10 Março 2020
Há alguns anos, há um notável aumento do interesse pela religião entre os filósofos europeus. Podemos ver isso na série de novos trabalhos sobre São Paulo produzidos por filósofos que estão muito longe de serem cristãos ortodoxos, como Alain Badiou e Slavoj Žižek, assim como na recente “virada” de Jürgen Habermas à religião, incluindo o seu famoso debate em 2004 com o futuro Papa Bento XVI.
O comentário é de Sarah Shortall, professora assistente de História Europeia Moderna da Notre Dame University, nos EUA, em artigo publicado por La Croix International, 07-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Desde o interesse tardio de Michel Foucault pelas práticas confessionais medievais, à exploração de Michael Hardt e Antonio Negri sobre a espiritualidade franciscana, ao amplo envolvimento com temas religiosos por parte de Giorgio Agamben e Jean-Luc Nancy, até mesmo o mais vigorosamente secular dos filósofos parece ter “encontrado” a religião.
Essa virada religiosa na filosofia europeia pode parecer intrigante, mas, segundo Edward Baring, em seu livro “Converts to the Real”, isso não deveria nos surpreender.
Isso ocorre porque a tradição em que esses filósofos trabalham, conhecida como filosofia continental (em oposição à tradição analítica que domina o mundo de língua inglesa), foi forjada, em aspectos importantes, por católicos nas primeiras décadas do século XX.
Antes disso, diz Baring, os filósofos europeus tendiam a estar enclaustrados em suas próprias tradições nacionais.
Foi o seu compromisso compartilhado com a fenomenologia – um estudo cuidadoso das estruturas da experiência humana cujos pioneiros foram Edmund Husserl, Martin Heidegger e Max Scheler – que deu origem a uma tradição filosófica verdadeiramente continental.
E isso ocorreu em grande parte graças aos filósofos católicos, que transmitiram essas ideias do seu local de nascimento alemão para a França, a Itália, a Bélgica, a Holanda, a Polônia, a Península Ibérica e os Estados Unidos.
De fato, antes da Segunda Guerra Mundial, 40% de todos os livros sobre fenomenologia em francês, italiano, espanhol, português e holandês eram escritos por católicos.
Com algumas exceções notáveis, como Edith Stein e Gabriel Marcel, eles não eram, de modo algum, os mais famosos ou os mais importantes dos muitos interlocutores da fenomenologia.
Mas Baring argumenta que esses católicos, no entanto, foram o “fator individual mais importante” para tornar a fenomenologia uma filosofia verdadeiramente continental.
Como isso ocorreu? Antes de a fenomenologia vir à tona, a coisa mais próxima de uma filosofia continental na época era católica: a neoescolástica.
Ela floresceu na segunda metade do século XIX, depois que Leão XIII convocou os filósofos católicos a retornarem às ideias de Tomás de Aquino e da escolástica medieval.
Em 1914, graças ao alcance global da Igreja Católica, ela se tornou, “de forma razoável, o maior e mais influente movimento filosófico do mundo”.
Embora a Igreja estivesse envolvida em uma batalha contra as forças do “modernismo” na virada do século, um pequeno grupo de neoescolásticos procurava preencher a lacuna entre o pensamento medieval e moderno, católico e secular.
Esses “neoescolásticos progressistas”, como Baring os chama, encontraram a sua referência em Edmund Husserl, que estudara, ele próprio, com Franz Brentano, um padre imerso na tradição escolar. O que atraiu esses católicos a Husserl foi a sua teoria da intencionalidade – a noção de que a consciência humana é sempre consciente “de” algo.
Isso atraía os católicos porque parecia abrir um caminho para além do idealismo da filosofia moderna desde Kant, que ameaçara minar a possibilidade de que os seres humanos pudessem possuir um conhecimento objetivo das realidades fora da mente, incluindo Deus.
A fenomenologia de Husserl parecia oferecer uma solução para esse problema. Sua promessa de retornar “às coisas em si” soava para muitos católicos como uma justificação da escolástica medieval, que enfatizava que os seres humanos têm a capacidade de conhecer objetivamente a realidade independentemente da mente.
Isso levou alguns católicos a chamar a fenomenologia de “nova escolástica”.
Ao apontar para “além” da filosofia moderna, eles esperavam que a fenomenologia também pudesse servir como um caminho “de volta” ao pensamento medieval, para que se pudesse começar a partir da perspectiva da filosofia moderna e se chegar a algo mais próximo de Tomás de Aquino.
A fenomenologia de Husserl, assim, abriu a possibilidade de que a filosofia secular moderna pudesse se converter ao catolicismo.
Mas esses filósofos católicos ficaram muito decepcionados quando, em 1913, a obra de Husserl deu uma guinada muito mais dirigida ao idealismo.
O resultado foi um debate feroz, travado nas redes transnacionais e multilíngues da Igreja Católica, sobre se a fenologia poderia ser reconciliada com a filosofia católica.
Embora a fenomenologia tenha servido como um canal para a fé religiosa e a conversão de alguns filósofos como Edith Stein, Dietrich von Hildebrand e Max Scheler, havia indicações perturbadoras de que ela também poderia ter o efeito exatamente oposto.
Martin Heidegger foi um exemplo disso. Inicialmente ele abordou a fenomenologia a partir da perspectiva da neoescolástica e foi até um candidato à cátedra de filosofia católica em Friburgo em 1916. Mas, em 1921, ele estava firmemente no campo ateu.
Em 1923, Max Scheler também rompeu com o catolicismo.
A fenomenologia, portanto, teve resultados mistos como um instrumento de conversão.
No entanto, como Baring demonstra, foi exatamente isso que garantiu o seu apelo amplo e duradouro.
Nos anos 1930, os críticos da neoescolástica dentro da Igreja usaram a “traição” idealista de Husserl como uma arma contra seus colegas católicos, e a fenomenologia se tornou um instrumento para disputas internas entre “neoescolásticos progressistas”, “tomistas rigorosos” como Jacques Maritain e Étienne Gilson, e “existencialistas cristãos” como Gabriel Marcel.
Nesse processo, as ideias de Husserl, Heidegger e Scheler se espalharam pela Europa e chamaram a atenção dos principais filósofos.
Mas, assim como os críticos católicos da neoescolástica se voltaram para a fenomenologia como uma arma contra seus rivais intelectuais dentro da Igreja, esses filósofos seculares conseguiram explorar as disputas internas dentro da filosofia católica para dissociar completamente a fenomenologia da religião.
Baring conclui que, “embora as instituições católicas tenham ajudado a transportar ideias fenomenológicas por toda a Europa, a fenomenologia só poderia entrar novamente na filosofia secular depois de deixar essas instituições para trás”, como ocorreu depois de 1945.
Assim, Jean-Paul Sartre pôde se levantar e proclamar, em um famoso discurso no Club Maintenant, em outubro de 1945, que a única forma autêntica de existencialismo era o existencialismo ateu. Nesse ponto, a filosofia continental assumiu o caráter secular ao qual ainda a associamos hoje.
Em outras palavras, foi precisamente porque o ajuste entre a fenomenologia e a filosofia católica nunca foi perfeito que ela podia apelar tanto aos filósofos católicos quanto aos seculares e às pessoas convertidas “ao” assim como “do” catolicismo.
O fato de ter sido assim é uma indicação de como era porosa a fronteira entre a filosofia católica e a secular nas primeiras décadas do século XX.
Muitas das principais luzes do pensamento europeu do pós-guerra, incluindo alguns dos críticos mais ferozes da religião, descobriram a fenomenologia pela primeira vez pela mediação de filósofos católicos.
A leitura de Jean-Paul Sartre sobre Heidegger, por exemplo, foi amplamente moldada pela obra do filósofo neoescolástico Alphonse de Waelhens, que escreveu o primeiro livro sobre a filosofia de Heidegger em francês.
Enquanto isso, uma geração de filósofos franceses foi introduzida na fenomenologia através do círculo de estudos que Gabriel Marcel organizou nos anos 1930, cujos participantes incluíam luminares como Sartre, Simone de Beauvoir, Maurice Merleau-Ponty, Emmanuel Levinas e Paul Ricœur.
Até Heidegger chegou a pensar em ser padre, muito antes de se tornar o sumo sacerdote da fenomenologia ateísta.
Como resultado desse tráfego constante pela fronteira entre o pensamento religioso e o secular, os temas no cerne do envolvimento católico com a fenomenologia – questões como encarnação, transcendência, humanismo, política e idealismo – também deixaram a sua marca em seus herdeiros seculares.
Porém, isso não significa que a filosofia continental após 1945 fosse “secretamente” católica, e o objetivo de Baring não é justificar nem a leitura secular nem a católica da fenomenologia.
Em vez disso, sua narrativa mostra como o mesmo conjunto de argumentos filosóficos podia ser usado para uma ampla gama de propósitos, tanto religiosos quanto irreligiosos, dependendo do contexto.
Embora ele esteja certo, Baring talvez exagere em relação ao modo como esse tipo de interação chegou ao fim após a Segunda Guerra Mundial.
Precisamente no período pós-guerra, os filósofos tradicionais, como Sartre, Merleau-Ponty e Alexandre Kojève continuavam elaborando as suas ideias em resposta e em diálogo com teólogos e filósofos católicos.
Em 1945, por exemplo, o jornal católico Dieu Vivant publicou um debate entre o ex-escritor surrealista Georges Bataille e o teólogo (e futuro cardeal) Jean Daniélou, um debate acompanhado por muitas das principais luzes do pensamento francês do pós-guerra, de Sartre e Camus a Maurice Blanchot e Jean Hyppolite.
E, nos anos 1970 e 1980, o padre jesuíta Michel de Certeau foi capaz de se mover sem problemas entre os mundos da teoria psicanalítica, do pós-estruturalismo e da teologia católica.
Argumentar, como faz Baring, que a fenomenologia teve que deixar o catolicismo para trás a fim de “cumprir seu potencial como filosofia continental” e entrar na filosofia tradicional é ignorar as muitas maneiras pelas quais a filosofia continental se envolveu com questões religiosas ao longo do século XX e, de fato, continua a fazê-lo hoje.
No entanto, Baring alcançou algo muito significativo. Ele nos deu uma fotografia da notável diversidade interna do pensamento católico no início do século XX – algo que, infelizmente, está faltando na maioria das histórias intelectuais da época.
Ele nos mostra o rico cenário intelectual forjado pelos católicos europeus naqueles anos, em que as diferenças entre as várias vertentes do pensamento católico costumavam ser tão grandes quanto as existentes entre os filósofos seculares e católicos ou entre os que trabalhavam em países diferentes.
Essas facções discutiam questões sobre como podemos conhecer o mundo para além da mente; sobre a relação entre razão e fé, filosofia e teologia, Deus e os seres humanos; e se os católicos podiam trabalhar com os regimes fascistas ou autoritários emergentes na Europa nos anos 1920 e 1930.
Para responder a essas perguntas, eles se voltaram tanto para os recursos da sua tradição católica milenar quanto para os da filosofia moderna. Baring recupera esse vibrante mundo intelectual e leva a sério as questões filosóficas levantadas por ele de um modo que permanece muito raro entre os historiadores do século XX.
O outro imenso benefício da sua obra é mostrar como e por que as instituições são importantes para a história das ideias.
O papel central que os católicos foram capazes de desempenhar na ascensão e na difusão da fenomenologia deve tudo às instituições específicas em que esses filósofos habitavam, começando pelas peculiaridades do sistema universitário no local de nascimento da fenomenologia: a Alemanha.
Enquanto os filósofos católicos em outras partes da Europa tendiam a ser empregados em instituições confessionais, como seminários ou universidades católicas, as universidades estatais na Alemanha reservavam algumas cátedras de filosofia para os católicos.
Como resultado, havia muito mais oportunidades para os filósofos católicos e tradicionais interagirem na Alemanha, o que permitiu que os católicos se engajassem nas ideias de Husserl, Heidegger e Scheler e participassem dos círculos de acólitos que atraíam.
Mas essas ideias poderiam não ter ganhado muita força além da Alemanha se eles não tivessem tido acesso à rede internacional e multilíngue de instituições e periódicos formados por filósofos neoescolásticos, em uma época em que a maioria dos filósofos se interessava pelas suas próprias conversas nacionais.
Portanto, não se trata apenas de uma história das ideias, mas sim de uma história de como as ideias se espalham através das fronteiras entre comunidades nacionais ou entre o pensamento secular e católico, graças às instituições particulares em que elas são moldadas.
Curiosamente, o Vaticano e a hierarquia da Igreja desempenham apenas um papel menor no relato de Baring – uma indicação da maneira como o pensamento católico muitas vezes se desenvolve independentemente das estruturas centralizadas da hierarquia da Igreja.
Dada a natureza altamente especializada do tema de Baring, os leitores não familiarizados com a filosofia certamente podem ter dificuldade com algumas das discussões mais técnicas do livro.
Fala-se muito de épocas, de “correlações noético-noemáticas” e de “reduções transcendentais”, que podem, compreensivelmente, desconcertar os não iniciados nos pontos mais refinados da análise fenomenológica. Entretanto, é um livro que vale a pena ser lido atentamente.
Baring nos mostra as complexas, multifacetadas e muitas vezes inesperadas interações entre a filosofia católica e a secular, o que pode muito bem explicar por que a filosofia continental se vê constantemente atraída pelas questões religiosas.
Se confiarmos na palavra de Baring, então, a recente “virada” à religião entre os filósofos continentais deverá ser vista realmente como um “retorno” às origens da sua tradição.
Nota:
- BARING, Edward. Converts to the Real: Catholicism and the Making of Continental Philosophy. Harvard University Press, 504 páginas.
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O Deus dos filósofos continentais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU