28 Mai 2020
"País venceu a covid-19 e prepara-se para 'guerra híbrida' aberta pelos EUA. Vai voltar produção para dentro, encarar desigualdade e ocupar, na cena externa, espaço aberto por Washington. Sem descuidar da aliança com Moscou…", escreve Pepe Escobar, jornalista investigativo brasileiro e especialista em análises geopolíticas, em artigo publicado por OutrasPalavras, 26-05-2020. A tradução é de Simone Paz.
Em meio à contração econômica mais profunda em quase um século, o Presidente Xi Jinping deixou bem claro, mês passado, que a China deveria se preparar para desafios estrangeiros sem precedentes e implacáveis. Ele não se referia somente à possível ruptura das cadeias de suprimentos globais e à demonização constante dos projetos relacionados às Novas Rota da Seda, também chamada à Iniciativa do Cinturão e da Estrada.
Um documento interno, supostamente vazado — secreto e invisível dentro da China — mas obtido por alguma fonte obscura ligada ao Ocidente, chegou a afirmar, essencialmente, que a brincadeira de culpar a China pelo vírus é como a reação sobre a Praça de Tiananmen, trinta anos depois. De acordo com o documento, secreto e invisível, a China teria que “se preparar para o confronto armado entre as duas potências globais” — numa referência aos EUA. É como se se tratasse de uma estratégia agressiva implantada primeiro pelo Estado chinês, e não em resposta à grande escalada da guerra híbrida 2.0 pelo governo dos Estados Unidos.
Para todos os efeitos práticos, essa demonização da China ultrapassou as paranoias anteriores, da demonização da Rússia. Acabou o que Pequim costumava definir como um “período de oportunidade estratégica”. Houve até rumores nos círculos intelectuais de que a liderança do Partido Comunista Chinês acreditava que essa janela estratégica de oportunidade duraria até a data-chave de 2049 — quando o “rejuvenescimento nacional” teria sido totalmente alcançado. Esqueça. Agora, o jogo todo se resume à guerra híbrida 2.0 implantada pelos EUA, para conter a qualquer custo a superpotência emergente. E isso implica que uma infinidade de planos chineses estão sendo turbinados
A primeira determinação é restaurar a produtividade da máquina Made in China. Foi nisso que o presidente Xi insistiu durante sua recente visita à província de Shaanxi, historicamente crucial para o Partido Comunista Chinês. Também, falou em uma ofensiva contra a pobreza — ele havia prometido erradicá-la ainda este ano.
No sentido oposto de todas as previsões ocidentais, as exportações da China cresceram 3,5% em abril, em comparação com a queda de 6,6% em março. Isso destrói totalmente a lógica de afastamento das empresas ocidentais. O governo japonês, por exemplo, está acelerando a retirada de fábricas da China, às pressas, numa estratégia não muito inteligente. Essas fábricas estão abandonando uma nação que praticamente erradicou a covid-19. E se se mudarem para o Vietnã, á a economia também é socialista (só que com características vietnamitas).
No primeiro trimestre de 2020, o PIB chinês caiu cerca de 6,8%. A recuperação já está em curso. Oficialmente, o desemprego era de 5,9% no final de março — sem levar em conta os trabalhadores migrantes que voltaram para as grandes cidades depois de passado o ápice do coronavírus no interior. As projeções de desemprego chegavam a 20% — mas depois encolheram.
A recuperação consistirá num misto de estímulos econômicos para empresas grandes e pequenas; investimentos em infraestrutura; e vouchers para a grande maioria das massas trabalhadoras. O sistema hukou — que vincula os direitos sociais ao local de residência — também será reformado.
Geopoliticamente, a análise do think tank CAPS, um departamento do ministério das Relações Exteriores em Paris, tornou-se praticamente um mantra em todo o Ocidente. O CAPS está preocupado com o fato da China ter se tornado indispensável, enquanto questiona seus “valores” e “agenda oculta”. Com a União Europeia completamente paralisada e provando claramente a sua irrelevância em diversos aspectos, especialmente no quesito de entrar num acordo sobre um pacote de resgate eficaz para todos os seus membros, o Ocidente mostra-se, quase em bloco, aterrorizado com o fato da China estar num processo irreversível de transformação na maior potência global.
Mesmo depois do grande golpe da covid-19, Pequim parece estar no controle de todas as variáveis básicas de sua política econômica (instituições financeiras e grandes corporações). O Partido Comunista Chinês dobrará o desenvolvimento de toda a máquina de produção, em conjunto com a ampla aplicação das técnicas de Inteligência Artificial.
Agora, o que parece ser certeza é que a China vai, primeiramente, garantir seus próprios interesses nacionais — em termos de cadeias de suprimentos e exportações globais. A curto e médio prazo, o foco estará concentrado em novas Rotas da Seda terrestres e nos corredores de conectividade marítima — incluindo a “Rota da Seda da Saúde”. Mesmo com o Covid-19, o comércio da China com os países da Nova Rota da Seda cresceu 3,2% no primeiro trimestre, o que não é ruim, mesmo quando comparado aos 10,8% de todo o ano de 2019.
De acordo com o ministério do Comércio, as transações de Pequim com 56 países do Cinturão e Rota espalhados pela Ásia, África, Europa e América do Sul representam um relevante 30% das transações anuais totais. Compare-o com a redução de 13% a 32% da previsão comercial global da Organização Mundial do Comércio para 2020.
Portanto, mesmo se uma queda do comércio no primeiro trimestre de 2020 fosse mais do que previsível, é provável que ela seja revertida rapidamente, aumentando especialmente em relação ao sudeste da Ásia, Europa Oriental e mundo árabe. Como se esperava, a Nova rota da Seda está enfrentando inúmeros desafios de curto e médio prazo — todos ligados a problemas de conectividade: falhas na cadeia de suprimentos, restrições generalizadas a viagens e vistos, controles rígidos nas fronteiras, atrasos nos projetos devido ao aumento dos custos.
Entre os exemplos, temos o trem de alta velocidade Jakarta-Bandung, de 6 bilhões de dólares e 150 km de comprimento, na Indonésia, com especialistas técnicos chineses retornando lentamente às atividades, após terem se ausentado dadas as restrições do governo. No corredor econômico China-Paquistão, a quarentena obrigatória para técnicos chineses congelou o avanço por pelo menos dois meses. O mesmo se aplica aos projetos em Bangladesh e Sri Lanka.
Segundo um relatório da Economist Intelligence Unit (Unidade de Inteligência da revista Economist), o Covid-19 provocará o descarrilamento da Iniciativa do Cinturão e Rota em 2020. Isso pode ter ocorrido apenas nos primeiros quatro meses do ano. Mesmo em meio à pandemia, Pequim assinou acordos para novos projetos de Cinturão e Rota em Mianmar, Turquia e Nigéria.
O trem de alta velocidade China-Laos, com 414 km de extensão — que liga Yunnan, via Vientiane, a Tailândia, Malásia e Cingapura — continua se desenvolvendo, com conclusão prevista para o final de 2021. A ASEAN (Associação de Nações do Sudeste Asiático) tornou-se a principal parceira comercial da China, com grande relevância, e muito à frente da UE, afogada em crises.
O principal argumento nisso tudo é que a complexa macroestratégia do Partido Comunista Chinês não será perturbada. Isso significa que a China continuará sendo o principal motor da economia global, com ou sem afastamento em relação aos EUA; e com a Nova Rota da Seda no cerne da estratégia de política macro-externa da China unido a um sólido impulso em direção ao multilateralismo. Por mais que grandes faixas da economia mundial, especialmente no Sul Global, não demonstrem intenção em se separar da China, Pequim terá que se preparar para combater a guerra híbrida e de espectro total de Washington — em todas as frentes: geoeconômica, cibernética, biológica e psicológica.
Como detalhou Kishore Mahbubani em seu último livro, isso não significa que a China tenha a intenção — e capacidade — de se tornar um novo gendarme do mundo. Certamente, aumentará seu poder econômico e financeiro, como na implementação cuidadosa do yuan digital, possivelmente lastreado em ouro.
E há também a mudança de jogo, sempre em evolução, responsável pelas insônias do establishment estadunidense: a estratégica parceria Rússia-China. Há duas semanas, um importantíssimo acontecimento geopolítico foi praticamente ocultado pela concentração total de atenções no coronavírus. Moscou tem ciência de que Washington está implantando sistemas de defesa de mísseis próximo às fronteiras da Rússia — tendo potencial para realizar um primeiro ataque nuclear. Pequim acompanha o desenvolvimento do caso com preocupação.
Que Moscou esteja ciente disso é apenas parte da história: o ponto principal é que a Rússia está confiante já que armas sofisticadas, como os mísseis Sarmat e Avangard, poderão defendê-la.
Mais complexa ainda é a questão dos laboratórios de armas biológicas do Pentágono em países pró-Ocidentais da antiga União Soviética — outra questão também seguida de perto por Pequim. Moscou identificou um laboratório perto de Tblisi, na Geórgia, e 11 deles na Ucrânia. E em 2014, quando a Crimeia se uniu novamente à Rússia, os cientistas também encontraram um laboratório em Simferopol. Toda essa informação sobre armas nucleares e biológicas é trocada no nível mais alto da parceria estratégica Rússia-China, como fontes de inteligência me confirmaram.
A próxima grande jogada neste xadrez geopolítico aponta para uma parceria China-Rússia, na negociação das relações bilaterais com os EUA.
Nada poderia ser mais racional, se considerarmos que eles são vistos como as duas maiores “ameaças” para os Estados Unidos, segundo a Estratégia de Segurança Nacional de Washington.
Pense numa grande mudança de paradigma geopolítico.
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Enquanto isso, na China… Artigo de Pepe Escobar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU