16 Março 2020
"Muito do nosso conhecimento sobre o papel das pandemias no nivelamento da desigualdade é relativamente recente. Mas isso ainda pode acontecer? A resposta do historiador austríaco é bastante decidida. Hoje seria necessária a morte de centenas de milhões de pessoas, algo que supera os cenários mais pessimistas. E não é absolutamente certo que uma pandemia possa nivelar a desigualdade de renda ou de riqueza, como aconteceu na era agrícola", escreve Alberto Negri, em artigo publicado por Il Manifesto, 14-03-2020.
E eis que pontualmente aparece nos jornais a retórica do "nada será como antes". Após a pandemia, preconiza-se um mundo melhor e mais justo. Por que e com que profundidade? Após o coronavírus, teremos realmente um futuro mais justo e com menos desigualdade? Como Walter Schneidel explica em The Great Leveler, livro cheio de ponderações, apenas grandes guerras, revoluções, fracassos de estados e epidemias se mostraram eficazes para mudar o mundo. No caso de pandemias, como a peste do século XIV, a população europeia havia se reduzido em 30 a 45%. O coronavírus irá se deter em uma escala muito mais baixa. Mas tem um valor para as elites: se bloquearem o contágio, legitimarão seu poder e a desigualdade.
As epidemias, escreve o historiador austríaco, são o "Quarto Cavaleiro" após os outros três, guerras, revoluções e quedas de estados e impérios. Difere de outros fatores, pois envolve outras espécies, mesmo que em termos não violentos, mas certos ataques de bactérias e vírus têm sido muito mais letais do que todos os desastres causados pelo homem.
A Morte Negra, a peste do século XIV descrita no Decameron de Boccaccio, teve efeitos extraordinários na demografia e nas relações de força dentro da sociedade medieval na Europa e fora dela: essa pandemia mudou radicalmente por mais de um século e meio a relação entre terra e trabalho, foi um grande nivelamento que levou à queda das rendas fundiárias e à subida do custos do trabalho. Em poucas palavras, os ricos de antes ficaram menos ricos e os pobres menos pobres e com maior poder de barganha.
A Morte Negra levou um tempo para viajar, mas não tanto assim quanto se pode supor hoje. A peste, causada por uma cepa bacteriana que coloniza o trato digestivo de pulgas para depois infestar ratos e outros animais, eclodiu no deserto de Gobi por volta de 1330. Foi chamada de "bubônica" por causa dos tremendos inchaços nas virilhas ou axilas, onde costumam se esconder as pulgas. Uma segunda versão é a peste pulmonar que se transmite entre humanos com gotículas transportadas pelo ar.
As rotas de caravanas da Ásia Central foram os verdadeiros canais de difusão: 15 anos depois de Gobi, a peste atingiu a Crimeia em 1345, onde se espalhou para a marinha genovesa durante o cerco a Caffa (Feodosia), quando eclodiu a pestilência entre os tártaros que sitiavam. a cidade. Mas a partir daí começa a correr mais rápido.
Depois de dois anos, a peste estava em Constantinopla, depois cruzou pelo Bósforo e tocou Alexandria no Egito. Os navios genoveses a trouxeram para a Sicília em 1347, um ano depois, em 1348, havia se propagado de Paris para o norte da Europa e para a Itália. "Não como homens, mas quase como animais morriam", diz o Decameron: 24 milhões de vítimas de acordo com as estimativas do Vaticano. A população europeia caiu de 94 milhões em 1300 para 68 milhões em 1400. A grande niveladora havia cortado em um quarto os europeus, mas também o Oriente Médio e a Ásia. "O mundo inteiro mudou", escrevia o grande historiador árabe Ibn Khaldun.
E as mudanças mais profundas ocorreram precisamente na esfera da economia e no mercado de trabalho. A Morte Negra havia chegado à Europa depois de três séculos que a população, a partir de aproximadamente o ano 1000, triplicou por uma combinação de fatores, desde o aprimoramento dos métodos de cultivo agrícola até a redução da instabilidade política. Com abundância de bocas para alimentar, os preços dos alimentos haviam aumentado, enquanto a pressão demográfica tinha reduzido o valor do trabalho e, portanto, também as rendas reais. A Morte Negra levou a uma queda dramática na população, mas deixou intactas as estruturas, ou seja, a terra: graças ao aumento da produção da terra, a produção diminuiu menos que a população, gerando um aumento no produto per capita da renda média.
A terra havia se tornado mais abundante que o trabalho, e os proprietários estavam sob pressão por pedidos de aumento de salário. Na França, Inglaterra e nas senhorias italianas, as instituições e o poder se desdobraram em ordenanças para acalmar os pedidos, mas foram em grande parte desatendidos. A renda dos trabalhadores atingiu o pico no início de 1400: foi preciso mais de um século para que os salários reais começassem a cair para se alinhar por volta de 1600 com os níveis anteriores à epidemia de peste bubônica. Isso acontecia na Europa, mas também no Mediterrâneo oriental: os registros otomanos dos trabalhadores da construção civil em Istambul mostram que a renda real permaneceu alta até o final do século XIX, o que ressalta a extraordinária expansão ligada à peste.
Muito do nosso conhecimento sobre o papel das pandemias no nivelamento da desigualdade é relativamente recente. Mas isso ainda pode acontecer? A resposta de Schneidel é bastante decidida. Hoje seria necessária a morte de centenas de milhões de pessoas, algo que supera os cenários mais pessimistas. E não é absolutamente certo que uma pandemia possa nivelar a desigualdade de renda ou de riqueza, como aconteceu na era agrícola.
Por exemplo, a gripe espanhola de 1918-20 causou 50 a 100 milhões de mortes, mas como os seus efeitos se misturaram aos da guerra, não é possível dizer se isso teve uma consequência significativa na redistribuição de recursos materiais. E hoje mais ainda, diz o historiador austríaco, a sociedade é muito mais sofisticada: da informática aos robôs, até a biotecnologias e sua aplicação aos seres humanos. No entanto, a epidemia continua a assustar como antes, o ser humano continua a ser demasiado humano.
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Nenhuma pandemia cancela as desigualdades de riqueza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU