28 Abril 2019
Com o individualismo, floresceu a happycracia, que transforma a autosatisfação num dever, a ser alcançado apesar das misérias mundanas. Que tal propor, como alternativa, o conflito transformador — sentido essencial da política?
O artigo é de José Durán Rodriguez, publicado por El Salto e republicado por Outras Palavras, 25-04-2019. A tradução é de Ricardo Cavalcanti-Schiel.
No inverno de 2013, a multinacional de refrigerantes Coca-Cola anunciou na Espanha o lançamento de uma página web com mais de 400 estudos sobre felicidade e saúde, que se pretendia como referência no campo das pesquisas sobre bem-estar. O fez por meio do Instituto Coca-Cola da Felicidade, constituído no âmbito da divisão espanhola da companhia, que em 2010 e 2012 já tinha organizado em Madri duas edições de um evento denominado Congresso Internacional da Felicidade.
Entre o artifício publicitário e a produção de uma imagem amigável para a marca, sob o álibi filantrópico de responder ao crescente interesse sobre o tema, a Coca-Cola se juntou a uma agenda global que propõe ser feliz como resposta para todos os males.
Margarita Álvarez é uma das 50 mulheres mais poderosas da Espanha, segundo a revista Forbes, e também foi incluída na lista das 100 mulheres mais influentes do país em 2016, na categoria das executivas, elaborada pelo portal Mujeres&Cia [Nota do Tradutor: algo como a versão espanhola exclusivamente feminina da revista Você S.A.]. Álvarez criou e presidiu o Instituto Coca-Cola da Felicidade entre janeiro de 2008 e março de 2011. Ela acaba de publicar Desconstruindo a felicidade, um livro cujo propósito, conforme se lê na nota de imprensa divulgada pela editora Alienta [N. do T.: em português, “Encoraja”], é “ajudar a você a averiguar se a felicidade realmente existe e, se existe, determinar onde pode encontrá-la”.
A nota acrescenta que nas suas páginas não há “regras nem pautas, só conhecimento. Porque saber e possuir informação sobre algo tão relevante, ajudará a você a entender como funciona o cérebro, como pode utilizar os seus pensamentos e como pode identificar e aceitar todas as suas emoções, para enfrentar melhor as circunstâncias da vida”.
Parece pouco provável que a ideia de ser feliz com que lida Álvarez tenha alguma relação com a que possam ter, por exemplo, as mais de 800 pessoas demitidas da fábrica da Coca-Cola de Fuenlabrada (Madri) desde 2014. A dela se trata, antes, de mais uma das vozes dos privilegiados que durante os últimos 30 anos participaram da construção e propagação de uma noção de felicidade que repousa sobre o ímpeto, a vontade e a superação individual como ferramentas para alcançá-la. Livros de autoajuda, oficinas de pensamento positivo e palestras motivacionais difundiram a miragem de que ser feliz está ao seu alcance e que não é preciso mais que desejá-lo.
Nesses tempos da mais grave crise econômica mundial desde o crack de 1929, discursos como esse encontraram um público desesperadamente receptivo, ao qual que se oferece bem-estar simplesmente olhando para dentro de si, sem ter que se relacionar com absolutamente mais ninguém. Claro, não é exatamente assim: essa felicidade prometida passa necessariamente por poder pagar, porque o que há detrás dela tem muito pouco de altruísta.
“Toma-se como ponto de partida que se trata de uma escolha pessoal e que, para ser feliz, basta que uma pessoa decida ser e se dedique a isso por meio de uma série de guias, conselhos, técnicas, exercícios, que esses pretensos especialistas dos mais diversos campos propõem: cientistas, psicólogos, coaches, escritores de autoajuda e uma enorme quantidade de profissionais que voejam no mercado da felicidade”, explica Edgar Cabanas. Esse doutor em Psicologia e pesquisador da Universidade Camilo José Cela, de Madrid, é o autor, junto com Eva Illouz, de Happycracia (Ed. Paidós, 2019), um ensaio que passa o bisturi nos argumentos manuseados pela “ciência da felicidade”; argumentos que ignoram questões sociais, morais, culturais, econômicas, históricas ou políticas, para apresentar teses em aparência objetivas.
“Enquanto a predisposição dessa ideia de felicidade é a de produzir seres completos, realizados, satisfeitos, o que acaba ficando é uma permanente insatisfação: a felicidade é concebida como uma meta que nunca se alcança, que nunca chega a se materializar. É sempre um processo constante, que faz a pessoa embarcar em uma busca obsessiva de maneiras de melhorar a si mesma, seu estado emocional, a administração de si no trabalho, na educação, na intimidade”, sustenta Cabanas.
Nesse sentido, a pesquisadora Sara Ahmed, que publicou há uma década The Promise of Happiness [A promessa de felicidade] (Duke University Press, 2010), traduzido para o espanhol este ano pela editora argentina Caja Negra, assinalava em março, em uma entrevista para El Salto que “a felicidade, como promessa de viver de um determinado modo, é uma técnica para dirigir as pessoas”.
Tornando as coisas ainda mais precisas, Fefa Vila Núñez, professora de Sociologia do Gênero na Universidade Complutense de Madrid, nota que essa concepção “nos impele, nos ordena e dirige em direção ao consumo, vinculado este a uma ideia de vida sem fim, forjada sobre um hedonismo sem limites, onde melancolia e tecnofilia [N. do T.: a obsessão pela tecnologia] se unem num abraço íntimo, para conformar a noção de ganho, de êxito, de imortalidade, de um prazer infinito para aquele que não se desvie do caminho traçado”.
A pesquisadora encontra a origem desse discurso num “maquinário de felicidade” ativado depois da I Guerra Mundial e relacionado a um “capitalismo de consumo” que foi modelando a noção de felicidade até nossos dias.
O livro de Margarita Álvarez conta com duas assinaturas convidadas muito significativas. O prólogo é de Marcos de Quinto, ex-vice-presidente da Coca-Cola Espanha e número dois, por Madri, do [partido de direita] Ciudadanos nas próximas eleições gerais. Já o posfácio fica a cargo de Chris Gardner, cuja história costuma ser usada como exemplo pela assim chamada “psicologia positiva”. Como exceção tendenciosamente convertida em regra, a biografia de Gardner vai da pobreza ao êxito empresarial, tendo sido retratada no filme Em busca da felicidade, de 2006, protagonizado por Will Smith. Gardner é hoje um multimilionário que se dedica à filantropia e a dar conferências sobre como a felicidade depende da vontade individual. “Se você quiser, pode ser feliz” é sua mensagem.
Um nome chave no desenvolvimento da “ciência da felicidade” é o de Martin E. P. Seligman [N. do T.: ironicamente homônimo (talvez até de forma deliberada) do personagem de Lars von Trier no filme “Ninfomaníaca”, de 2013]. Eleito, em 1998, presidente da Associação Norte-Americana de Psicologia (APA, em sua sigla em inglês), pode ser considerado como um dos fundadores da “psicologia positiva”, uma vez que participou de seu manifesto introdutório, publicado no ano 2000.
Seligman propõe um novo enfoque sobre a saúde mental, distanciado da psicologia clínica e enfocado na promoção do que ele considera “positivo”, a vida boa, para encontrar as chaves do crescimento pessoal.
No seu escritório na APA, Seligman rapidamente começou a receber polpudas doações e cheques de vários zeros, procedentes de lobbies conservadores e instituições religiosas interessadas em promover a noção de felicidade que essa nova corrente da psicologia promulga. A difusão, pelos meios de comunicação e outros canais, de algumas de suas publicações gerou a impressão de que existiria uma disciplina científica capaz de aportar chaves inéditas para alcançar o bem-estar. A repercussão dessas teorias foi mundial. No entanto, seus objetivos, resultados e métodos foram criticados pela falta de consenso, definição e rigor científico.
“Mais que enganosas, eu diria que podem ser perigosas em termos sociais e políticos, além de decepcionantes em termos pessoais”, considera Cabanas, que indica o mercado, as empresas e a escola como agentes principais na elaboração e divulgação de certas noções que se articulam diretamente com valores culturais arraigados no pensamento liberal norte-americano.
Seligman [N. do T.: de fato, inacreditavelmente homônimo do personagem cheio de teorias e equações do filme citado de Lars von Trier; personagem que, ao final, cede a seus próprios impulsos predatórios] chegou a formular uma equação que explicaria a proporção de fatores que dão como resultado a felicidade. Ela seria a soma de uma grandeza pré-definida (a herança genética) com variáveis da ação voluntária e de circunstâncias pessoais. Sua fórmula outorga ao primeiro fator o peso de 50%, ao fator volitivo o peso de 40%, e tão apenas 10% a todo o resto que diz respeito a coisas como nível de renda, educação ou classe social. Seguindo essa receita, a psicologia positiva tem sido categórica ao considerar que o dinheiro não influi substancialmente na felicidade humana, por exemplo.
Em The Promise of Happiness [A promessa de felicidade], Ahmed resumiu a tautologia que sustenta o campo da psicologia positiva. Toda ela “se baseia nesta premissa: se dizemos ‘sou feliz’ ou fazemos outras declarações positivas sobre nós mesmos ― se praticamos o otimismo ao ponto de vermos que o lado amável das coisas possa se converter em rotina ―, seremos felizes”.
Da página web apresentada pela Coca-Cola como o grande arquivo sobre a felicidade, não restou absolutamente nada cinco anos depois.
Desde 2013, 20 de março é celebrado como o Dia Internacional da Felicidade. Em sua resolução 66/281 de 2012, a Assembleia Geral da ONU determinou essa data para reconhecer a relevância da felicidade e do bem-estar como aspirações universais dos seres humanos, e a importância de sua inclusão nas políticas de governo. Trata-se de uma medida controversa, pela dificuldade de encontrar indicadores objetivos que quantifiquem o grau de felicidade, além das repercussões derivadas de sua conversão em norteadora de ações de governo, em prioridade a outras metas como a redução das desigualdades, a luta contra a corrupção e o desemprego. Em outras palavras, o risco de que a administração da coisa pública preste mais atenção a um guru da mindfulness [N. do T.: “atenção plena”] que aos sindicatos é real.
“As formas de fazer política baseadas na felicidade ― opina Cabanas ― implicam exaltar as questões individuais e desfigurar as sociais, objetivas e estruturais. Deposita-se toda ênfase em que o mais importante é a forma como os indivíduos se sentem, como se a política se reduzisse a fazer se sentir bem ou mal, e não tivesse nada a ver com um debate moral ou ideológico”.
Depois de aprovar alguns dos cortes orçamentários mais significativos da história do país, especialmente sobre gastos sociais, em fins de novembro de 2010 o primeiro ministro britânico David Cameron propôs a realização de uma pesquisa para medir a felicidade dos cidadãos, no intento de difundir junto à opinião pública a ideia de que o bem-estar se encontra em outras variáveis diferentes do Produto Interno Bruto. Essa parece ser uma iniciativa recorrente em vários países, e que pode ser entendida como uma cortina de fumaça para distrair a atenção.
Em 2016, o primeiro ministro e vice-presidente dos Emirados Árabes Unidos, xeque Mohamed ben Rashid Al Maktoum, anunciou a criação do Ministério da Felicidade, para produzir no país “gentileza social e satisfação como valores fundamentais”. Do mesmo modo, dispôs essa novidade no âmbito de una série de reformas, entre as quais se destacava a permissão ao setor privado de se encarregar da maioria dos serviços públicos.
No seu relatório de 2017/2018 sobre Direitos Humanos, a Anistia Internacional concluía que os Emirados Árabes Unidos restringem arbitrariamente o direito à liberdade de expressão e de associação, que continuavam presas dezenas de pessoas condenadas em processos viciados, muitas encarceradas por suas ideias políticas, e que as autoridades emiratis mantinham os detidos sob condições que podiam ser configuradas como tortura. Também assinalava que os sindicatos continuavam proibidos e que os trabalhadores imigrantes que participassem de greves podiam ser expulsos, sob proibição de regressar ao país durante um ano.
Os Emirados Árabes Unidos ocupam a posição 21 de um total de 156 países, na edição de 2019 do Relatório Anual sobre Felicidade Mundial, que as Nações Unidas publicaram no tal dia 20 de março. Trata-se da sétima edição de um estudo que, neste ano, conforme seus autores, colocaria o foco na relação entre felicidade e comunidade e em como a tecnologia da informação, os governos e as normas sociais influem nas comunidades. Finlândia, Dinamarca e Noruega se situam no pódio desse ranking tão peculiar, enquanto Israel e Estados Unidos ― dois países com enormes taxas de desigualdade e pobreza; o primeiro, aliás, sustentado sobre a discriminação da população palestina ― alcançam os postos 13 e 19 respectivamente.
A felicidade na Espanha a teria elevado, em um ano, do 36º ao 30º lugar nessa lista cuja confecção levaria em conta variáveis como expectativa de vida saudável, assistência social, liberdade para a tomada de decisões, generosidade e percepção da corrupção [N. do T.: Há uma ironia sutil no texto, que pode passar desapercebida por aqueles menos familiarizados com a situação política espanhola: são exatamente essas “variáveis” que vêm sendo objeto de considerável inquietação pública no país].
Sobre os meandros onde se entrecruzam política e felicidade conhece muito bem a filósofa Victoria Camps, senadora pelo Partido dos Socialistas da Catalunha (PSC) entre 1993 e 1996 e ganhadora do Prêmio Nacional de Ensaio de 2012 com o livro El gobierno de las emociones (Editorial Herder, 2011). Na sua opinião, a busca da felicidade é “um direito, expresso de diferentes formas: o direito à igualdade, a ter uma certa proteção por parte dos poderes públicos, para que todos, e não apenas uns poucos, tenham a liberdade necessária para escolher uma certa forma de vida”. Por isso, considera que a política não deve garantir a felicidade, mas que “possamos buscar a felicidade”. Ela entende que o modelo de Estado do bem-estar “ia nessa direção, de proteger socialmente os mais desprotegidos, redistribuir a riqueza e igualar as condições de felicidade”. Para essa filósofa, o Estado do bem-estar social está em crise, mas acredita que “era um bom modelo e que deveria ser estimulado, buscando adaptá-lo à novas necessidades, corrigindo aquilo que não funciona mais”.
Camps conversa com El Salto sobre seu recente ensaio, intitulado precisamente La búsqueda de la felicidad (Arpa Editores, 2019). Como filósofa, zela pela distância entre a sua disciplina e o palavrório da autoajuda: “Creio que estão nos antípodas uma coisa da outra. A filosofia não dá receitas, mas propõe questões e obriga a aprofundar, a pensar, a encontrar soluções”. Também lembra algo que o paradigma da psicologia positiva tende a esquecer: “As condições materiais afetam bastante. Aristóteles que o diga: a felicidade não está na riqueza, na honra, no êxito, mas isso tudo é necessário para ser virtuoso. Ou como dizia Bertolt Brecht: primeiro é preciso comer, e depois falar de moral”.
Por fim, reflete sobre alguns aspectos nocivos resultantes dessa promoção da felicidade como objetivo impositivo: “O que ela busca é que as pessoas estejam contentes e não incomodem muito. Em todos os domínios ― na política, na empresa, na educação ― isso é buscado por vias muito similares às da autoajuda, de forma muito simples, que não tem nada a ver com a felicidade. Na política, todas as medidas antipopulares, difíceis de explicar mesmo que sejam boas para as pessoas, são difíceis de propor porque amedrontam os políticos, que preferem que as pessoas estejam contentes com medidas muito mais simples”.
Em uma entrevista publicada na página web de El Salto em junho de 2018, o músico asturiano Nacho Vegas falava de reivindicar a infelicidade, já que, na sua opinião, “há momentos em que parece que vivemos nisso que Alberto Santamaría chama de capitalismo afetivo, no qual algumas empresas medem quanto custa para elas a infelicidade dos seus trabalhadores, e se esforçam, com essas ondas motivacionais e de coaching, não a criar felicidade, porque o capitalismo não pode fazer isso, mas em mudar a resposta das pessoas diante da infelicidade”.
Alberto Santamaría é professor de Teoria da Arte na Universidade de Salamanca. No ano passado publicou En los límites de lo posible [Nos limites do possível] (Ed. Akal), uma tentativa de rastrear a forma como a criatividade, as emoções ou a imaginação possam conformar um mapa afetivo propício para a prosperidade econômica. “As empresas estão se dando conta de que a infelicidade, a depressão, são problemas gravíssimos. Pois bem, o que buscam não é uma solução direta. Sua estratégia se baseia em ampliar a dinâmica de duplo reforçamento entre relação mercantil e desejos. Assim, a narrativa empresarial quer nos vender a noção de que o único lugar onde realmente seremos felizes é aquele do trabalho”, comentou a El Salto.
Para Isabel Benítez, socióloga e jornalista especializada em trabalho e conflitos laborais, a resposta que as empresas oferecem diante da infelicidade dos seus quadros de funcionários é um “mecanismo sofisticado de domesticação, que busca implementar tanto a produtividade direta, ao tentar melhorar a satisfação, lançando mão dos recursos emocionais íntimos das pessoas, como também a produtividade indireta: de reduzir o conflito trabalhista, que é a articulação coletiva do mal-estar comum”. Na sua opinião, é “imensamente difícil” que no trabalho assalariado se encontre uma possibilidade de realização pessoal-profissional, ainda que observe que “no nível individual há, sim, quem o consiga, apesar da instabilidade, da arbitrariedade, da falta de perspectiva, da ausência de controle sobre o quê, o como e o ‘para quê’ do seu trabalho”.
Benítez escreveu, junto com Homera Rosetti, La huelga de Panrico [A greve de Panrico] (Ed. Atrapasueños, 2018), um livro sobre a experiência da greve indefinida que o efetivo de funcionários da única fábrica na Catalunha da antiga panificadora Panrico manteve entre outubro de 2013 e junho de 2014 [N. do T.: A firma buscava reduzir salários e demitir quase 2.000 funcionários, na tentativa de se ajustar aos problemas econômicos, que acabaram sendo superados sem essas medidas, possibilitando a venda da empresa, em condições superavitárias, dois anos depois, para um grupo mexicano]. Ela acredita que os momentos de organização, de ganho de posições e de conquista de mudanças no campo laboral são, estes sim, fonte de satisfação e crescimento para os trabalhadores, apesar de todos os obstáculos.
Por isso, considera que a greve não deixa ninguém na indiferença: “É una alteração da normalidade em que se incrementa a sociabilidade entre trabalhadores, se põe à prova a capacidade de análise e de organização coletiva, e se descobrem habilidades ‘ocultas’: criatividade em todos os níveis para pensar ― onde, quando, como pressionar a empresa, para poder dirigir-se aos demais colegas de trabalho, para ativar solidariedades externas a ele –, para fazer — construir piquetes, acampamentos –, para negociar, para planejar. As greves, os processos de luta coletiva, modificam as pessoas que participam. São momentos de muita tensão e emoção, em todos os sentidos”.
“Mas para mim tem um gosto tão ruim!…”, diz a letra de uma canção do grupo de rock espanhol Los Enemigos, que reconhece o incômodo próprio diante de alguém que consegue sorrir quando a ocasião exige, alguém que distingue os meios dos fins e sabe até onde pode ir, diante de alguém, em suma, que é tão feliz e que se entrosa bem. A canção, incluída no disco “La vida mata” (1990), pode ser lida como uma antecipação ao agastamento diante da impossibilidade de alcançar essa meta da felicidade sugerida como ideal a partir de tantas frentes. Mas também, em certa medida, como uma reação.
Quase trinta anos depois da sua gravação, Edgar Cabanas observa que está se gerando na Espanha uma certa consciência crítica. “O outro discurso ganha porque é mais simplista, facilmente traduzível em manchetes, incorporável em políticas empresariais, comercializável, mas também cresce um terreno fértil, um meio de cultura crítico para se contrapor a ele”, nota o coautor de Happycracia.
A professora Vila Núñez defende que “enquanto houver resistência, não há triunfo”, mesmo que não tenha dúvidas de que estamos em uma nova fase do avanço do capitalismo, “um estágio sofisticado, definido pelo assalto ao desejo, à própria subjetividade. Um inferno à medida do nosso desejo, nos lembraria hoje, se estivesse entre nós, Jesús Ibáñez. Já não somos apenas corpos disciplinados, mas desejos expropriados, corpos sem memória”.
No seu entendimento, numa sociedade que afirma o imperativo da felicidade “nada mais tem sentido porque nada tem nem princípio nem fim, só existe o ‘vai!’, o ‘just do it!’, porque não há nem lembranças nem compromissos, não somos ninguém, não viemos de parte alguma e não vamos a parte alguma. Esse é o estado da questão, é o conto do balanço das contas: Sísifo arrastando a pedra que, ao chegar ao alto, sempre está à beira de cair”.
La vida de las estrellas [A vida das estrelas] (Ed. La Oveja Roja), segundo romance de Noelia Pena, foi publicado ao final de 2018. Trata-se de um relato sobre outras realidades, que não aquelas impostas pelo arquétipo da pessoa triunfante, o self-made winner e feliz; realidades que essa figura pretende ocultar. Para a autora, o que interessava ― diz ela a El Salto ― era “lançar um pouco de luz sobre certos problemas e conflitos que nem sempre queremos encarar, como a doença, a solidão, o isolamento, o abuso. A proliferação de patologias como a ansiedade e a depressão evidencia que esse sistema não nos deixa viver: nos espreme e asfixia. O que acontece quando uma depressão nos impede trabalhar ou quando perdemos um emprego? Nossa segurança se estremece, e com ela o modelo de vida que projetamos em torno do êxito profissional”.
Pena acredita que o grande problema social continua sendo a emancipação, e trata disso no seu livro, mas garante que não pretendeu que seus personagens fossem o contraponto ao que prescreve a psicologia positiva: “O que se pode ver nos problemas dos personagens do romance é a dimensão coletiva dos mal-estares contemporâneos. Apesar do individualismo crescente, grande parte dos nossos problemas tem dimensão social: a solidão dos personagens, para não ir muito longe, especialmente dos mais velhos. Tanto a mindfulness como os livros de autoajuda tentam nos convencer de que, mudando nossa mente, podemos mudar a realidade e, individualmente, podemos alcançar a felicidade. Mas como ser feliz, se a solução para os nossos problemas não é individual, mas comporta decisões alheias, sejam políticas, médicas ou então que apontam para estruturas de poder assentadas há séculos, ou para a violência sobre nossos corpos por parte de outras pessoas?”. A resposta a essa pergunta é, possivelmente, a mais importante de todas as que se buscam ao longo da vida.
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