porque disseram que eram obrigados a isso. Eu não acreditei e permaneci no Fundo de Empregados Particulares, que hoje é o INP. Por isso, meus companheiros obtêm um terço do que eu recebo como associado ao antigo regime. Conclusão: a julgar pelo que se vê, o negócio das AFP consiste em entregar a seus supostos beneficiários o mínimo, e ficar com a fatia maior. Essa é a verdade que estamos vivendo”, critica.
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Chile. Gastón Soublette: “O processo constituinte faz parte de uma mudança cultural mundial” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU