29 Abril 2020
"Neste contexto, em que as comunidades cristãs voltaram seu olhar e suas energias para o ambiente digital - uma vez que os recursos tecnológicos nos ajudam a suprir a distância física neste período de cautela - esta obra merece atenção e cuidadoso estudo com grandes benefícios para a Igreja do Brasil", escreve Eliseu Wisniewski, ao apresentar o livro de Moisés Sbardelotto, "Comunicar a fé. Por quê? Para quê? Com quem?".
Eliseu Wisniewski é presbítero da Congregação da Missão Província do Sul (padres vicentinos), mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e professor na Faculdade Vicentina (FAVI).
Para o cristianismo, o atual cenário mundial – diversificado, complexo e mutante – representa um enorme desafio. O fim da “cristandade” e o advento do pluralismo cultural e religioso sacudiram mentalidades, comportamentos e posturas e, com isso, geraram a perda de chão, a crise de referências, nas certezas e nas identidades. O impacto das mudanças coloca a Igreja diante da ineficácia das mediações através das quais a missão da Igreja se concretiza e manifestam o Reino de Deus (cf. Mc 6,7).
Frente a isso, muito já se discutiu e se refletiu sobre a missão e a presença da Igreja no atual momento histórico. Apesar das mudanças radicais pelas quais estamos passando, sem o discernimento feito a partir da fé e condizentes com o Reino de Deus, corremos o risco de nos apegar a mediações anacrônicas, descontextualizadas, defasadas, obsoletas. Quais são as melhores mediações para responder e transmitir os dados da fé em um mundo como o atual sem a tentação de nos deixar levar pelos imediatismos, pragmatismos, providencialismos, fundamentalismos, relativismos e indiferença? Eis a pergunta a ser feita.
Moisés Sbardelotto – jornalista, graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestre e doutor em Ciências da Comunicação pela Unisinos, professor colaborador do PPG em Ciências da Comunicação da Unisinos, palestrante, tradutor e consultor em Comunicação para diversos órgãos e instituições civis e religiosas – na obra "Comunicar a fé. Por quê? Para quê? Com quem?", páginas que “nasceram de um caminho comunicacional de escuta, acompanhamento e diálogo sobre a missão e a pastoral da Igreja” (p.12), coloca-nos diante do “desafio de aprender e apreender o estilo cristão de comunicar a fé” (p. 13).
Livro "Comunicar a fé. Por quê? Para quê? Com quem?"
de Moisés Sbardelotto
O autor, partindo da premissa que o ser humano é um ser comunicacional (p. 11), entende que neste período histórico comunicar é uma tarefa repleta de possibilidades e desafios (cf. p. 11), uma vez que “os processos de comunicação são os mais diversos e interagem entre si de modo cada vez mais complexo” (p. 11). Daí a relevância da reflexão proposta pelo autor, acompanhada de algumas provocações: qual o papel da Igreja e de cada cristão e de cada cristã em relação a isso; e em meio a tanta conectividade por que as pessoas não são mais felizes e realizadas em seus vínculos; por que as sociedades não mantêm-se mais coesas e harmônicas; e por que o mundo não se torna mais solidário e pacífico. Então, a pergunta: Como reanimar nas pessoas a alegria de viver e conviver?
Como resposta às interrogações, Sbardelotto, propõe a fé cristã – fé na vida, fé em Alguém, fé que se comunga e se comunica (cf. p. 12). Um referencial disto é o Papa Francisco: “Uma pessoa que, ao mesmo tempo, entusiasma e realimenta a fé e também desafia a própria noção eclesial de comunicação” (p. 12). Inspirando-se na práxis comunicacional de Francisco, que “se explicita em suas ideias encarnadas em ações” (p. 13), o autor reflete sobre a comunicação cristã, eclesial e pastoral e propõe algumas “releituras dos textos do papa a partir do olhar comunicacional sobre a ação evangelizadora da Igreja” (p. 13). Faz notar ainda que, “deixando-nos guiar pelo pensamento-ação de Francisco, seremos convidados a experimentar a alegria do Evangelho e também a aprender o estilo cristão de comunicar a fé, com alegria, ao mundo de hoje” (p. 13).
O livro está dividido em três partes, sendo prefaciado pelo padre jesuíta estadunidense James Martin, colunista da revista America e consultor do Dicastério para Comunicação do Vaticano. Para Martin, “entender o discernimento é fundamental para entender a comunicação da fé hoje” (cf. p. 7-9).
Na primeira parte, "Comunicação e fé hoje: por quê? Para quê? Com quem?" (p. 15-58), busca-se através de oito (8) provocações a partir de uma releitura comunicacional de alguns trechos bíblicos - repensar a ação evangelizadora como ação de comunicação. Reflete-se assim:
1) as raízes cristãs da Comunicação (p. 17-19);
2) a comunicação como ação cosmogênica (p. 20-22), a comunicação como ação ecológica (p. 22-25), a comunicação como ação alterizante (p. 25-30);
3) nos relatos da Anunciação e Encarnação de Jesus (Lc 1,26-38) os cinco eixos da comunicação: a) comunicação é construção de sentido (p. 31-32), b) comunicação é uma dinâmica alterizante (p. 32-33), c) comunicação é diálogo e discurso em tensão criativa (p. 33), d) comunicação é processo em “beta aberta”: complexo, histórico, infinito (p. 33-34), e) comunicação é transformação da realidade (p. 34-35);
4) a comunicação encarnada de Jesus: a) linguagem do povo (p. 38-39), b) linguagem do corpo (p. 39-41);
5) a espiritualidade encarnada do comunicador cristão (p. 42-45);
6) não a mundanidade comunicacional (p. 46-49);
7) a relação entre evangelização e marketing: “evangelizar não é mercadejar” (p. 50) – a autêntica evangelização como comunicação cristã no contexto da cultura do descartável - entende que: a) a comunicação cristã é dom (p. 51-52), b) a comunicação cristã é um encontro (p. 52); c) a comunicação cristã é gratuita (p. 52-53); d) a comunicação cristã é alterizante (p. 53);
8) os limites de um catolicismo de massa: a) superficialismo e barateamento (p. 55-56), b) proselitismo e sectarismo (p. 56-57), c) clericalismo e exibicionismo (p. 57-58).
Na segunda parte – "A alegria de comunicar: o Papa Francisco e a comunicação" (p. 59-132) – busca-se numa perspectiva comunicacional analisar os principais documentos do pontificado de Francisco. Em cada um destes documentos, olha-se primeiramente para as suas características gerais e num segundo momento seus aspetos comunicacionais. Das seis (6) reflexões que compõem esta parte - faremos breves acenos:
1) A comunicação do Papa Francisco, dos gestos às palavras: seus gestos (nome e a inclinação; o primeiro encontro com comunicadores, a primeira entrevista televisiva, a primeira carta aberta, a primeira entrevista impressa) explicitam intuições para o agir comunicacional de toda a Igreja, encarnadas no encontro – diálogo sem exclusão (p. 61-68);
2) Evangelii gaudium: um estilo evangelizador para a comunicação da fé hoje: é um documento abrangente e programático para a vida eclesial neste período histórico. Uma exortação que traz a marca da alegria pela presença de Deus junto do seu povo e da liberdade, da diversidade, da pluralidade e da multiplicidade dos fiéis que se deixam conduzir pelo Espírito Santo e nele encontram a unidade, sem particularismos nem exclusivismos (cf. p. 69-82);
3) Laudato si': desafios e possibilidades de uma ecologia comunicacional: para Francisco, a comunicação envolve um nível antropológico, um nível ecológico e também um nível cosmológico. A ecologia comunicacional favorece uma experiência humana mais consciente e crítica, que não simplifica os problemas em dicotomias empobrecedoras. Reconhecer o lado técnico (dos elementos não humanos) e social (dos “outros” humanos) de toda comunicação é favorecer a construção de relações mais saudáveis, na consciência de que tudo está interligado (cf. p. 83-93);
4) Amoris laetitia: como comunicar o Evangelho da família hoje: o Evangelho da família não é uma boa noticia apenas para o casal e os filhos. Seja a dois, seja em família, é preciso vencer a autorreferencialidade familiar, e buscar, sempre, uma “comunicação em saída” ao encontro do outro, das outras famílias, da sua linguagem e de seu contexto de vida. A família se torna sujeito da ação pastoral quando anuncia o Evangelho a outros, especialmente através do testemunho (cf. p. 94-111);
5) Gaudete et exsultate: a santidade na comunicação do cotidiano: a santidade também é comunicação (p. 112). Santificar-se pela comunicação significa apaixonar-se por comunicar a beleza e alegria do Evangelho. Em um mundo cada vez mais marcado pelo ódio e pela violência, pela depressão e pela ansiedade espera-se comunicadores pacíficos e alegres, pacificadores bem-humorados e comunicativos. Assim nos santificamos pela comunicação e de comunicar a santidade (cf. 112-123);
6) Christus vivit: por uma comunicação eclesial jovem com os jovens: um texto que desafia a Igreja a olhar para os jovens e para as juventudes não apenas como “receptores passivos” da comunicação da Igreja, mas como sujeitos ativos e criativos da mesma comunicação de que “Cristo vive”. Em termos comunicacionais, os jovens levam a Igreja inteira a pensar e a praticar estilos e linguagens (cf. p. 124-131).
Por fim, a terceira parte, "Comunicar o Evangelho em tempos de redes" (p. 133-183), é composta de sete (7) reflexões, nas quais leva-se em consideração o ambiente comunicacional contemporâneo e propõe-se um aprofundamento das mensagens do Papa Francisco para o Dia Mundial das Comunicações Sociais:
1) a revolução da ternura e a necessidade de uma comunicação encarnada: para Francisco, a encarnação não é apenas um conceito teológico. É uma realidade história que não nos deixa inertes. Na sua encarnação, o Filho de Deus convidou-nos à revolução da ternura (Evangelii gaudium, n. 88). Esse também é o desafio comunicacional que a Encarnação lança a cada cristão e cristã: encarnar mediante gestos, palavras e símbolos, a ternura de Deus. Uma verdadeira revolução, que passa pela carne, em seu sentido mais profundo, pela realidade concreta de cada irmão e irmã que devemos tocar e pela qual devemos nos deixar tocar, como fez o próprio Jesus, Deus feito homem (cf. p. 135-137);
2) Na Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2014: na primeira mensagem para este dia Francisco convidou a viver a comunicação como proximidade. A construção de uma autêntica cultura do encontro passa pela proximidade, pelo diálogo e pela ternura. Desta forma os comunicadores são convidados a serem samaritanos comunicacionais, superando a intolerância com a proximidade (cf. p. 138-147);
3) Na Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2015: nessa mensagem Francisco relê a comunicação contemporânea a partir da família, “primeiro lugar onde aprendemos a comunicar” e em que começamos a construir os nossos contatos com o mundo. Assim, a família se torna a primeira escola de comunicação, o ambiente de relação e de convivência, sujeito que comunica. Nesse contexto, a relação entre comunicação e família se desdobra em três aspectos principais: a comunicação na família; a família na comunicação e a família comunicadora (cf. p. 148-154);
4) Na Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2016: celebrando o Jubileu de Ouro do Dia Mundial das Comunicações Sociais, o Papa dedicou o texto desse jubileu ao tema da Comunicação e Misericórdia: um encontro fecundo, no âmbito do Ano Jubilar Extraordinário da Misericórdia. Na mensagem, ele relembra que a misericórdia é o traço característico de todo o ser e agir da Igreja. E isso envolve também a comunicação eclesial, que deve ser igualmente misericordiosa, portadora da força de Deus, graças a qual se constroem uma sociedade, uma cidadania e uma humanidade compartilhadas. Essa comunicação misericordiosa leva, principalmente, a uma opção comunicacional pelos pobres, a uma comunicação que elimina todas as formas de fechamento e desprezo, e expulse todas as formas de violência e discriminação. O convite a uma comunicação que reconheça os pobres também como agentes da construção de uma sociedade inclusiva e pontifícia, de uma cidadania responsável e alterizante, e de uma familiaridade próxima e cuidadora (cf. p. 155-159);
5) Na Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2017: nessa mensagem o Papa Francisco elevou a metáfora à “forma de misericórdia” de comunicação, capaz de abrir um “espaço de liberdade” para o outro com que se comunica. Apresenta-se desta forma o ícone da Boa Notícia, ou seja, o Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus. A partir dessa imagem ele convida a buscar um estilo comunicativo aberto e criativo, mediante uma abordagem propositiva e responsável dos fatos. O pontífice convoca e encoraja a todos, no seu dia a dia, a oferecer relatos permeados pela lógica da boa notícia (cf. p. 160-164);
6) Na Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2018: nessa mensagem ele contrapõe dois tipos de entender a prática da comunicação. Por um lado, a comunicação é vista a partir do projeto de Deus, segundo o qual ela é entendida como uma modalidade essencial para viver a comunhão. Por outro, a partir do egoísmo orgulhoso, isto é, um modo distorcido de usar a própria faculdade de comunicar, que provoca uma alteração da verdade, em suma, a falsidade. Nessa perspectiva, o autor, reflete sobre o sentido relacional da verdade e as fake news como construção da falsidade ou desconstrução da verdade (cf. p. 165-171);
7) Na Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2019: nessa mensagem o papa reconhece que desde quando se tornou possível dispor da internet, a Igreja sempre procurou promover o seu uso a serviço do encontro entre as pessoas e a solidariedade entre todos. Sendo assim, o ser-em-relação é abordado a partir de três metáforas principais: a rede, a comunidade e o corpo (cf. p. 172-183).
Está aí um livro muito interessante, que versa sobre um tema fundamental para a evangelização no contexto atual em que a Igreja é interpelada pelas mudanças trazidas à sociedade contemporânea pela revolução digital. Sabemos que a Igreja no Brasil vem realizando um esforço de reflexão sobre a ação evangelizadora como prática de comunicação, tendo como horizonte uma comunicação aberta ao diálogo com o mundo, a pessoa, a sociedade e suas tecnologias.
As Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2019-2023 salientam que a evangelização do mundo urbano não pode prescindir da questão da comunicação: “Para ser missionária, a comunidade eclesial necessita também se inserir ativa e coerentemente nos novos areópagos, dentre os quais se encontram as redes sociais. Com um olhar propositivo, é imprescindível reconhecer as oportunidades para a propagação do Evangelho que a cultura midiática oferece. São novos recursos, linguagens e meios para evangelizar. Entretanto, é indispensável agir com discernimento, pois o próprio consumo de informação superficial e as formas de comunicação rápida e virtual podem ser um fator de estonteamento que ocupa todo o nosso tempo e nos afasta da carne sofredora dos irmãos. Além disso, possibilitam a difusão de notícias e informações mentirosas, as fake news, de forma rápida e com graves consequências para as pessoas, as comunidades e a sociedade”. Nesse sentido, o Papa Francisco convida a tomarmos consciência de que somos membros uns dos outros (Ef 4,25), por isso é necessário restituir à comunicação uma perspectiva ampla, baseada na pessoa, onde a interação é entendida sempre como diálogo e oportunidade de encontro com o outro. Uma comunidade é uma rede entre as pessoas em sua totalidade” (cf. n. 118).
O livro nos chega a momento oportuno. O nível de informação é gigantesco e as pistas pastorais são inumeráveis. Despojado das armaduras acadêmicas, sem sofisticações e complicações, os conteúdos abordados nos capítulos deste livro são acessíveis e profundos. Aborda amplos problemas e permite ampliar e aprofundar a compreensão da comunicação, trazendo a contribuição do pensamento do Papa Francisco para esta temática (especialmente em suas mensagens para o Dia Mundial das Comunicações Sociais). Trata-se de um livro precioso para quem quer aprofundar os caminhos da reflexão sobre a comunicação em âmbito católico.
Numa nova edição – uma correção e uma sugestão. Correção: na página 9: em vez de inácio = Inácio. Sugestão: ajudaria ao leitor se fosse incluído notas explicativas de expressões pouco conhecidas/usadas por um leitor não acostumado com algumas expressões como por exemplo: bits, pixels (p. 123), ciberbullying (p. 128) e a tradução de frases em latim como por exemplo a que se encontra na p. 131: “nova semper quaerere et parta custodire”.
Enfim, reafirmo, é uma obra valiosa, sumamente recomendável a todos os que estão empenhados em comunicar a fé, sobretudo neste tempo de isolamento e confinamento por conta da pandemia do coronavírus, em que a Igreja se vê desafiada a repensar seu estilo e seus métodos evangelizadores.
Neste contexto, em que as comunidades cristãs voltaram seu olhar e suas energias para o ambiente digital - uma vez que os recursos tecnológicos nos ajudam a suprir a distância física neste período de cautela - esta obra merece atenção e cuidadoso estudo com grandes benefícios para a Igreja do Brasil.
Nota:
Este artigo é uma análise de Eliseu Wisniewski sobre o livro de Moisés Sbardelotto.
SBARDELOTTO, Moisés. Comunicar a fé. Por quê? Para quê? Com quem? Petrópolis: Vozes, 2020, 192 p., 135 x 21mm – ISBN 9788532663405.
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“Comunicar a fé. Por quê? Para quê? Com quem?” Uma resenha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU