16 Mai 2020
"Talvez você já não esteja suportando ter que ficar estes meses isolado. Porém, aproveite-os para refletir sobre o seu eu. Busque libertar-se de suas compulsões que fornecem uma falsa imagem sua. Encare a tua própria imagem e não fuja de si mesmo. Lembre-se que estamos neste mundo para amar e propagar a compaixão conosco e com os outros", escreve Ademir Guedes Azevedo, padre, missionário passionista e mestre em teologia fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana.
Reuniões, conferências, passeios, cursos, fóruns, projetos e agendas preenchidas por variados compromissos: eis o retrato do homem contemporâneo, inserido na chamada sociedade de desempenho, tão bem ilustrada pelo filósofo Byung-Chul Han. Estar ocupado faz parte do perfil ocidental, orgulhoso da ideia de progresso. Tem-se que fazer algo, mas tudo vem estabelecido pelo jeito de viver da sociedade. O nosso “eu” para existir deve ocupar-se com aquilo que produz dinheiro, fama e uma vida próspera. Fora deste credo, é como se nada valesse a pena, assim aprendemos desde cedo com as propagandas e com toda a concorrência pelas melhores vagas que garantirão o nosso futuro. Por outro lado, este estilo de vida põe o eu em agonia, levando-nos a perguntar se a vida realmente consiste apenas nisso. Tudo indica que não, pois a chegada de um vírus está aos poucos nos dando esta lição.
Mais uma vez, o espiritual Henri Nouwen nos propõe uma via alternativa, aquela que se refere ao caminho do coração. O fio condutor nos vem da sabedoria dos padres e mães do deserto. Nouwen insiste que o envolvimento excessivo do sujeito com o aparato de coisas criadas pela sociedade moderna serve para nutrir um “eu compulsivo” que nos deixa ansiosos, frenéticos e, o mais terrível: vazios de sentido. Ele defende que só a solidão, como fornalha de transformação, pode curar nosso eu compulsivo daquelas falsas ilusões que criamos de nós mesmos. O resultado de tal transformação reside no eu compassivo.
Neste sentido, pode-se falar da agonia do eu. Desde que começamos a ser educados a partir da ideia de que temos que concorrer para conquistarmos algo de relevante na vida, o nosso eu entra num estado de tensão. Tornamo-nos distraídos e ansiosos. Mergulhamos em situações que nos fazem gastar energia mental. O mundo da propaganda se encarrega de estabelecer o padrão de vida que está em voga no momento e que devemos acompanhá-lo para sermos aceitos. Este tipo de ditadura mascarada exerce uma violência emocional a ponto de nos esquecermos que a felicidade não está fora, mas dentro de cada um de nós.
Para nos libertarmos de tal agonia, é urgente fazermos de nós mesmos objeto de reflexão. Para isso, se faz necessário a solidão, não como isolamento infértil, nem tão pouco como uma pausa para recarregar as energias e depois voltarmos a correria de sempre. É, antes de tudo, a libertação total de nossas compulsões que falsificam a verdade do nosso ser. A solidão real é o caminho que me põe diante do meu eu, em seu aspecto nu e cru. Para entender isto, se imagine despido de seus títulos, dos elogios daqueles que pensam igual a você. Avance mais um pouco e imagine-se como aquele jovem da Galileia que, em uma cruz, se sente abandonado e sem nenhum poder. É justamente a partir de tal experiência que o eu compulsivo realiza aquele salto qualitativo de libertação, pois ele se vê privado de qualquer compulsão satisfatória. Resta, contudo, apenas você diante de si mesmo, porém livre interiormente para recomeçar de cabeça erguida. É neste sentido que a solidão se trata de uma fornalha de transformação, pois ela é como que nos reduzisse a cinzas e nos fizesse renascer de novo, como a fênix da mitologia grega.
Se todo este processo consiste em um dar à luz um novo eu, então resta-nos saber qual é este novo ser que renasce das cinzas. Nouwen dirá que o eu compulsivo, após passar pela fornalha da solidão, renasce na forma de compaixão. O seu comportamento mais sublime é aquele de nunca julgar a ninguém. A sociedade do desempenho funciona a partir da classificação dicotômica das pessoas, separando-as entre aquelas que são mais eficientes e capazes daquelas que não podem dar frutos, estas se tornam descartadas devido as suas limitações que as impedem de competir. Porém, um eu compassivo aceita o outro independente de seus defeitos. Acolhe a ferida alheia e simplesmente convive com ela, pois não vê o outro como obstáculo, mas amplia a visão do coração, a fim de enxergar o invisível que está dentro do mistério que cada um traz em seu ser.
Estamos todos confinados nesta pandemia. Talvez você já não esteja suportando ter que ficar estes meses isolado. Porém, aproveite-os para refletir sobre o seu eu. Busque libertar-se de suas compulsões que fornecem uma falsa imagem sua. Encare a tua própria imagem e não fuja de si mesmo. Lembre-se que estamos neste mundo para amar e propagar a compaixão conosco e com os outros. Tenho certeza de que você renascerá um ser humano mais forte e maduro, com mais resiliência e capacidade de acolher o próximo. Seja corajoso e liberte o eu de sua agonia. Vamos em frente!
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A agonia do eu - Instituto Humanitas Unisinos - IHU