21 Mai 2020
Pode-se ser feliz durante um confinamento forçado por uma pandemia global? O problema não reside tanto na resposta a essa pergunta, mas no fato de que existam disciplinas, como a chamada psicologia positiva, que não tenham nenhuma dúvida a respeito: depende do seu esforço individual. Em plena era do domínio ideológico neoliberal, a felicidade representa para alguns um princípio inquestionável que serve para distinguir o sucesso e o fracasso dos indivíduos.
Em seu trabalho Happycracia. Cómo la ciencia y la industria de la felicidad controlan nuestras vidas (Paidós) - traduzido para mais de dez idiomas -, a socióloga Eva Illouz e o psicólogo Edgar Cabanas (que responde a essa entrevista) analisam, por um lado, a ideologia subjacente a uma disciplina que conta com cada vez mais fontes de financiamento e, por outro, sua falta de apoio científico e seus efeitos secundários.
A entrevista é de Andrés Villena, publicada por Ctxt, 19-05-2020. A tradução é do CEPAT.
A psicologia positiva nos concebe como empresas que buscam maximizar sua felicidade. O que nos diria um psicólogo positivo sobre como lidar com esse confinamento? Também nos sugeriria transformar essa crise em uma oportunidade?
Estou certo de que muitos já disseram isso... Para a psicologia positiva, tudo é suscetível de ser instrumentalizado para nosso próprio bem, bem-estar e interesse. E o melhor que podemos fazer é não nos deixarmos levar por circunstâncias externas - porque, afinal, não têm muita influência -, para focarmos em trabalhar nossas atitudes, nossos pensamentos e nossas emoções positivas, deixando de lado todo o negativo. Como se o positivo e o negativo fossem colocados como dois polos opostos.
“Positivo” e “negativo” é uma simplificação...
É uma falácia. De fato, seria necessário ver se todas essas emoções positivas são tão benéficas. E rotular como “negativos” sentimentos como, por exemplo, raiva, aborrecimento e a indignação é extremamente conservador, porque temos que levá-los em consideração, pois também nos levam a mudar as coisas, a modificar o status quo. Ao torná-los patológicos, esses sentimentos são denunciados como “improdutivos” pessoal e socialmente.
O que sempre me surpreende é a capacidade desses discursos em penetrar, apesar de tudo o que está acontecendo. Já na crise que começou em 2008, multiplicaram-se. Porque nesses momentos, quando se tem a sensação de que não é possível influenciar seu entorno, seja talvez quando os apelos para se fechar dentro de si se proliferam. Mas, se percebermos, o fato de não atendermos às circunstâncias que nos cercam é absolutamente ilusório. Em momentos como os que estamos vivendo, fica evidente que nossa vida, em geral, é colocada nas mãos do que está acontecendo, e isso não depende de nós.
Em ‘Happycracia’ é citada uma passagem arrepiante. Uma mulher diz ao marido que está feliz, mas acredita que deveria ser mais feliz e que deveria lutar por isso a todo custo...
A ideia por trás disso é que a pessoa se concebe como um projeto. Até agora, a unidade de utilidade tinha sido o dinheiro, mas, nesse momento, a felicidade acabou se tornando, talvez, o maior valor da utilidade. As pessoas precisam encontrar a forma de obter o máximo enriquecimento pessoal e individual, entendendo a felicidade como sua expressão máxima.
E a felicidade, nesse ponto, adquire um aspecto paradoxal: é, ao mesmo tempo, um fim e um meio para alcançar outros fins. Porque não somente é preciso se dirigir para a felicidade, mas também, sendo feliz, se é mais produtivo, e quanto mais produtivo você é, mais feliz é e vice-versa. É uma enorme tautologia, um argumento circular que dificilmente se repara e do qual pode ser muito difícil sair.
Se você não me obedece e não é feliz, não será produtivo.
Felicidade, produtividade, rendimento econômico e interesse próprio entram no mesmo círculo, retroalimentando-se. Normalmente, as pessoas assumem que uma pessoa feliz é mais produtiva. Mas não há prova científica para isso. Trata-se simplesmente de um argumento que se encaixa ideologicamente.
Quem obtém os maiores benefícios da difusão de todo este pensamento relacionado à felicidade?
Quando você promete que sua teoria, suas técnicas e oficinas são uma maneira mais barata de obter rendimentos no trabalho, que seus trabalhadores não apenas sejam mais produtivos, mas mais receptivos à cultura corporativa, etc., pode haver muitas pessoas interessadas. Além disso, graças a certas pesquisas e publicações, aqueles que defendem esses princípios são, de alguma forma, “cientificamente” legitimados. Os próprios “coach” e aqueles que estão dando cursos terapêuticos desse tipo já podem afirmar que possuem ferramentas científicas. Tudo o que é filtrado pela ciência - ou por uma aparência da ciência - vende muito mais.
Há muitas pessoas que precisam de tratamento psicológico, apoio, etc. Se, como promulga esta disciplina, essas pessoas esquecem o negativo e se concentram em aumentar o positivo, na felicidade, o que acontece com eles se não a alcançam?
São gerados o que chamamos de “happycondríacos”, ou seja, pessoas que, acreditando que podem ser sempre mais felizes, acabam permanentemente frustradas, buscando um projeto que nunca se fecha, o que gera ansiedade, frustração, obsessões... Além disso, muitas pessoas que sofrem de estresse ou ansiedade podem cair em uma armadilha dupla, pois acabam sendo castigadas duplamente porque, por um lado, sofrem estresse e, por outro, têm o ônus de concluir que não saem dessa situação por sua própria culpa.
A indústria da felicidade se alimenta da infelicidade e insatisfação constante. E tenta abarcar todo o mercado. Não se dirige apenas a pessoas que não são felizes, mas a todos, tentando convencer os que estão bem de que sempre pode ser melhores. E muitas pessoas que estavam bem, embarcam em uma perseguição para sair da “deficiência” que “descobriram” que têm. À sua disposição, sempre terão uma enorme variedade de possibilidades e técnicas para “melhorar”. Trata-se de uma estratégia de marketing e, além disso, um discurso muito perverso que sempre responsabiliza a pessoa pelo que lhe acontece.
A felicidade pode ser um novo sinal de triunfo pessoal, de “riqueza interior”?
A felicidade, sob essa perspectiva, nunca deixou de ser associada ao individualismo, nem como certa concepção de sucesso pessoal. É como outra forma de status que não está mais ligada ao consumo, mas ao sinal de que alguém fez bom uso da própria vida, independentemente dos elementos materiais que possui.
O estudo e a promoção da felicidade penetraram muitas instituições políticas e educacionais. Pode se tornar um mecanismo de controle?
Uma vez que você introduzir a felicidade como o único critério para avaliar o que é bom em termos políticos, valerá para você compensar outros indicadores econômicos e sociais. Por exemplo, países como Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita e Índia, com enormes desigualdades, violações claras dos direitos humanos, mortalidade infantil etc., levantam a bandeira de como estão bem em termos de felicidade, como uma forma de disfarçar o que não poderia fazer em outras áreas.
Em muitos casos, essa noção de felicidade substitui a do Estado de Bem-Estar Social, que inclui muito mais o bem-estar subjetivo: direitos sociais e trabalhistas, condições mínimas de vida, etc. Esse novo discurso sobre da felicidade nos impede de conversar e discutir sobre as condições de bem-estar, porque se supõe que as condições externas não importam. E, com isso, torna-se impossível introduzir questões do tecido social, político e econômico, que são muito mais importantes do que questões emocionais ou pessoais.
Levando em conta todo o anterior, o que recomendam outras abordagens psicológicas para superar esta crise?
Sobretudo, entender que o que está acontecendo conosco tem uma origem circunstancial e não depende exclusivamente de nós. Não devemos nos destruir porque as coisas agora não estão indo bem. É uma situação estranha e inédita, na qual todos estão tentando enfrentar a tempestade da melhor maneira possível. Além disso, e isso é muito importante, não existem receitas para todo mundo. Se existe alguma solução, baseia-se mais em como podemos encará-la como sociedade do que como indivíduos.
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“A indústria da felicidade se alimenta da insatisfação constante”. Entrevista com Edgar Cabanas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU