14 Agosto 2019
“Negar a existência da felicidade pode parecer uma mensagem negativa, mas o consolo reside em saber que as emoções negativas não representam um fracasso pessoal. A tristeza intermitente não é um defeito que exija uma reparação urgente, como pregam os gurus da felicidade. Ao contrário, essa tristeza é o que te faz humano”, escreve o psiquiatra Rafael Euba, do King’s College London, em artigo publicado por El Diario, 12-08-2019. A tradução é do Cepat.
A felicidade é uma ideia abstrata, sem base biológica e sem paralelo na experiência humana real.
Não fomos ‘traçados’ para ser felizes, mas para sobrevivermos e reproduzirmos, como todas as outras criaturas do mundo. Uma pessoa satisfeita não se manteria em alerta diante de possíveis ameaças para a sua sobrevivência, sendo assim, os estados de satisfação permanente não existem na natureza.
No entanto, a enorme indústria do pensamento positivo, que se estima que gera 11 bilhões de dólares por ano, ajudou a criar a fantasia de que a felicidade é uma meta realista.
“Vida, liberdade e busca da felicidade”.
São os três direitos inalienáveis incluídos na Declaração da Independência Americana. A frase provém da de John Locke: “Cuidadosa e constante busca da felicidade verdadeira e sólida”.
O direito a buscar a felicidade não é o mesmo que o direito a adquiri-la, mas, de qualquer modo, esse objetivo se tornou um conceito muito americano, exportado para o resto de nós por meio do veículo da cultura popular estadunidense.
Este “direito inalienável” criou uma expectativa que a vida real, infelizmente, teimosamente se nega a satisfazer.
Até mesmo quando todas as nossas necessidades materiais e biológicas estão satisfeitas, um estado de felicidade sustentável continua sendo uma meta teórica e evasiva. É o que descobriu Abderrahman III, Califa de Córdoba, no século X.
Abderrahman III foi um dos homens mais poderosos de seu tempo, desfrutou de conquistas militares e culturais, bem como de prazeres terrenos que lhe proporcionavam seus dois haréns. Ao final de sua vida, decidiu contar o número exato de dias em que se sentiu feliz. Chegavam a 14.
A felicidade, como disse o poeta brasileiro Vinicius de Moraes, é “como a pluma que o vento vai levando pelo ar. Voa tão leve, mas tem a vida breve”. É algo imaterial, para a qual a satisfação de nossas necessidades é um requisito necessário, mas insuficiente.
O fato de que a evolução nos deu um grande lobo frontal em nosso cérebro (com suas excelentes habilidades executivas e analíticas), mas nos negou a habilidade natural de ser feliz, diz muito acerca das prioridades da natureza.
Também se argumenta que se a natureza não eliminou a depressão no processo evolutivo, apesar das evidentes desvantagens que apresenta, é porque pode cumprir uma função útil em tempos de adversidade.
Por exemplo, pode ajudar o deprimido a abandonar uma situação que não pode superar. Tem sido postulado que as ruminações depressivas também podem ajudar a encontrar uma solução para os problemas que alguém enfrenta em tempos de adversidade.
Muitas vezes, é dito que só é possível alcançar a felicidade por meio de um estado de harmonia com a natureza. Isto se baseia no fato de que evoluímos em um ambiente natural, mas a natureza e a seleção natural só se atêm a imperativos aleatórios. Para a natureza não importa em absoluto o bem-estar do indivíduo, apenas sua sobrevivência.
A chave da felicidade não se encontra, portanto, na natureza.
A indústria atual da felicidade deriva seus valores dos códigos religiosos, que sempre atribuem uma razão moral à infelicidade. Dizem-nos que nossa infelicidade se deve a nossas próprias carências morais, a nosso egoísmo e a nosso materialismo. Defendem um estado de virtuoso equilíbrio psicológico, que se alcança por meio da renúncia, do desapego e do controle do desejo.
Estas estratégias só buscam uma cura para nossa incapacidade natural de desfrutar da vida de forma consistente. Nossa infelicidade não é culpa nossa. A culpa é de nosso traço natural. Está em nossos genes.
Os defensores de uma rota moralmente virtuosa à felicidade também condenam os atalhos químicos oferecidos pelas drogas psicotrópicas. George Bernard Shaw disse: “Não temos mais direito a consumir felicidade sem produzi-la, que a consumir riqueza sem produzi-la”.
Aparentemente, é necessário conquistar o bem-estar psicológico com esforço, o que prova que não é um estado natural. Os habitantes do romance de Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo, vivem felizes com a ajuda do soma, uma droga que os mantém dóceis e contentes.
Em seu romance, Huxley dá a entender que um ser humano livre deve inevitavelmente se sentir atormentado pelas emoções difíceis. Se nos dão a opção entre tormento emocional e placidez feliz, suspeito que muitos escolheriam a última. O soma não existe, portanto, o problema não é que o acesso a um estado de satisfação constante por meios químicos seja imoral, mas, sim, que é impossível.
As substâncias químicas alteram a mente (o que, às vezes, pode ser bom), mas uma vez que a felicidade não está vinculada a um padrão particular de função cerebral, não podemos replicá-la quimicamente.
Nossas emoções são mistas e impuras, desordenadas, complexas e, às vezes, contraditórias. Certos estudos mostraram que as emoções e os afetos positivos e negativos podem coexistir no cérebro e ser relativamente independentes um do outro.
Este modelo mostra que o hemisfério direito processa sobretudo as emoções negativas, ao passo que as positivas são processadas pelo lado esquerdo.
Sobreviver e se reproduzir são tarefas difíceis, sendo assim, precisamos estar preparados para lutar e nos esforçar, buscar gratificação e segurança, combater ameaças e evitar a dor.
O modelo de emoções encontradas, baseado na coexistência do prazer e da dor, se acomoda a nossa realidade muito melhor que a dita inalcançável que a indústria da felicidade quer nos vender. Além disso, pretender que a dor seja algo anormal ou patológico, algo evitável para aqueles que sabem como agir, só gerará no resto de nós sentimentos de fracasso e frustração.
Negar a existência da felicidade pode parecer uma mensagem negativa, mas o consolo reside em saber que as emoções negativas não representam um fracasso pessoal. A tristeza intermitente não é um defeito que exija uma reparação urgente, como pregam os gurus da felicidade. Ao contrário, essa tristeza é o que te faz humano.
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Você não foi traçado para ser feliz, então não tente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU