09 Setembro 2020
A corrida pela criação da vacina contra a Covid-19 também é uma corrida por financiamento, especialmente público. No entanto, são os laboratórios, que detêm as patentes, que tomam as decisões relativas à produção, para quem vendê-la e a que preço.
A reportagem é de Justin Delépine, publicada por Alternatives Économiques, 08-09-2020. A tradução é de André Langer.
Diante de uma pandemia duradoura, o mundo ainda está procurando uma saída. Uma verdadeira corrida contra o tempo foi lançada para desenvolver a vacina contra a Covid-19 o mais rápido possível. Uma corrida que põe em concorrência pequenos e grandes laboratórios farmacêuticos de todo o mundo, às vezes associados a organismos públicos de pesquisa. Mas, à medida que se multiplicam os anúncios de investimentos e acordos entre governos e laboratórios, uma questão torna-se central: quem pagará por essa futura vacina e quem terá acesso a ela?
Em maio passado, uma declaração de Paul Hudson, diretor-geral da Sanofi, provocou alarido: se o seu laboratório encontrar uma vacina, os Estados Unidos serão os primeiros a se beneficiar dela, declarou. O motivo? As autoridades americanas foram os primeiros a investir e a investir pesadamente nesta pesquisa. Suas palavras provocaram uma indignação generalizada – inclusive na cúpula do executivo – na França, sede do laboratório globalizado. Sua declaração lançou alguma luz sobre a relação de poder entre as empresas farmacêuticas e os Estados, as primeiras buscando maximizar a cooperação financeira dos segundos.
A corrida para encontrar a vacina é, portanto, também uma corrida por financiamento. Financiamentos ainda mais importantes, porque, desta vez, o tempo para levar uma vacina ao mercado é particularmente curto.
Normalmente, encontrar e colocar uma vacina no mercado leva de sete a dez anos. Diante da atual epidemia, as indústrias pretendem reduzir este tempo para menos de dois anos. Para acelerar o ritmo, os laboratórios são obrigados a antecipar cada etapa do seu desenvolvimento antes de validar totalmente a etapa anterior, de forma a poder poupar meses preciosos.
“Toda a fase de desenvolvimento é feita paralelamente à pesquisa, para que as fábricas sejam montadas e a produção comece antes que os resultados finais da vacina candidata sejam obtidos. Se os resultados forem positivos, a fabricação em massa já terá começado e as capacidades de produção já estarão disponíveis”, explica Claire Roger, presidente do comitê de “vacinas” da Leem [Associação Francesa de Empresas Farmacêuticas], organização que reúne empresas farmacêuticas.
É claro que essa aceleração do ritmo aumenta o montante da fatura. Principalmente porque, se a vacina candidata não cumprir as promessas, as doses produzidas vão para o lixo. No entanto, os laboratórios estão longe de serem os únicos a tirar o talão de cheques. “A maior parte do dinheiro investido na pesquisa da vacina Covid-19 é público”, lembrou Gaëlle Krikorian, ex-diretora da campanha de acesso a medicamentos da organização Médicos Sem Fronteira (MSF).
De acordo com o think tank Policy Cures Research, pelo menos 5,4 bilhões de dólares em dinheiro público foram fornecidos para apoiar a pesquisa e o desenvolvimento de uma vacina em nível global, 2,6 bilhões dos quais foram investidos pelo governo estadunidense. Uma quantia significativa, já que o mercado global de vacinas gira em torno de 60 bilhões de dólares no total. E, novamente, esses 5,4 bilhões representam apenas uma parte do financiamento público consagrado à vacina contra a Covid, e sem contar, por exemplo, todas as pré-encomendas que os governos fazem para garantir o seu fornecimento.
Detalhes de dezenas de acordos concluídos entre governos e laboratórios não são públicos. Portanto, é difícil quantificar com precisão os valores recebidos por eles, nem o que recobrem. Mas a exemplo da pré-encomenda americana ao laboratório Johnson & Johnson por um bilhão de dólares ou da dupla franco-inglesa Sanofi-GSK por 1,2 bilhão, ou da União Europeia para a AstraZeneca por 750 milhões de euros, as somas investidas pelos poderes públicos nesta vacina são de bilhões. Os Estados Unidos sozinhos teriam liberado 9 bilhões de dólares para a vacina contando todas as suas pré-encomendas.
Devemos agregar a isso também os recursos fora do contexto de uma crise de saúde: de órgãos públicos, como o Instituto Pasteur, mas também de mecanismos de auxílio à pesquisa, como o caríssimo crédito fiscal para pesquisa (CIR) na França.
Acima de tudo, esse apoio ilustra as desigualdades entre os países. Com essas pré-encomendas, os Estados ricos garantem o acesso à futura vacina reservando, de certa forma, linhas de produção. Aqui, novamente, os Estados Unidos são o maior provedor de fundos. Eles fizeram uma pré-encomenda de cerca de 800 milhões de doses de seis candidatos a vacinas, o Reino Unido 340 milhões e a Europa e o Japão várias centenas de milhões cada um.
Já os países mais pobres, que representam a maioria da população mundial, podem recorrer a outro grande financiador: o programa Covax, administrado especialmente pela Coalizão de Inovações e Preparação para Epidemias (Cepi). Esta fundação executa a política de vacinas da Organização Mundial da Saúde (OMS) e recebe ajuda de vários Estados e filantropos privados, incluindo a Fundação Bill e Melinda Gates.
A Cepi, portanto, financiou 9 candidatos a vacinas no valor de 900 milhões de dólares. No entanto, estima a necessidade em 2,1 bilhões de dólares para garantir 2 bilhões de doses, o que permitiria abastecer os países menos afortunados a um custo zero ou a um custo menor. E embora a Cepi tenha pedido várias centenas de milhões de doses de alguns laboratórios, a maior parte das encomendas vem de países ricos.
“Visto que o financiamento público é importante e, sobretudo, muito visível em um período de pandemia, as expectativas em relação às contrapartidas são elevadas, e, especialmente, em relação à propriedade intelectual do que será produzido”, observa Gaëlle Krikorian.
Depois da polêmica criada pelas declarações do diretor-geral da Sanofi, Emmanuel Macron defendeu que a futura vacina “fosse um bem comum global, fora das leis do mercado”. A intenção é louvável, mas o presidente não pode ignorar os regulamentos internacionais sobre produtos de saúde. O laboratório que descobre a vacina é protegido pelos acordos da Organização Mundial do Comércio (OMC) sobre propriedade intelectual (Adpic) e possui a patente mundial para a fabricação desse produto por pelo menos vinte anos, que lhe fornece uma renda financeira para compensar os custos de pesquisa. Em suma, detém o monopólio da produção da vacina, decidindo quantas vacinas produzir, para quem vender e negociando com os Estados o seu preço.
“A pesquisa de uma vacina contra a Covid é amplamente subsidiada pelo público, mas sua patente será privada”, lamenta Nathalie Coutinet, economista da Universidade Paris-13 especializada na indústria farmacêutica. O monopólio conferido por uma patente justifica-se, de fato, pela assunção de riscos financeiros na pesquisa. No entanto, isso não existe no presente caso. “As patentes são mecanismos de incentivo ao financiamento privado que podem ser úteis, mas não são os únicos, e devemos parar de abusar delas, especialmente quando o financiamento público é significativo”, conclui Gaëlle Krikorian.
O poder conferido por essas patentes também corre o risco de repercutir nas políticas de preços dos diferentes laboratórios farmacêuticos. Os preços certamente serão diferentes dependendo do país. Os mais ricos, e em primeiro lugar os Estados Unidos, geralmente concordam em pagar mais para serem atendidos primeiro. O que acentua a desigualdade de acesso à saúde entre países ricos e pobres.
O preço também varia de acordo com os laboratórios, que possuem estratégias diferentes nessa área. A britânica AstraZeneca, que tem um dos projetos mais avançados, anunciou, por exemplo, que comercializará seu produto a preço de custo. “Isso é puramente declarativo, pondera Jérôme Martin, do Observatório da Transparência nas Políticas de Medicamentos. Como não divulgam os custos da pesquisa nem a margem dos intermediários, é impossível verificar se esse preço de custo será real”.
O laboratório mencionou ainda um preço em torno de 2,50 euros por dose. Outras empresas, como as americanas Pfizer, Merck ou Moderna, assumiram claramente que desejam lucrar com essas futuras vacinas. A Moderna sugere um preço de comercialização entre 50 e 60 dólares. Uma diferença que terá graves consequências sobre as finanças dos organismos de reembolso. E que poderá, portanto, retardar a difusão de uma vacina.
Essa diferença de preço também se explica por diferenças nos modelos econômicos das empresas farmacêuticas. A Moderna, por exemplo, tem um dos projetos mais avançados, competindo com os maiores laboratórios farmacêuticos do mundo, mas é uma start-up com menos de mil funcionários e apenas uma década de existência. “As empresas farmacêuticas tendem a terceirizar a pesquisa, porque é muito cara, e assim cofinanciar start-ups de biotecnologia e comprá-las ou se juntar a elas se seu produto for eficiente”, resume Nathalie Coutinet.
No entanto, estas start-ups, das quais a Moderna é um exemplo perfeito, baseiam o seu desenvolvimento na inovação e só podem sobreviver financeiramente graças aos investidores que concordam em financiá-las com prejuízo até que os seus produtos cheguem à fase da comercialização. “Esses novos modelos participam de uma hiperfinanceirização do setor, explica o economista, pois assim que a inovação da start-up dá certo, os investidores que se arriscaram procuram recuperar seus custos, empurrar a estrutura para os mercados financeiros e exigem alta lucratividade”.
Se essas deficiências do mercado farmacêutico já existiam antes da pesquisa da vacina contra a Covid-19, a atual pandemia torna-as visíveis, revelando um setor opaco e amplamente financeirizado cujo poder de mercado garantido por patentes não reflete mais os esforços feitos na pesquisa.
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Covid-19: É possível a vacina não ser um negócio? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU