02 Julho 2020
“Houve uma vez em que todos os caminhos levavam a Roma. Agora, levam a Pequim”, disse o historiador Peter Frankopan, já há alguns anos. Foi sua maneira de nos convidar para olhar além do nosso umbigo ocidental, observar o que acontece na Eurásia, a que define como a verdadeira origem de nossa civilização, e acompanhar, em particular, como Rússia e China se movimentam. E agora, em plena pandemia de coronavírus, redobra a aposta.
“As decisões tomadas na China darão forma ao mundo do século XXI”, disse o genial autor de dois livros determinantes - “O coração do mundo” e “As novas rotas da seda” -, que críticos de todo o mundo selecionaram entre os melhores da última década. Mas, por acaso o choque da Covid-19 não deveria fragilizar a potência asiática? Muito pelo contrário, responde Frankopan ao jornal La Nación. “Os regimes autoritários prosperam quando há uma crise”.
Professor de “história global” da Universidade de Oxford, Frankopan concentra sua visão nas grandes tendências globais para, a partir dessa “história profunda”, como ele a qualifica, aprofundar no essencial. Isso o permitiu prever, em 2019, por exemplo, que enfrentaríamos uma pandemia em escala planetária, do mesmo modo que agora o leva a alertar sobre riscos tão diversos como os laboratórios e o autoritarismo.
“As pandemias, as guerras e a mudança climática são os três principais disruptores da história”, sintetiza Frankopan, enquanto permanece em quarenta, com a sua família, na Inglaterra. A pandemia é, hoje, uma realidade, ao passo que os outros dois disruptores são um risco certo, claro e presente. Mas, mesmo assim, diz, “durante esta crise, também há muitos motivos para a esperança”.
A entrevista é de Hugo Alconada Mon, publicada por La Nación, 27-06-2020. A tradução é do Cepat.
Peter Franckopan é autor do best-seller “As Rotas da Seda: uma nova história do mundo” (Ed. Relógio D’Água, 2018) e de The New Silk Roads [As novas Rotas da Seda].
A pandemia pelo novo coronavírus reafirmou ou alterou de algum modo seu foco de análise centrado na Eurásia e, em particular, na China?
Fazendo um balanço, reafirmo minhas hipóteses. Meus interesses se centram em olhar os padrões de intercâmbio e a história profunda. Isto não me confere uma bola de cristal que me revele o futuro, mas me obriga a olhar o essencial e observar a direção para a qual os Estados, os povos e as culturas se movem, bem como as ideias abstratas. Neste sentido, há algum tempo avaliei que as pandemias, as guerras e a mudança climática são os três principais disruptores da história e que todos nós deveríamos prestar especial atenção neles.
Enquanto a Covid-19 avançava, as pessoas ficaram obcecadas com a forma como a pandemia enfraqueceria a China, estimularia as reivindicações para que a prestação de contas aumentasse e por maiores liberdades. Mas, nesse momento, escrevi que os regimes autoritários prosperam quando há uma crise e que não só se sairiam bem do desafio, como inclusive ficariam fortalecidos. E é isso, ao que parece, que aconteceu.
Também alertei que todos nós deveríamos nos preparar para o impacto inevitável que esta doença terá na economia e em nossas comunidades e, por certo, também alertei sobre o dano que provocaria sobre o conceito de democracia, em uma era em que os jovens em especial estão perdendo sua confiança nos líderes políticos e na democracia. Nesse sentido, parece-me que as grandes tendências sobre as quais escrevo há algum tempo estão se fortalecendo mais do que enfraquecendo. E acredito que isto é mais certo do que nunca: as decisões tomadas na China – as boas e as más – darão forma ao mundo do século XXI.
Em dezembro passado, você publicou um artigo quase “profético”, na ‘Prospect Magazine’, no qual defendeu que vivemos na “era da pandemia”, que deveríamos nos preparar, em nível nacional e internacional, e coordenar uma resposta conjunta. E depois, em outro texto para a mesma revista, que a próxima grande tormenta global poderia começar em um laboratório, como resultado de um acidente. Esta ameaça é muito séria?
Sim, escrevi a esse respeito há bem pouco tempo. Muitas nações desenvolvidas têm programas biológicos militares avançados que se focam ostensivamente em lhes prover defesas contra patógenos que podem ser usados para atacá-las. Mas os registros de segurança de muitos laboratórios são terríveis, na China e na Rússia, mas em muitos outros lugares também. Um dos principais laboratórios dos Estados Unidos foi fechado, no ano passado, por sérias vulnerabilidades em seus padrões de segurança e só recebeu permissão para reabrir completamente em março. No Reino Unido, registra-se algum incidente de segurança a cada 20 dias, em média. E na França, onde se “perderam” mais de 2.000 frascos do vírus mortal SARS, ninguém sabe, hoje, onde estão.
A soma de tudo isso me diz patógenos altamente perigosos não se desenvolvem apenas na natureza e de maneira fortuita - como parece que foi o caso da Covid-19 -, mas que existe uma probabilidade óbvia de que algo saia realmente mal em um laboratório. E, ainda por cima, é claro, a possibilidade de que a próxima grande tormenta comece em um laboratório, não por um vazamento acidental, mas que seja disseminado de propósito.
Isto poderia ser feito por um Estado, por razões malignas, ou também poderia se dar por obra de atores não estatais. Recorde-se que manusear agentes biológicos letais nunca foi tão fácil e barato. Sendo assim, precisamos de controles médicos muito melhores e uma coordenação internacional muito maior para evitar que no futuro nos ocorra algo que poderia ser muito pior que a Covid-19.
Em algumas entrevistas, você salientou que o impacto desta crise no Ocidente não será o mesmo que na Ásia. Mas, deixe-me fazer uma pergunta antes: quão grave é ou poderá ser esta crise?
Honestamente, penso que é muito cedo para avaliar. Caso encontremos soluções médicas logo, então, poderemos retornar à condição primeira e muito rapidamente. Neste momento, há várias possíveis vacinas que já estão sendo submetidas a testes avançados, embora não dependerá apenas de que alguma ou todas resultem efetivas, mas da rapidez em que podem ser produzidas, distribuídas e aplicadas. E nisto haverá também uma forte distorção: os países ricos serão os primeiros na fila a receber as vacinas, razão pela qual poderão se recuperar rápido, ao passo que os países pobres não terão tanta sorte, além de estarem menos equipados para lidar com a pandemia por sua infraestrutura médica e sua realidade econômica.
Esta lacuna entre países ricos e pobres existirá, mesmo que as vacinas não funcionem e devamos nos apoiar nos antivirais, no monitoramento digital ou em fechamentos de emergência regionais. Sendo assim, haverá uma ampliação da distância entre ricos e pobres em escala global, mas também dentro de cada país. No pior dos cenários, esta crise poderia ser catastrófica.
No entanto, sendo otimista e pragmático, penso que somos mais resilientes do que outros analistas acreditam. Nesse sentido, meu horizonte temporal sobre quando as melhorias começarão se mede em semanas e meses, em vez de períodos mais extensos. E acredito que, somando e subtraindo, teremos boas notícias.
Depois de ler sua coluna para o jornal ‘The Guardian’ do mês passado, no qual expõe que o coronavírus representa para a China uma “oportunidade histórica”, embora a questão seja se a aproveitará, a pergunta que me surge é a seguinte: o que mais lhe preocupa? Uma guerra entre a China e os Estados Unidos? Uma depressão econômica planetária? A falta de cooperação global?
Tudo isso. Seríamos tolos se pensássemos que a guerra e o confronto militar são coisas do passado. É perfeitamente concebível imaginar um conflito entre os Estados Unidos e a China, e de fato os dois países passaram um tempo considerável conceituando como poderia ocorrer e com quais resultados. Um conflito bélico em grande escala me preocupa porque é imprevisível.
Em seu momento, dediquei muito tempo para pensar nas ciberseguranças e outras formas de desestabilização nas quais a concorrência pode se tornar intensiva. Do mesmo modo, a falta de cooperação global é um problema maiúsculo, claramente, principalmente, em um mundo no qual os Estados Unidos estão diminuindo o papel que desempenharam, durante décadas, para reunir povos e tecer alianças, laços e amizades que podem ser muito efetivas.
Dito tudo isto, o que mais me preocupa neste momento são as pressões sobre a democracia e o surgimento do autoritarismo. Trazem perguntas muito significativas sobre nossa forma de vida, nossas presunções sobre as liberdades e também acerca da importância das igualdades que muitos pensaram que eram sagradas.
Em muitas oportunidades, você expôs que já estamos vivendo o “século asiático”. Por que muitos – talvez a maioria –, no Ocidente, não se dão conta disso?
Acredito que a maioria das sociedades da era moderna é bastante introvertida. No Ocidente, passamos muito tempo pensando em nós mesmos e que somos realmente importantes. É uma forma de narcisismo. Amamos olhar nosso próprio reflexo no espelho e admirar (e criticar) o que vemos. Mas há um preço a pagar por esta autoindulgência. Nós nos acostumamos a não prestar atenção na “grande foto” e, como consequência, nos sentimos perdidos em um mundo que simplesmente não entendemos porque dedicamos muito pouco tempo para pensar sobre ele.
As coisas mudaram rápido nas últimas décadas, mas só agora estamos acordando e pensando em fazer as perguntas que deveríamos estar fazendo há muito, muitos anos: como lidar com a China ou a Rússia, ou o Irã, ou a Arábia Saudita. Olhemos apenas para Indonésia, Filipinas, Índia, Paquistão e Bangladesh. Acreditamos que esses países são periféricos, sem interesse. Mas sua população somada é de quase 2 bilhões. O que vai bem ou mal nesses lugares tem um impacto direto no preço do pão em Buenos Aires, no custo do petróleo em Ushuaia e nas perspectivas dos agricultores nos pampas.
Nessa linha, na entrevista que concedeu ao “El Diario” da Espanha, você já esboçou esta ideia de que não estamos nos fazendo as perguntas que deveríamos ter feito, há muito tempo. Quais?
Podem se dividir em duas categorias. A primeira: quais são todos estes outros povos no mundo, que ignoramos durante tanto tempo? Que oportunidades e desafios nos colocam, individual e coletivamente? Como mudará nosso mundo nos próximos anos? Como poderíamos entender e deveríamos nos conectar com esses povos? O que nos vincula a eles?
A segunda: qual é nosso papel neste mundo em mudança? Por que coisas tão básicas como a mobilidade social são tão difíceis para nós? Por que tantas pessoas nos Estados Unidos, o país mais rico da Terra, não podem ter acesso a uma cobertura médica, e por que mais de 20% das crianças lá vivem abaixo da linha da pobreza? Por que a polarização política é tão acentuada no mundo desenvolvido? Por que é tão difícil para os Estados mais ricos e desenvolvidos trabalhar juntos e cooperar entre si? Penso que não nos fazemos estas perguntas e muito menos dedicamos tempo em respondê-las.
Vamos para a outra ponta, então. Existe algo de esperança em tudo isto que enfrentamos?
Sim, muitas, muitas coisas! Nos, seres humanos, somos resilientes, somos amáveis, somos otimistas, somos inteligentes, curiosos e sensíveis. Estas são coisas maravilhosas que nos separam do resto dos animais. E durante este período de fechamentos forçados de nossos países, quase todas as pessoas neste planeta destinaram tempo para pensar em suas famílias, nas pessoas que amam e sentem saudades, e se afastando da ideia de que as coisas materiais nos fazem felizes. Sendo assim, de fato, durante esta crise, também existem muitos motivos para a esperança, ainda que tenha sido um tempo doloroso e difícil para muitos.
Há alguma pergunta que não lhe fiz e que gostaria de abordar?
Não.
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“As decisões tomadas na China darão forma ao mundo do século XXI”. Entrevista com Peter Frankopan - Instituto Humanitas Unisinos - IHU