02 Outubro 2019
“Se uma pessoa, os seus médicos, os seus familiares convergem, todos, em considerar justo e sereno um modo de morrer, eu acho que todos devemos nos interrogar se não é melhor aceitar a possibilidade de que, diante de uma dor irremediável, alguém prefira escolher, por conta própria, o momento, que virá de todos os modos, no qual se sentirá, como Abraão no Gênesis, ‘saciado de dias’”.
A opinião é de Carlo Rovelli, físico italiano, professor da Universidade de Aix-Marseille na França e diretor do grupo de pesquisa em gravidade quântica do físico italiano em Marselha, em artigo publicado por Corriere della Sera, 01-10-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fico contente que se recomece a falar de suicídio assistido e acolho o convite do presidente da Câmara para o debate sobre esse assunto. Eu o abordei neste jornal há alguns meses, contando sobre o suicídio assistido de uma amiga, na Bélgica. Eu perguntava por que não podemos ter na Itália a mesma possibilidade que existe em outros países civilizados de escolher serenamente o modo de morrer quando o sofrimento é grave e irremediável.
Então, o L’Osservatore Romano me respondeu, apresentando argumentos contrários. Considero que o respeito pelas opiniões diferentes é o fundamento da democracia e é particularmente importante sobre um tema delicado como esse, e eu gostaria de apresentar aqui, serenamente, algumas considerações nesse espírito.
A primeira diz respeito às recentes declarações de alguns representantes do mundo médico, que pedem para não serem obrigados a assistir uma pessoa que quer terminar a sua vida. Surpreendeu-me a frase de um médico, relatada neste jornal, que dizia: “Fala-se da liberdade do paciente, mas e a liberdade do médico?”. Parece-me claro que a liberdade do médico pode e deve ser respeitada.
Na Bélgica, a minha amiga tinha uma doença incurável e sofria. Ela pediu ajuda ao próprio médico que a tratava para terminar a sua vida. O médico respondeu que, por motivos ligados às suas convicções morais, ele não faria isso. Seguindo a lei do país, ele, então, direcionou a sua paciente para um colega que não tinha tais impedimentos, que a ajudou no suicídio. Isso está previsto pela lei da Bélgica, salvaguardando a liberdade tanto do paciente quanto do médico. Parece uma solução civilizada.
Não devemos impor uns aos outros as nossas convicções religiosas ou morais; devemos respeitar as convicções de cada um e ter leis que permitam isso e limitem a nossa liberdade somente se a nossa liberdade pode prejudicar os outros.
Ao respondeu ao meu artigo, o L’Osservatore Romano apresentava a alternativa entre uma morte “em um frio leito de hospital”, “obscura, trêmula e repleta de tabus”, ou uma morte na própria casa, escolhida e vivida serenamente. Eu concordo. O suicídio assistido da minha amiga aconteceu em casa, serenamente. Ela estava cercada pelos seus entes queridos. Era de manhã, e ela quis passar o último momento da sua vida com a janela aberta, ouvindo o canto dos pássaros, entre o afeto dos seus.
Todos nós teremos que enfrentar o último dia da nossa vida. Eu espero intensamente que o meu possa ser em uma situação de serenidade e de afeto como foi o dela. Os médicos sabem que existem condições que levam a sofrimentos extremos e sem remédio, e a uma degradação e a uma brutalização sem retorno. Alguns de nós querem enfrentar essa degradação mesmo assim. Eu os respeito. Outros preferem não fazer isso. Eu acredito que eles merecem um respeito igual.
O L’Osservatore Romano me objeta que, se a razão da escolha de morrer for um sofrimento extremo e incurável, a resposta é que hoje existem “cuidados paliativos” que resolvem o problema. Seria bom se tais tratamentos fossem suficientes, mas infelizmente não são. Existem a morfina e fármacos similares, que aliviam a dor, mas não são suficientes. Isso leva a uma consideração delicada. Aumentar fortemente a dose de fármacos como a morfina às vezes é possível, mas, em muitas situações, equivale a uma eutanásia, porque acelera o fim da vida. Isso deixa uma área cinzenta, bem conhecida pelos médicos, na qual se joga entre a ambiguidade e a hipocrisia, para um bom propósito, de fazer sem dizer. Não é um modo honesto de gerir algo sagrado e importante como a morte, na minha opinião.
Depois do nascimento, a morte é o passo mais importante da vida. Tratemo-la com o respeito que ela merece, com o rosto aberto e a cabeça erguida, não com não ditos e meias palavras obscuras. Diante de sofrimentos irremediáveis e terríveis, que infelizmente existem, diante de uma degradação física e, sobretudo, espiritual sem retorno, quando o paciente não pede nada mais do que parar de sofrer, e a família está ciente disso, acredito que poucos médicos que tenham um pouco de coração neguem realmente a paz àqueles que a desejam com toda a alma.
Não deixemos que isso ocorra em um obscuro limbo de semi-ilegalidade, que pode levar, depois, a degenerações que chegam até as páginas policiais. Os primeiros beneficiários de uma lei sobre esse assunto são os médicos, que não são mais obrigados a ter que enfrentar não apenas difíceis escolhas humanas, mas também riscos legais absurdos.
O problema do suicídio não é e não deve ser uma questão entre leigos e religiosos. A Bélgica é um país com um forte sentimento católico. Eu conheço médicos católicos praticantes que não hesitam em ajudar uma pessoa a dar o último passo, e médicos não religiosos que são contrários a permitir que isso ocorra.
A lei da Bélgica estabelece com precisão os modos e as condições nas quais um médico pode – se julgar correto, se a sua consciência permitir e se muitas condições forem verificadas – aceitar o pedido de um paciente para ajudá-lo a morrer. Uma dessas condições é que o sofrimento seja grave e irremediável. Outra, é claro, é que o desejo de morrer seja forte, sincero, motivado e genuíno.
Talvez não seja uma lei perfeita. É apenas uma das soluções que países diferentes adotaram. Ainda me parece muito melhor do que a situação italiana, que coloca os médicos na dolorosa posição de ter que escolher se violarão a sua própria humanidade ou a lei.
Porque a verdadeira questão aqui não é liberdade. É a humanidade. Permitir, para aqueles que desejam fortemente, evitar o sofrimento. Isso é humanidade. Aquela mesma humanidade que anima aqueles que se esforçam para aliviar os sofrimentos em tantos outros âmbitos e que anima tantíssimas pessoas, tanto no mundo religioso quanto no das pessoas que não são religiosas.
A morte, observa o L’Osservatore Romano, é sempre difícil. Enfrentamo-la com temores e deixamos naqueles que permanecem as emoções mais duras. Cada um de nós é diferente. Chegamos com sentimentos diferentes à morte dos próprios entes queridos e à própria morte. Certamente, não pretendo dizer aos outros como deveriam se aproximar da morte.
Mas acho que esse respeito deveria ser recíproco. De grandes instituições morais como a Igreja, eu espero palavras de sabedoria que nos sugiram como enfrentar as passagens difíceis, não apelos a proibições que tornam tudo mais difícil para todos. Se uma pessoa, os seus médicos, os seus familiares convergem, todos, em considerar justo e sereno um modo de morrer, eu acho que todos devemos nos interrogar se não é melhor aceitar a possibilidade de que, diante de uma dor irremediável, alguém prefira escolher, por conta própria, o momento, que virá de todos os modos, no qual se sentirá, como Abraão no Gênesis, “saciado de dias”.
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O fim da vida é uma questão de humanidade. Artigo de Carlo Rovelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU