04 Agosto 2020
De Limache [Chile], o filósofo e esteta chileno Gastón Soublette fez uma análise da crise da saúde em nível humano, ligando o vírus nascido em Wuhan a uma doença que há muito aflige a humanidade: ser peças de uma maquinaria a serviço da sociedade industrial, em vez de nos expressar como pessoas pensantes e sensíveis. De uma extensa conversa gravada e publicada pela Fundación Lumbre, destacamos as principais ideias do pensador de 93 anos.
A recompilação é de Mónica Garrido, publicada por La Tercera, 29-07-2020. A tradução é do Cepat.
Não é apenas uma pandemia. Não se deve esquecer que o mundo estava revolucionando em um protesto universal. A sociedade estava se fraturando e as razões são óbvias: vivemos em uma sociedade perigosa, injusta, artificial e esmagadora, de desigualdades absolutamente escandalosas. Não podiam pensar. Os que governam o mundo não pensaram que os povos, especialmente as grandes massas urbanas, iriam se levantar em protesto por uma progressiva tomada de consciência que indicava o grau de sofrimento, de estreiteza, o grau de vazio que estavam vivendo. Chamo isso de megacrise, porque se bem analisada, a palavra mega significa algo de proporções enormes. Se bem analisada, é uma crise que abarca tudo. Tudo está em crise, e quando tudo está em crise, o pior pode acontecer. A pandemia faz parte da megacrise. Não estão os protestos, por um lado, as feministas, por outro, e uma pandemia, por outro. Não. Tudo está em um mesmo fenômeno. É importante perceber isso.
Então, a ciência moderna, especialmente a psicologia, avançou o suficiente para explicar esse senso de totalidade, de todo desse fenômeno, através da sincronicidade, especialmente a escola de psicologia analítica de Carl Jung. Ensina-nos que o que está dentro do homem, o que está vivendo dentro dele, projeta-se na realidade de uma maneira analógica. Portanto, se há uma pandemia psicológica, que é o que o mundo está experimentando, é óbvio que, devido ao fenômeno da sincronicidade, projeta-se no mundo objetivo, analogamente, como uma pandemia viral. Ela adoece as pessoas através de suas vias respiratórias e as leva à morte. O advento da pandemia é um resultado da pandemia psicológica e também espiritual.
A humanidade não podia continuar como estava, porque o pior iria acontecer conosco. Há muitas coisas que não podem ser evitadas no nível ambiental, coisas que os cientistas já previram e que teremos de suportar, mas, no nível psicológico e espiritual, há algo que ainda podemos corrigir. O que Jung chama de pandemia psicológica. O homem caiu para fora, essa é a verdade. O homem atual, o homem do século XXI. Há muito tempo, já não tem interioridade. Criou a civilização industrial. Criou formas de vida que exigem, pressionam, ameaçam, colocam contra o muro a grande maioria da humanidade e a obriga a viver uma vida puramente exterior. A humanidade vive pressionada pelo tempo. O tão ansiado bem-estar que esta sociedade nos prometeu, não chegou.
Podemos dizer que, nesse sentido, já fracassou. Criou um mundo de sofrimento, angústia, no qual os sentimentos não contam mais. Toda essa parte da nossa psique, sentimento, intuição, alegria de viver, contemplação da beleza, tudo isso se foi. A única coisa que essa sociedade que construiu a civilização industrial pede é o rendimento. Não precisam de você como pessoa, mas como peça de uma máquina. A grande massa do mundo vive tão angustiada, que a consciência cai para fora. O modelo de civilização em que vivemos não precisa de nós como pessoa. Agora, as formas de vida vão reduzindo a existência de uma pessoa desde a sua origem. Nada importa mais do que o rendimento. No fundo, vai morrendo interiormente.
Diria que o poder econômico, o poder político, o poder tecnológico e poder científico não estão interessados que sejamos pessoas. Quanto mais parte de uma máquina formos e quanto mais a palavra rendimento for o centro de nossas vidas, mais seus negócios prosperam. Existe uma grande elite no mundo que tem ciência, informação, influência sobre o poder político, e que tem a economia em suas mãos e que organizou o mundo de acordo com a lógica dos negócios, dos SEUS negócios.
A humanidade, que foi reduzida à inconsciência para poder se adaptar a esse modelo de civilização, muito saudavelmente começou a tomar consciência. Penso que pessoas como Jung, como Morris Berman e Byung-Chul Han, ao fazerem uma crítica desapaixonada, mas profunda, na qual resgatam todos os aspectos do ser humano, mesmo os aspectos do seu inconsciente, não trabalham em vão, porque de repente essa enorme massa de 7,5 bilhões de pessoas que viviam inconscientes, agora está consciente e perceberam que viver como vivem é morrer, é viver morto.
Por que, de repente, se deram conta? Foi muito falado no Chile: "O Chile acordou". Eu diria que não apenas o Chile. A Espanha, a França, o Reino Unido, a grande massa dos Estados Unidos, a China e a África também acordaram. Disseram: "Basta, estamos mortos, estão nos reduzindo a nada". E eles [os poderosos] continuam aumentando seu poder e nos ameaçando com suas desavenças. Colocam em risco a paz do mundo. E como podemos continuar a tolerá-los, dando-lhes nosso voto? Claro que é como andar no fio da navalha, porque é muito perigoso.
Pode conduzir à lei do pêndulo, para o outro lado com igual violência, como observado em certos aspectos do movimento feminista, que atingiram certos graus de violência que colocaram em dúvida para onde poderia levar. Por isso, citei esses pensadores, que fizeram uma crítica desapaixonada, como homens sábios, aos extremos para os quais a civilização industrial foi. Penso que não se pode condenar em bloco a civilização industrial, desconhecer o bem que trouxe à humanidade, mas, já há muitas décadas, chegou a um grau desmesurado tão grande que pôs em xeque a sobrevivência. Não apenas da espécie humana, mas de todas as formas de vida no planeta. Isso não pode ser tolerado. E foi criando um problema social no qual os pobres são cada vez mais pobres e os ricos cada vez mais ricos. De repente, a humanidade disse "não". Talvez não seja possível explicar o homem médio tão bem como faz Jung, Berman e Chul Han, em relação ao está acontecendo. Mas acho que certas informações científicas também atingiram sua modesta dimensão de vida. Voltemos ao início do que eu disse, de imediato, a pandemia é uma das muitas formas da crise, que Jung chama de "pandemia psicológica". Uma sociedade profundamente doente, que do modo como está, não tem destino.
Os aspectos positivos da megacrise são a busca de um novo paradigma cultural. Não há distinção de raças, não há distinção de classes. Em todos os lugares, aparecem pessoas lúcidas percebendo o problema. Diria que os mais talentosos, além de formular quais seriam as características do novo modelo, deram o passo em direção a um novo paradigma cultural que assumiram em suas próprias vidas. São pessoas que não sentem tanta necessidade de sair à rua para gritar, mas preferem a intimidade de sua família, de seus amigos. Desenvolveram um plano para viver de uma maneira humana, porque já se perdeu essa maneira humana de viver.
Em um bloco de 80 andares que não tem estética, puramente funcional, é muito difícil ser lúcido. Mas há pessoas que se afastaram disso. Isso vai de cátedras universitárias e institutos culturais a comunidades, retirando-se para morar em regiões florestais, sem se preocupar em como será o futuro econômico da família. Ressuscitam antigas habilidades práticas que a humanidade possuía e delegou a especialistas para se tornar consumidores, usuários passivos. Então, passando agora aos efeitos positivos da pandemia, entendemos que é um horror, que é um flagelo, como as dez pragas do Egito, como dizia a Bíblia.
É um espanto, mas nos obriga a nos fechar em casa e ficarmos próximos daqueles seres que normalmente deveríamos estar próximos, mas não se sabe o motivo pelo qual estávamos longe. Então, muitas pessoas aprenderam a estar consigo mesmas e com os seus de uma maneira diferente do modo como estão no funcionamento do paradigma atual. O confinamento, a reclusão no próprio lar, obriga-nos a nos relacionar, antes de mais nada, conosco, já que nossa doença, segundo Jung, é que caímos para fora. Agora, temos a oportunidade de reverter esse movimento exteriorizante para recuperar nossa interioridade, relacionando-nos de uma maneira nova com as próprias pessoas com quem vivemos, com nossa esposa, com nossos filhos, com as pessoas que estão a serviço da casa, uma nova maneira porque estaremos lado a lado, durante muitos meses.
Tem sido uma experiência que muitos de nós já comunicamos: “O que aconteceu com você?", "O que aconteceu comigo?" Muitas pessoas dizem que descobriram que estão vivendo uma nova maneira de se relacionar com todos os membros de sua família, sabendo que não podem sair. Agora, a primeira coisa seria como me relaciono comigo mesmo. Todos nós já ouvimos falar de meditação, oração. E se o modelo de civilização que estamos vivendo nos requer no exterior constantemente, isso nos impede de nos colocar diante da presença de Deus. E, segundo, nos impede de entrar em contato conosco mesmos. No Chile, estamos muito longe. Passar matéria não é educar. Educar é tirar o melhor que uma pessoa tem a partir das ciências, do pensamento, as práticas espirituais, como ensinava Gandhi.
Essa é uma oportunidade que esta reclusão nos concede. Por exemplo, estudos que adiamos porque não temos tempo, é hora de retomá-los. Há tantas coisas pendentes, não do nosso relacionamento com o mundo exterior, mas com nós mesmos e em nossa relação com os nossos que também fomos adiando. É o momento de fazer tudo isso. Essa reclusão nos permite pensar sobre isso porque, na realidade, fomos adiando nós mesmos. É tal o requerimento dessa sociedade de rendimento, que, ao adiar tanto a pessoa que somos, finalmente morre e não somos ninguém. Bom, o que está dentro nunca morre, mas temos a chance de reencontrá-lo.
Se o tempo tem uma característica diferente da que tinha antes? Obviamente que sim. Os gregos fizeram uma distinção entre a hora do relógio, que pode se pode medir - que um segundo é igual a outro -, o tempo da ciência, do tempo dos grandes ciclos da vida. Penso que o homem está agora muito mais consciente de que existe um tempo nos ciclos da vida, do qual nos separamos porque impusemos à natureza o ciclo utilitário do homem, quando deveríamos ter feito outra coisa.
Conhecer qual é o plano mestre da natureza para nos adaptarmos a ele. Não impor à natureza nosso desenho utilitário comercial. Não se deve esquecer que em 1917 houve uma pandemia na qual 50 milhões de pessoas morreram no mundo, mesmo durante a guerra. Não sei onde isso vai acabar, mas há mais maneiras de lidar com isso. Depois disso, irá prosperar essa visão de mundo em que o homem procura se harmonizar com o plano mestre da natureza, em vez de continuar a impor o desenho utilitário do homem. E essa mudança traz uma nova maneira de conceber o tempo.
A última reflexão dos filósofos que li, decepcionou-me. Parece que só se preocupam com o capitalismo contínuo, e acho terrivelmente superficial que os grandes filósofos discutam isso. E justamente o coreano que tanto admiro, que viu com grande acuidade crítica o momento em que vivemos, é o que mais se preocupava e dizia que o capitalismo ninguém derruba, nem um vírus. Portanto, é muito decepcionante que, neste momento, os filósofos comecem a discutir isso e deixem de lado essas coisas que são tão importantes, o fato de que vivemos forçando a natureza a se adaptar a nós, aos nossos caprichos, a ponto de seguir em retirada. Ela não pode continuar suportando essa dependência de nossos caprichos, por isso que está se extinguindo.
Temos que passar pelo que muitos chamam de "gargalo", ou seja, temos que pagar um ótimo preço, porque o que fizemos é muito errado. E quanto mais poder, mais perigoso, e como que se inverteu o espectro dos valores. Existe um ditado popular muito sábio que diz: "Os extremos se encontram", que é como a versão folclórica chilena de um provérbio chinês, que diz que quando uma coisa adquire características extremas, ela se torna o seu contrário. Em outras palavras, o que era bom para a humanidade alcançou tal grau de excesso que deixou de ser bom e se tornou um mal tão poderoso que pode acabar com todas as formas de vida. Basta ver que as viagens aéreas caíram, que os veículos motorizados não funcionam na quantidade anterior, que muitas empresas tiveram que pausar suas máquinas, para se dar conta de que a recuperação da atmosfera está sendo revelada.
Basta esses pequenos detalhes para perceber o dano que causamos com a completa urbanização da vida no planeta. Mas para isso precisamos de um homem treinado em duas coisas básicas: virtude e sabedoria. Se o homem não fizer um giro de consciência que o transforme radicalmente, não podemos esperar nada desse novo paradigma que se avista. Não é uma estratégia, procede de uma mudança radical do homem em sua interioridade. Se isso não acontecer, continuará sendo um homem perigoso que tira proveito de todas as coisas. Onde quer que vá - seja marxista, capitalista ou qualquer outra coisa - o resultado será desastroso se for um daqueles que querem tirar vantagem das coisas.
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“A pandemia viral é o resultado da pandemia psicológica e espiritual”, afirma Gastón Soublette - Instituto Humanitas Unisinos - IHU