15 Outubro 2019
Em pleno Sínodo, o pontífice denuncia o propósito de impor soluções a favor do capital contra os interesses da região e dos seus habitantes.
O comentário é de Mino Carta, jornalista, publicada por CartaCapital, 15-10-2019.
A moça que aparece ao lado do papa chama-se Elza Nâmnâdi Xerente, vem de uma tribo do Tocantins, fala português fluente tisnado por um leve sotaque, de difícil atribuição. Feliz de estar presente no Sínodo aberto em São Pedro por Francisco com uma missa celebrada debaixo do baldaquim luxuoso desenhado por Bernini, Elza integra a delegação indígena, representante de 3 milhões de habitantes em um território que engloba 7,8 milhões de quilômetros quadrados alastrados na maior parte no Brasil, mas também na Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Suriname e Guiana Francesa. Trata-se de cerca de 10% da população total da região, de 34 milhões de habitantes. Elza está encantada pela oportunidade de se aproximar do papa e me leva a pensar em uma espécie de matrioska indígena, redonda e brejeira a conter em escala decrescente outras tantas iguais a ela.
São 10 horas da manhã de domingo 6 de outubro e Francisco pronuncia a homilia que abre o Sínodo e logo se refere aos incêndios que devastaram muito recentemente a Amazônia, a colocar o governo Bolsonaro na berlinda. “Fogo ateado aos interesses que destroem não é aquele dos Evangelhos”, afirma o pontífice. E acrescenta: “O fogo de Deus é calor que atrai e recolhe em unidade. Alimenta-se pela participação, não com os lucros. O fogo devorador explode quando pretende realizar ideias de poucos, formar o próprio grupo, queimar a diversidade para homologar todos e tudo”.
Francisco preocupa-se com a língua e com o significado preciso dos vocábulos. Errada é a palavra índio, que remonta à convicção de Colombo de ter chegado às costas das Índias, certo dizer indígena. Parece indicar que este é o dono da terra que o invasor entende descoberta. O papa denuncia os novos “colonialismos” que se opõem à evangelização. “Deus nos preserve da avidez dos novos colonialismos!”, exclama o papa.
Muito antes da devastação de meses atrás, Francisco definiu os rumos deste Sínodo: “Encontrar novos caminhos para a evangelização daquela porção do povo de Deus, particularmente as pessoas indígenas, amiúde esquecidas sem a perspectiva de um futuro sereno, por causa também da crise da floresta amazônica, pulmão de importância fundamental para o nosso planeta”.
Mas o evento reserva surpresas para quantos encaram os movimentos da Igreja Católica de longe. O cardeal-arcebispo Claudio Hummes, que muitos no Brasil consideram conservador, é o relator-geral do Sínodo, e o papa cuida de louvar um hábito do prelado: toda vez que vai à Amazônia, visita os cemitérios para saudar todos aqueles que, em defesa da região, foram mortos pela ganância dos poderosos. A facção conservadora sustenta a tese de que os trabalhos do Sínodo visam abater certezas doutrinárias. É o que afirma a velha guarda do Instituto João Paulo II, ao acusar o papa de pretender trair todo o magistério de Wojtyla no que diz respeito à família.
Os efeitos geopolíticos do Sínodo ultrapassam este gênero de contrastes. O ex-capitão que, dizem, nos governa preocupa-se com o Sínodo porque “procuram criar novos países dentro do território brasileiro, pretendem roubar a Amazônia”. O papa indiretamente responde que o propósito não é apresentar programas previamente confeccionados para disciplinar e domesticar o povo amazônico. “As ideologias são redutivas”, diz o papa ao condenar a intenção de dividir a realidade em categorias, de sorte a inventar ismos em nome de uma presumida civilização que serve para aniquilar os povos.
O vigoroso discurso de Francisco tem, de todo modo, um endereço certo e imediato: o Brasil de Bolsonaro. Culpado antes de mais nada por impor seu “novo colonialismo” a uma região cujo destino interessa ao mundo inteiro. A depender do ex-capitão e da sua determinação de favorecer o agronegócio e a pecuária o futuro da Amazônia prevê, nos sonhos bolsonaristas, a transformação da floresta em cultivações de soja e imensas pradarias. Sonho demente, como tudo mais. Abater a selva e humilhar ainda mais quem a habita significa a transformação desta área indispensável à sobrevivência da humanidade em um Saara do continente americano.
Já prevíamos que Francisco haveria de ser “o maior inimigo” do governo Bolsonaro e do seu tresloucado sonho de grandeza. Este papa é um estadista empenhado em recolocar a Igreja Católica no rumo do espírito cristão depois dos pontificados de Karol Wojtyla e de Joseph Ratzinger, antes políticos que evangelizadores. João Paulo II notabilizou-se por trazer de volta a Guerra Fria com todas as suas consequências, e conflitos sangrentos não rimam com a palavra de Cristo. Conservador no mais, Wojtyla silenciou a respeito do escândalo dos padres pedófilos, de dimensões globais, e abrigou no Vaticano o famigerado IOR, instituto das obras religiosas, que se fartou de dar guarida à lavagem de dinheiro mafioso. Incumbe sobre o papa polonês e seu governo a sombra do monsenhor Marcinkus, orientador do IOR, doidivanas estadunidense, praticante do tênis e de histórias de alcova, perfeitamente à vontade em uma corte que, à volta de João Paulo II, reviveu os tempos devassos dos Borgia até a eleição de Francisco em seguida à renúncia de Ratzinger.
Este, teólogo refinado inclusive no vestuário, haja vista as pantufas Prada que enfeitam seus pés até hoje, dedicou-se mais à política interna da Igreja do que à do mundo, pronto a limitar os efeitos das políticas implementadas por João XXIII e mantidas por Paulo VI. Na visão de Bento XVI, o próprio demônio havia inspirado movimentos como a Teologia da Libertação e quaisquer outros movidos pelo propósito de devolver a Igreja à palavra de Cristo. Foi derrotado por suas obsessões, vive longe do Vaticano em aprazível lugar do campo romano, diplomaticamente protegido pelo pontífice efetivo, que não deixa de convocá-lo para certas cerimônias, como se deu no caso do Sínodo. Ratzinger, obviamente, milita na ala dos tradicionalistas, mas convém fazer de conta que ainda lhe sobra um papel, por menor que seja.
Na sucessão de Paulo VI, um brevíssimo interregno marcado pela misteriosa morte de João Paulo I, o papa Luciani, que sobre o criado-mudo guardava, além da xícara de chá tomada antes do sono do qual não acordaria, um relatório sobre as atividades do IOR.
A oposição a Francisco, na sua atuação de reformador, é forte, mas também dividida. De um lado, surge a aguerrida resistência dos saudosistas dos tempos da festiva Cúria Romana. Do outro, a Igreja alemã, comandada pelo cardeal Reinhard Marx, propõe reformas mais profundas, tais como a bênção para os casais homossexuais ou a introdução do diaconato feminino. No meio se estabelece Francisco, a reconhecer que, em certas situações, recomenda-se a prudência. Uma novidade do Sínodo tem largas condições de semear a cizânia: cogita-se da ordenação de homens casados, preferivelmente indígenas aceitos e respeitados pelas suas comunidades, os chamados viri probati. Eles poderiam ter família constituída e estável, idade mais ou menos avançada. A proposta, há quem diga, seria um balão de ensaio para acabar com o celibato eclesiástico. De fato, os viri probati representam uma experiência amazônica nos termos em que a proposta está sendo exposta. Mas não será por acaso que o cardeal Hummes adverte: “O celibato não é dogma”.
O mesmo Hummes cuida de expor os objetivos do Sínodo, mas alarga seus alcances ao sustentar que o saque da Amazônia é apenas o símbolo da devastação planetária, “promovida por um paradigma tecnocrático globalizado”, já denunciado por Francisco na sua encíclica Laudato Si’. São palavras que visam as consequências do neoliberalismo à sombra da globalização responsável pela monstruosa desigualdade crescente. Cristo pregou a igualdade, por isso foi crucificado. Resta saber se o bolsonarismo enxerga aí mais um comunista mal-intencionado. Quem sabe valha também catalogar desta forma Norberto Bobbio, segundo quem, depois da queda do Muro de Berlim, será sempre de esquerda quem se empenhar contra a desigualdade. Talvez seja esta a visão do Sínodo por parte do governo brasileiro, um congresso subversivo de clara coloração vermelha. Cumpre avisar, contudo, que o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, já havia tomado, antes do começo do evento, as precauções necessárias.
Deu-se que no dia 4 de outubro o general respondeu a um pedido de informação que o deputado Ivan Valente formulou baseado na Lei de Acesso à Informação. Valente pretendia saber se o GSI e o presidente da República estavam informados a respeito da realização do Dia do Fogo promovido por fazendeiros do Pará em agosto passado. Foi esta a queimada que desencadeou a pressão internacional contra o Brasil no tema Amazônia. A resposta do general foi imediata: “O GSI não produziu relatórios sobre a suposta articulação de produtores rurais para queimar ou desmatar a floresta amazônica ou qualquer outra área de proteção ambiental em todo o País”.
Pouco depois da posse do ex-capitão, em fevereiro CartaCapital contou que o general e seu gabinete estavam desde então entretidos em monitorar os preparativos do Sínodo. A confirmação veio somente em setembro: o GSI divulgou uma nota em que atribuía a tarefa à Abin. Para esclarecer: “Cabe à inteligência entender determinados fenômenos com o fim exclusivo de averiguar seu potencial efeito lesivo à sociedade e ao Estado. Isso não se reflete, necessariamente, em monitoramento de pessoas”. O general Heleno não descansa, em vigilância constante a garantir a tranquilidade do País e das suas autoridades. Não sei se temos de agradecer a quem por tanto desvelo, se a Bolsonaro e seu bolsonarismo, ou aos deuses do bispo Macedo. Não há dúvidas em relação ao fato de que não é de Deus o fogo devastador da Amazônia, e sim dos inventores de novas formas de colonialismo dentro das fronteiras do seu país. Esta é a verdade factual, tem condições de dizer o papa Francisco.
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Papa Francisco é a voz contrária aos novos “colonialismos” na Amazônia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU